França, 1885
- Não.
- Mas meu filho, não consigo entender o porquê de tamanha recusa!
Jacques Legrand e seu filho mais novo deveriam estar tendo a mesma discussão pelo que seria a vigésima vez.
- Veja bem, você é um solteiro absolutamente respeitável e tenho certeza de que encontraremos alguma moça que não se importe com suas longas viagens no mar, talvez até alguém espirituosa o suficiente para desejar te acompanhar em uma ou duas expedições mais rápidas.
Poseidon concentrou todas as suas forças para não revirar os olhos para o pai, o que só iria exasperá-lo mais, mas descruzar os braços estava fora de cogitação. Era de se esperar que o patriarca da família não iria entender os motivos pelos quais se recusava terminantemente em se casar, visto que jamais havia mencionado uma palavra do encontro com Circe com qualquer pessoa que não estivesse em sua cabine naquele fatídico dia, dois anos antes. Até o presente momento, tudo estava transcorrendo normalmente, mas precisava se lembrar que a praga de uma feiticeira não era algo que pudesse simplesmente ignorar.
- E, além do mais, eu quero um neto. - Poseidon engoliu em seco enquanto seu pai prosseguia sua argumentação - Seu irmão já está casado há quase três anos, Poseidon. Deus sabe que adoro Perséfone, acredito de verdade que ainda seremos agraciados com um filho nascido dela e tenho certeza de que fizemos uma boa escolha em casá-la com Hades, mas é que ela tem um brilho, um rubor, não sei, um aspecto tão... fértil. Não consigo entender o porquê ela não foi capaz de conceber ainda.
O jovem sentiu-se mal por não conseguir impedir o pensamento que ecoou em sua cabeça, mas era difícil evitar: Talvez a culpa não seja dela. As pessoas comentavam, ele sabia. A morte parecia seguir seu irmão mais velho onde quer que ele fosse: primeiro sua mãe, a primeira esposa de Jacques, morta ao lhe dar a luz; depois seu cãozinho de estimação, quando tinha 7 anos; sua madrasta, Réia, que o criara e a quem amava acima de tudo; e então a moça de quem estava quase noivo antes de conhecer Perséfone, que inexplicavelmente havia ido dormir e nunca mais abriu os olhos.
Poseidon se recordava do medo velado que acompanhou nos olhos de cada um dos empregados, e do próprio Hades, quando ele se casou com a filha de Deméter. Todos temiam que ela, assim como os outros, se fosse de uma hora para outra. Portanto todos os dias era uma alegria quando constatavam que ela seguia igualmente vivaz e saudável da forma que a conheceram.
Entretanto, apesar do medo geral muito mais controlado, se lembrava bem o que havia acontecido com as roseiras quando o primogênito se aventurara a dar um passeio por lá e colher um botão para presentear sua esposa: pelo menos três mudas apodreceram e morreram até o fim do dia.
Poseidon o amava e admirava acima de tudo, mas não podia fingir não ver o que acontecia com Hades e, depois de sua própria experiência com Circe, se perguntava se talvez não houvessem mais pessoas de sua família amaldiçoadas também. Podia ser que seu irmão não mais carregasse uma energia mortal consigo, mas gerar vida talvez ainda lhe fosse demais.
- Enfim, não importa. A questão é que você muito bem poderia casar-se e ajudar a aliviar essa ansiedade e expectativa de seu pobre pai. Se sua mãe ainda estivesse viva, você sabe que é isso que Réia gostaria de ver.
E ali estava uma coisa que Poseidon não poderia contestar. Ainda era um estudante bem jovem no inverno em que sua mãe adoeceu e morreu, mas já haviam tido conversas o suficiente para saber que ela desejava ver seus dois meninos casados, felizes e cheios de rebentos. Se isso já não bastasse, ele também via o quanto seu pai sentia falta dela. Quando voltava para casa de suas viagens, não podia deixar de pensar que monsieur Legrand talvez se sentisse muito sozinho. Era um homem bom e talvez se visse perdido em relação ao que fazer para garantir a felicidade da família.
- Está bem, pai. Eu aceito procurar por uma esposa, mas apenas se o senhor concordar que não estarei obrigado a fazê-lo com um prazo determinado e que apenas me casarei se encontrar a pessoa certa, d'accord¹?
- Não fazia ideia de que você era um romântico, mas está bem. Tem a minha palavra.
- Ótimo.
Por dentro ele sabia que não estava nada ótimo, mas que mal poderia fazer? Não é como se fosse se permitir encontrar alguém com quem de fato desejaria se casar.
{¹ D'accord? = De acordo?}
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Amarras
RomanceMadeira é o destino de Poseidon. Duro, seco, oco. Pérolas são as aparências que Atena e os Hugh insistem em manter. A altiva frieza e distância que ela colocou entre si e o mundo. Conchas são um presente singelo e significativo. É a quebra de barrei...