Verão, aí vou eu

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O dia está amanhecendo e eu sei disso porque os passarinhos já estão cantando em minha janela. Não dormi muito bem, o sono veio tarde e a ansiedade me acordou mais cedo do que deveria. Decido levantar pois sei que não vou aguentar ficar tanto tempo mais na cama, já é o quarto dia em que durmo mal por causa dessa viagem, fico rolando na cama pensando em como as coisas vão ser. Talvez seja a ansiedade ou a má vontade em ver meu querido pai que me abandonou há anos e agora quer dar uma de bom pai.

Ele foi embora quando eu tinha apenas seis anos e tudo ficou mais difícil depois disso, minha mãe desabou e passou a ter que cuidar sozinha das contas, o que a fez trabalhar o dobro. No começo me senti culpada por estar aliviada nessa situação, ele bebia muito e não era como o pai das minhas amigas da escola. Passei a cuidar da minha mãe quando ela só chorava por meses, eu era incapaz de cuidar das coisas sozinha, mas fiz só Deus sabe como.
Agora, depois de dez anos ele reaparece dizendo que está bem e que me quer por perto. Agora, pai?
Entro no banheiro para tomar um banho e lavar a alma, sinto o frio na barriga, daqueles que a gente sente quando tem que fazer algo novo, inesperado, que nos tira da zona de conforto. Prendo o cabelo fazendo um rabo, visto uma calça jeans, uma camiseta simples, o meu vans de sempre e um casaquinho para o caso de sentir frio. Me observo no espelho uns minutos e desfaço meu penteado umas quatro vezes no mínimo, no geral não me sinto muito segura de mim mesma.
Termino de arrumar a mala, coloco mais umas blusas e alguns livros, nunca fiquei por tanto tempo fora de casa, nunca precisei ficar mais que dois dias longe da minha mãe, depois que meu pai foi embora fomos apenas eu e ela, nossas noite de filmes, nossas noites de meninas e nossas noites de pizza, sempre nós. Desde o momento em que minha mãe me contou que meu pai entrou em contato me senti estranha, eu já tinha me acostumado a viver sem ele, não sei se posso reabrir esse livro.
Ligo para Mari e Liz, prometi à elas que ligaria antes de partir para outro estado.
"Oi gente."
"Oii" respondem em uníssono e com vozes tristes.
"Vocês estão fazendo muito drama, vão ser só dois meses longe."
"A questão é que as férias de fim de ano são nossos momentos. Verão, sol, shopping e praia." Mari diz.
"Sim, não vai ser a mesma coisa sem você." É a vez de Liz protestar.
"Quem vai nos trazer para a realidade quando nos apaixonarmos pela vigésima vez em um mês?"
"Eu, só que por ligação e a alguns quilômetros de distância. E façam o favor de me contar todos os detalhes da viagem, vou ficar fora só dois meses, não a vida toda."
"Só se você nos contar todos os detalhes da sua e dos caras lindos que você vai ver." Liz não para de falar em caras lindos desde que eu contei que passaria as férias no Rio com meu pai, segundo ela, o Rio é o paraíso dos homens.
"Pode ir tirando o cavalinho da chuva, pretendo não sair muito do meu quarto, não estou a fim de bancar a filha boa para um pai não tão bom assim."
"Só promete que vai tentar dar uma chance para ele, não sabemos como ele está depois de tantos anos." Mari me aconselha, ela sempre tem bons conselhos à serem ditos, formamos um bom trio no fim das contas.
"Prometo."
"Promete também que vai conhecer gente nova, é o Rio de Janeiro menina." Liz me ordena. Eu rio.
"Prometo, por você."
Rimos juntas, ambas sabemos que pretendo passar minhas férias assistindo filmes clichês e lendo meus romances, pelo menos é assim que passo todas as minhas férias, a não ser quando elas me obrigam a ir para o shopping ou cinema, ou quando a mãe de Mari nos leva para a casa deles na praia. No geral não saio muito de casa, não sou muito boa em socializar.
Esse ano tínhamos planejado ir à praia com a família de Mari, mas meu pai apareceu para estragar todos os meus planos.
Desço as escadas e sinto o cheiro do café que minha mãe prepara, é a única forma de colocar minha alma de volta no corpo de manhã, com um bom café.
"Pronta, filha? Chegou o dia" Ela diz com o semblante triste.
Eu não tenho muito o que dizer depois de dias me recusando a passar o verão com meu querido super pai, ele insistiu e minha mãe acha que pode ser bom para mim ter uma figura paterna em minha vida depois de dez anos. A questão é ele é um repleto estranho para mim agora, não sei nada sobre ele, sua vida ou o que ele faz, e considerando o fato de que não sou muito sociável, não sei como passar dois meses com pessoas estranhas para mim.
"Bom, lá vou eu para a casa do papai" Digo em tom sarcástico.
"Sarcasmo não não é uma de suas melhores qualidades." Sorrimos, não sei como vou sobreviver dois meses longe da minha mãe.
Chegando ao aeroporto checo todas as minhas coisas e chego à conclusão de que peguei tudo o que preciso para um verão bem longe de casa no novo lar do meu pai, lá é mais quente, tem praias, é tudo o que uma adolescente precisa para passar o verão, não é? Me despeço da minha mãe, coisa que já venho fazendo há semanas desde que ela ficou mais sentimental comigo por ter me obrigado a ficar o verão todo longe de casa, com um homem que já nem conheço mais.
"Prometa que vai me ligar todos os dias." Ela me olha com carinho, seus olhos ameaçam mergulhar em lágrimas, mas nada sai.
"Prometo." Sorrio.
"Eu não queria ter te obrigado a nada filha, mas realmente acho que vai ser bom para você." Ela pega minha mão, está sendo muito sentimental agora.
"Eu sei, mãe." No geral não discordo da minha mãe, sempre fui uma criança que concorda com qualquer coisa.
"Você sabe que a primeira coisa fora do normal que acontecer, é só me ligar e eu obrigo seu pai a te colocar no primeiro avião de volta." Ela me olha seriamente, sua postura fofa já foi embora.
"Eu sei, mãe."
"Você deveria ter colocado o vestido vinho que separei, essa blusa não fica boa em você." Ela diz me olhando de cima a baixo desaprovando meu estilo.
"Tchau, mãe, já estou atrasada." Digo rindo e quase saio correndo, minha mãe desaprova todas as roupas que são do meu gosto.
Olho ao redor e tem mães e pais chorando, nesse momento agradeço por eu e minha mãe não sermos tão sentimentais. No geral ela não costuma ser muito sentimental mesmo, acho que ela foi se fechando aos poucos desde que precisou superar o abandono do meu pai. Ela sempre disse que ele foi o único homem que ela amou, mas nunca entendi porque ela não se permitiu amar outro alguém. A única experiência que tenho com amor são os livros, sempre gostei de ler romances, acho linda a forma com que as pessoas se entregam por completo à alguém, amam intensamente e sentem borboletas no estômago, nunca senti nada muito parecido. Não sei se acredito em um príncipe encantado em pleno século vinte e um, são tempos tão líquidos, as relações se desfazem da mesma forma que tentar pegar água com a mão, pessoas ficam por ficar, nem sequer sabem o nome de quem ficam, não tenho nada contra, mas não sei se isso é para mim. Pelo menos não é o tipo de relação que almejo ter.
A viagem é longa, quente e cheia de ansiedade, não sei bem o que pensar e nem como agir quando encontrar meu pai. Passei anos o odiando pelo o que fez com nós, nos abandonou quando mais precisávamos dele, nunca entendi como pais podem fazer isso com os filhos. Mas cresci, a raiva acabou passando e o ressentimento ficou no lugar, acho que eu só nunca entendi porque ele não ficou e não tentou fazer as coisas darem certo.
Descarrego as malas e pego meu celular para ligar para o homem que vou passar o verão, vulgo meu pai. Nem preciso ligar porque escuto uma voz masculina gritando: "Sarah" e sei que é ele. Vou ao seu encontro e é como se eu nadasse em águas desconhecidas, a qual não sei a profundidade ou se apresenta algum tipo de perigo, apenas vou e sinto o frio na barriga.
Dou-lhe um abraço desajeitado, a tensão é nítida.
Entramos em seu carro aparentemente chique, não entendo muito de carros, mas sei que esse aqui custa mais do que eu e minha mãe poderíamos pagar. Durante o trajeto para a casa dele fico o tempo todo olhando para a janela, olhando a praia e pensando que talvez não seja tão ruim pegar um bronzeado nesse verão. As pessoas daqui parecem ser mais descontraídas.
Respondo as mensagens enlouquecidas da minha mãe, ela costuma ser maníaca por controle também, se não tiver tudo sobre seu controle acaba surtando.
"Impressionada?" Meu pai pergunta ao me pegar olhando de boca aberta para a orla da praia.
"Acho que sim, as pessoas aqui parecem ser mais tranquilas e relaxadas." Olho para ele que não tira os olhos do trânsito, ele aperta fortemente as mãos no volante as deixando vermelhas, acho que é o nervosismo.
"São mesmo, menos preocupadas e estressadas, talvez seja a praia, mas a energia daqui é bem diferente, você vai gostar." Ele me olha nos olhos pela primeira vez e quero sair correndo, agora entendo porque as pessoas que o conhecem dizem que tenho os olhos dele, eu realmente tenho os olhos dele, castanhos e intensos.
Chegamos em frente à uma casa e penso que ele parou pra conversar com um amigo ou coisa do tipo, mas ele abre o porta malas e começa a descarregar as coisas , então percebo que é a casa dele. O maldito mora em uma mansão enquanto minha mãe trabalha dia e noite pra pagar as contas, já começo a me arrepender de ter me aproximado.
"Você mora aqui?" Pergunto incrédula. Essa casa é enorme, possui uma fachada bonita em um estilo clássico e um lindo jardim na lateral com ipês. O local é no mesmo patamar, com casas bonitas e jardins bem feitos.
"É, me mudei para cá com Ester quando decidimos começar uma vida juntos, ela tem um filho um pouco mais velho que você e achamos que um dia gostaríamos de reunir nossas famílias em um lar legal." Ele diz, nem se tocando que essa mansão está longe de ser um simples lar legal. Penso sobre o que ele disse e me lembro que além de passar o verão com meu pai, tem minha madrasta Ester, que nunca vi e nem conversei, mas só em abrir a porta da casa vejo que não nos daremos muito bem, há um excesso de decoração nesta casa, tem quadros e enfeites para todo lado, há muita cor, isso choca um pouco meus olhos, já que minha mãe sempre me disse que cores básicas são tudo. Costumo avaliar a personalidade das pessoas pelas cores que usam ou enfeitam as coisas, e tenho um pé atrás com quem possui sofás amarelos e quadros estilo pop arte, parece animador demais.
Ela me recebe com boas vindas calorosas me dando um abraço, recuo por um momento pra entender o que está acontecendo, mas retribuo por medo de dar uma primeira má impressão, ela tem um leve aroma de alecrim, percebo logo que vem de alguma refeição que invade minhas narinas quando passo pela porta. Tem um semblante alegre e gentil, o oposto da minha mãe, que costuma ser muito breve e séria. O resto da casa é tão animador quanto ela, quadros, muitas fotos e cores. Ela veste uma saia preta até o joelho com blazer e saltos vermelhos, cabelos longos e loiros, impecável. O que define bem sua personalidade.
"Bom, Sarah, não é? Estou preparando um frango assado, seu pai disse que você gosta, espero que se sinta em casa." Ela diz animada mas com um tom calmo, percebendo que me pedir para me sentir em casa é um pouco demais depois de dez anos. Mas pelo menos ela está se esforçando, isso é nítido. E a propósito pai, minha comida preferida não é mais frango desde que você se foi.
Subo as escadas com as malas e chego ao segundo quarto à esquerda, aparentemente o "meu quarto", percebo que ao lado do meu tem outro com uma porta cheia de posters de fórmula 1 e suponho que é o quarto do meu irmão postiço. Coloco minha mala na cama e analiso meu quarto, é pelo menos duas vezes maior do que o meu na casa da minha mãe e tenho o meu próprio banheiro, chego a conclusão que eles são bem de vida, meu pai deve ter um bom emprego ou algo do tipo pra lhe proporcionar uma boa casa e um bom carro.
Levo meus calmantes à boca e engulo sem precisar de água, tomo para inibir os efeitos do transtorno de ansiedade que desenvolvi depois que meu pai foi embora. Ele deixou muito mais do que uma família para trás, deixou transtornos também.
"Pode usar todo o armário se quiser, ou se não gostar de algo pode dizer, queremos que se sinta confortável."
Ester diz parada na porta, me tirando de meus devaneios.
"Claro, eu...Eu gostei, é ótimo." Sorrio, ela é gentil e amigável, mas não exclui o fato de que meu pai começou uma nova vida com ela como se eu e minha mãe não existíssemos mais.
Não estou à fim de desfazer toda a minha mala no momento, então tiro só o essencial, tenho um guarda roupa bem grande com espelhos e uma escrivaninha em um estilo moderno, fico feliz por não ter móveis amarelos vibrantes em meu quarto, sou mais do estilo básico.
Desço as escadas e encontro meu pai ajudando Ester a preparar o jantar, o cheiro está divino, geralmente é assim que as pessoas me conquistam, pelo estômago. Ual, esse realmente não é o meu pai que sentava a bunda no sofá e esperava minha mãe trazer seu prato de comida enquanto assistia futebol. 

Ouço risadas à minha direita e encontro três meninos rindo só Deus sabe do que. Estão sentados no sofá da sala que da acesso à cozinha, não me viram ainda, o que me dá a liberdade de olha-los, dois deles são típicos garotos high school, topete no cabelo, tênis caros e bonitos, mas um me chama atenção, ele veste camiseta preta, é moreno e possui lindos olhos azuis, como o mar, tem um semblante sério. Um deles me vê. Coro imediatamente, gostaria de me esconder embaixo da mesa. É esse o motivo pelo qual não me sinto confortável perto de pessoas que não conheço, não sei o que dizer, não sei como agir.

O menino loiro um tanto mais alto que eu, musculoso e com um corte de cabelo com topete, o estereótipo perfeito, vem até mim dizendo: "Sarah, não é? Parece que seremos irmãos. Bom, seja bem vinda ao Rio, mulheres gatas e festa a qualquer hora." Ele pisca e sai rindo, percebendo a cara feia de sua mãe. Eu gostaria com todas as minhas forças de sair correndo, minhas pernas desconhecem o efeito da gravidade e por um momento acho que vou cair. Ele estende seus braços musculosos e aperta minha mão, provavelmente passa algumas horas de seus dias na academia.
''Galera, essa é Sarah." Ele diz aos dois meninos. Em seguida vem o menino que me chama atenção, também um pouco mais alto que eu, com um corte de cabelo básico e pele dourada, ele tem um cheiro doce, bem contraditório em relação ao seu visual negro. "E aí" ele diz com indiferença, erguendo as sobrancelhas e molhando os lábios, seus olhos azuis cerram os meus com fervor, é como as ondas quando o mar está de ressaca, não sabemos muito bem o que esperar, só que devemos tomar cuidado. O terceiro também me cumprimenta mas só aceno, porque meus olhos ficaram presos no garoto dos olhos profundos e azuis como o mar, falando com seu sotaque marcante e seu cheiro doce, meu coração bate mais forte, e sinto um frio na barriga. Ual.
Verão, aí vou eu.

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