Como Pude?

21 2 0
                                        

Sinto o gosto gélido da bebida, a sensação de perigo e o fogo ardendo em meu corpo, a sensação de estar fazendo algo que não deveria. É o que me lembro de ter sentido quando penso no beijo que dei em Arthur, já repassei a mesma cena em minha mente milhões de vezes. Como pude ser tão estúpida? Beijei um garoto para escapar de outro. Como pude fazer isso com Pedro? Como pude beber tanto e fazer coisas das quais eu certamente me arrependeria? Como pude magoar Pedro da pior forma possível?
"Come um pouco, Sarah. Se não melhorar, não vai sair daqui amanhã, e ficar sem comer não vai desfazer o feito." Laura senta ao meu lado, minha única companhia nesse momento.
"Você já sabe?"
"Enrico me contou, ele foi atrás do Pedro que saiu por aí sem rumo."
"Como pude ser tão idiota, Laura?"
"Todos fazemos coisas das quais nos arrependemos, Sarah, acontece."
"Eu podia ter perguntado, mas vi ele com Rafaela e pensei que eles estavam juntos."
"Mas ele já não te disse que não quer ela?"
"Disse, mas no momento eu estava com uma quantidade considerável de álcool no corpo e muito ciúmes."
"E zero noção. O Arthur, Laura?"
"Acredite, se arrependimento matasse eu já estaria enterrada."
"Mas agora já foi e vida que segue, Pedro vai superar isso e você também. Tenta esquecer."
"Onde você acha que ele está?"
"Não sei, pedi para o Enrico me mandar mensagem assim que souber."
"Você e Enrico estão tão próximos."
Ela desvia o olhar.
"Ai meu Deus."
"O que?"
"Ai meu Deus!"
"O que é, garota?"
"Você ficou com ele."
Ela não responde.
"Você ficou. Como pôde não me contar?"
"É que tanta coisa aconteceu."
"Traidora, você não me disse nada."
Rio, mas estou realmente brava por ela não ter me contado.
"Você quase teve um treco, Sarah. Nem lembrei desse assunto com tudo o que aconteceu."
"Me conta tudo então. Quando? Onde?"
"Na festa, nós já estávamos trocando uns olhares desde que fiquei mais próxima de você, mas aí rolou na festa."
"Fico feliz de verdade."
"Eu também, Enrico é uma boa pessoa."
Os olhos dela brilham e aquecem meu coração.
"Com quem ele brigou na festa? Pedro disse que tirou ele de uma briga, não tem a ver com aquele lance das drogas, não é?"
"Não, foi um cara que eu estava ficando, me viu com Enrico e quis arranjar briga, não sei porquê, não tínhamos nada sério."
Ela revira os olhos.
"Entendi."
Seu celular toca, ela atende.
Espero que Pedro ainda queira olhar em minha cara depois dessa, estou com o coração angustiado, quero sair daqui e ir atrás dele, dizer que foi tudo uma confusão, um erro. Quero abraça-lo e não solta-lo nunca mais.
"Eles estão na sua casa."
"Queria sair daqui e ir correndo ver como ele está."
"Mas vai ficar quietinha, descansar e ficar em paz, amanhã você tem alta e eu venho te ver."
Sorrio e concordo.
"Amanhã venho te ver, mas qualquer coisa é só me mandar mensagem, qualquer coisa mesmo."
"Eu sei, obrigada."
"Estou aqui sempre, você sabe não é?"
"Sei, eu também."
Fico sozinha nesse quarto de hospital branco e amargo, angustiada e cansada, tentando assimilar a onda em que me afoguei. Meu coração está angustiado, e não poder conversar com ele está me matando por dentro.
Olho para o lado e meus olhos encontram o exemplar de Dom Casmurro que Pedro me deu, está em cima da poltrona desde que ele o trouxe para mim. São perfeitos, não é o livro mais bonito do mundo mas é para mim, aos meus olhos, o mais especial de todos. Um dos primeiros romances que li, me tragou e me arrastou para o universo dos romances da forma mais intensa possível, nunca mais consegui sair, cada romance lido é como se fosse o primeiro, o frio na barriga, a ansiedade, cada romance que leio é um amor novo em minha vida, uma história a ser contada, as minhas histórias de amor.
Ouço uma batida na porta que me tira de minhas lembranças boas.
É ele. Não o cara que faz meu coração bater mais forte por amor, o que fez meu coração bater mais forte por medo e decepção, Arthur.
Não sei como me sentir, ele estava sozinho comigo em um quarto, quase violou meu corpo e me abusou, mas foi impedido. Não sei como fui parar lá, não sei quem me drogou e não encontro um motivo para tudo isso. Não sei o que eu deveria sentir nesse momento. Dor? Raiva? Nojo? Medo? Não sei o que sinto, porque no fundo do meu coração, além de não esperar tais atitudes dele, não me entra na cabeça que ele realmente queria fazer isso.
Minha consciência me lembra: Mas ele quase fez.
E eu respondo minha própria consciência: Mas não fez.
Mas quase.
Sempre briguei comigo mesma por esperar tanto das pessoas, eu nunca espero que as pessoas tenham atitudes ruins, sejam más, ou façam o que fizeram, estou sempre criando expectativas e esperando algo.
A questão é que não se deve esperar nada de ninguém, assim evita-se decepções e expectativas.
Mas eu realmente não esperava que Arthur fosse capaz de me fazer tanto mal.
Por que?
Por que ele queria ficar comigo?
Fiz algo ruim à ele?
Ele só queria fazer algo ruim?
Por que eu?
Ele fica com meninas? Não sei, nunca nem vi.
Não consigo pensar em um motivo sequer para esse garoto me fazer mal.
Ele me encara e eu o encaro, meu coração acelera.
"Você está bem?"
Lembranças vagas me vêm à mente. Escuro, luzes vermelhas, eu o beijo, estou ao seu lado, ele me olha nos olhos e me diz algo, mas não sei o que ele está tentando dizer. "Me perdoe." É o que ele diz.
"Sarah?" Ele me chama me tirando de minhas lembranças.
"Você está pálida, quer que eu chame um médico?"
"Não. O que veio fazer aqui?"
Ele está inquieto, com as mãos no bolso, não sabe o que fazer, não sabe o que dizer.
"Eu...É..."
"Você só pode estar de brincadeira." É a voz de Enrico.
Ai papi.
Arthur está pálido e quando me dou conta Enrico está em cima dele. Eu grito.
Em segundos tem tem dois enfermeiros separando a briga.
"Enrico, vem, não precisamos disso."
"Ele está pensando o que vindo aqui? Acha que ninguém sabe?"
Ele vai para cima de novo.
"ENRICO." Todos me olham.
"Não vale a pena."
Ele respira e se acalma, todos nos acalmamos.
"Vai embora." Olho para Arthur que parece um tanto transtornado.
Ele vira as costas e sai, alguém tira o Enrico do meu lado, mas me distraio, Arthur entra em um HB20 branco, conheço esse carro, já andei nele e sei muito bem à quem pertence. Rafaela.
Um sentimento estranho me vem à tona, eu não espero esse tipo de atitude do Arthur, mas dela eu espero qualquer coisa.
Sentados nesse quarto deprimente de hospital enquanto olhamos para parede, penso em Arthur, o que será que ele veio fazer aqui? Por que se importou se queria me fazer mal? Ele realmente queria me fazer mal? Não sei, não sei nada. Enrico convenceu o enfermeiro a não ligar para meu pai, não precisamos de mais confusão nesse momento.
"Você não deveria ter me impedido."
"Estamos em um hospital, Enrico."
"Eu teria dado a surra que ele merece."
"Não precisamos de mais curativos."
"Teria matado ele."
"Você quer enfartar nosso pai?"
"Qual o seu problema, Sarah? Ele teria feito pior com você."
"Não sabemos se foi ele."
"O que? Claro que sabemos, era com ele que você estava sozinha e drogada."
"Eu sei, mas..."
"Sarah, o que está acontecendo? Por que está defendendo ele?"
"Não estou defendendo, só não acho que ele realmente faria isso."
"Mas ele faria."
"Não sabemos, Enrico."
"Então quem você acha que faria? Porque não vi mais ninguém com você no quarto a não ser ele."
"Rafaela, talvez."
"O que? Por que?" Sua expressão é tão confusa quanto eu esperava.
"Não sei, vi ele entrando no carro dela quando saiu daqui, não sei de nada, mas eu realmente não acho que ele faria isso. Por qual motivo? Ele nem me conhece direito, nunca fiz nada à ele, nunca nem vi ele ficando com outra menina, Enrico."
"Mas por que ela faria esse tipo de coisa? E por que Arthur faria tudo isso por ela?"
"Pelo Pedro, é óbvio, ela me odeia desde aquele dia na sua casa em que me viu pela primeira vez."
"Sarah, olha, isso é uma coisa muito séria."
"E você acha que eu não sei? Como acha que estou me sentindo?"
"Não sei, Sarah, olha, é melhor termos algum tipo de prova contra ela para fazer uma acusação tão séria"
"Eu sei que ela tem algo a ver com isso."
"Tem certeza que não está só de implicância com ela?"
"Vou fingir que nem ouvi o que você acabou de dizer."
"Acha que Rafaela seria capaz disso?"
"Ela foi capaz de descobrir quem era minha mãe, ligar para ela e contar de mim e do Pedro. É a Rafaela, Enrico. Acorda."
"Ainda acho que precisamos falar melhor sobre essa história."
"A gente fala depois, vem comer."
"Estou faminto por essa comida pastosa e sem sal de hospital."
"Deve estar divina." Gosto da nossa ironia, nossas brincadeiras, nossa relação de irmão.
"Nem me fale."
Aqui, na maca do hospital, fazemos nossa refeição de irmãos juntos. Conversando sobre os problemas da vida, sobre meninos, meninas, pais, mães e nós. Sempre sonhei em ter uma irmã, mas nunca imaginei como seria ter um irmão, estou gostando da experiência, ele é um cara que cuida de mim, se importa comigo, está aqui para mim e não é o meu pai, é meu irmão.
"É a melhor refeição de irmãos do mundo."
"É mesmo."
"Você é um bom irmão, Enrico." Sorrio.
"Você também, Sarah. Só da um pouquinho de trabalho."
"Como se você não desse."
Rimos, acho que descobri o sentimento de ter um irmão: carinho, proteção, cuidado. É o que sentimos um pelo outro. É o que sinto pelo meu irmão.

InefávelOnde histórias criam vida. Descubra agora