Apenas fluindo

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Acordo com um barulho estridente, algo se quebrou e me tirou de meu sono. A última lembrança que tenho é de adormecer nos braços de Pedro em minha cama, ficamos falando sobre como amamos a praia, o oceano e de como todas as poesias escritas sobre o mar são lindas, pelo menos nisso temos algo em comum, amamos o oceano e tudo que o envolve. Mas como chegamos a esse assunto, eu não tenho ideia. A única coisa que tenho ideia nesse momento é de que me sinto feliz e completa, pela primeira vez na vida me sinto como se não precisasse de mais nada. Levanto e sinto minhas pernas doloridas, vou ao banheiro e tomo um banho rápido para lavar a alma.
Hoje não está tão calor, então coloco uma calça jeans básica, uma blusa preta e meu vanz de sempre, penteio meu cabelo e ouço uma batida na porta. Meu coração acelera e sinto um frio na barriga, é como se meu corpo soubesse que ele se aproxima, e ele sabe.
Ele entra sem eu responder, e sem nem pensar que eu posso estar sem roupa ou algo do tipo, mas acho que a essa altura ele não ligaria, e eu também não. Quero abraça-lo e dizer o quanto estou feliz, mas ele faz primeiro. Me dá um abraço caloroso e desesperado, como se fosse nosso último abraço.
"Eu te amo, sabe disso não é?" Ele diz e me olha com olhos tão profundos, se estivéssemos em outra ocasião eu diria que ele está desesperado.
"Sei, eu também te amo." Digo enquanto ele se envolve em mim, sinto seu coração e gostaria de senti-lo pelo resto da minha vida.
"Vem, vou te levar a um lugar." Ele me conduz até a janela, já vi ele pulando janelas mas nunca pensei que eu precisasse pular, e eu preciso?
"O-o que você está fazendo?" Eu rio, não estou entendendo nada, raramente entendo as ações e reações de Pedro.
"Só vem, Sarah, por favor." Ele está sério agora, então eu vou, seja lá onde ele queira me levar, não parece só diversão.
Passo pela janela do meu quarto que é alta o suficiente para cairmos e quebramos o braço, eu nunca tinha entendido como Pedro e Enrico pulavam a janela do corredor, mas agora eu sei, tem um ipê amarelo no quintal da casa e ele tem seus galhos firmes quase envoltos na casa, ele se apoia em um galho e pula. Nunca precisei pular uma janela antes, mas acho que agora eu gostaria de saber fazer. Hesito um momento porque é consideravelmente alto.
"Vem, se apoia nesse galho e pula, não vou deixar você cair."
Suas palavras me confortam e me dão segurança, passo as pernas pela janela, me apoio no galho e pulo. Ele me segura para que eu não caia.
"Vem, vamos." Ele estende a mão. Sinto um clima diferente vindo dele.
Ele caminha silenciosamente, já fizemos esse caminho antes quando fomos ao café.
"Está tudo bem, não é? Eu questiono porque sei quando a energia está diferente.
"Esta sim." Ele beija minha testa. Eu amo suas demonstrações de carinho.
Chegamos ao café, não sei porque era tão importante para ele que eu viesse aqui tão depressa, mas tudo bem porque até o lugar mais deplorável ao seu lado se torna o mais confortável, e não é esse o caso porque eu amo este lugar. Talvez seja porque ele tem uma vibe de livros, tem trechos escritos na parede, me sinto como se estivesse em casa e foi Pedro quem me apresentou, o que o torna mais especial, é o nosso lugar.
"Espera na nossa mesa que eu te levo o café." Ele diz sorrindo. Seu sorriso genuíno me traz um conforto que não sou capaz de explicar.
Temos o nosso lugar, o qual tem trechos de Jane Austen escritos na parede e foi o que escolhi para sentar quando viemos aqui pela primeira vez.
Me sento e o observo de longe, ele está vestindo uma calça preta, sua camiseta preta com detalhes cinza escuro, seu All Star de couro preto, eu o reconheceria a quilômetros. Ele não faz o tipo que se arruma, mas ele não precisa, qualquer coisa em seu corpo se torna irresistível, ele é irresistível. Ele espera pela moça do café com as mãos no bolso da frente, suas veias saltam em seu braço e sua tatuagem de bússola se destaca em sua pele clara. Vejo a forma com que a moça do caixa olha para ele, se tem uma coisa que ele faz bem, é intimidar as pessoas, seu olhar intenso tira qualquer um de seu foco, e vejo que ele fez o mesmo com a coitada da moça.
Ele vem em minha direção com meu café com baunilha, meu preferido. Sentando ao meu lado e colocando a mão em minha coxa como de costume, ele se vira para mim. Sinto sua preocupação, tem algo acontecendo considerando que minha intuição raramente falha.
"Sarah, olha, eu só queria que soubesse que você me trouxe um destino, eu quero ser melhor, entende?" Uma lágrima escorre pelo seu rosto. Mas ele não me deixa falar. "Estou tentando do fundo do meu coração ser alguém melhor para você." Eu sei que ele está, tivemos momentos incríveis juntos, jamais esquecerei. Mas tem algo aqui que eu não sei. Ele retira um embrulho do bolso e coloca em minha mão.
"O que é isso?" Pergunto sorrindo.
"Feliz Aniversário, Sarah."
Meu Deus, esqueci completamente, fiquei tão anestesiada por tudo o que tem acontecido que nem me toquei que meus dezessete anos estavam próximos.
Desembrulho o pacote e retiro da caixinha um colar com dois pequenos pingentes, uma onda e um coração, mas um coração no sentido literal da palavra, desses que a gente aprende na escola, é estranhamente esquisito e perfeito.
"Não sabia o que te dar porque não queria ser clichê, aí vi esse pingentes que demonstram o sentido literal do que sentimos, o que eu sinto é real, concreto e eu sei que você também sente." Ele pega em minha mão.
"Abre o pingente."
Eu o pego e abro, são dois corações que se fecham e se tornam um, e dentro está escrito "Ocean eyes"
"É perfeito." Eu o olho, é perfeito mesmo, descreve nossa conexão, seus olhos são azuis e profundos como o oceano e não teria expressão melhor para definir a profundidade de nossos olhares e sentimentos, ele tem olhos que não se desvendam facilmente e profundos o suficiente para que eu enxergue sua alma, é assim que nos conectamos.
Mais uma lágrima escorre de seus olhos.
"Pedro, o que está acontecendo?" Pego em sua mão para que ele entenda que estou aqui e não vou sair. "Você sabe que eu estou aqui por você, pode me contar o que está sentindo."
Achei que tínhamos superado essa fase de esconder as coisas um do outro. Eu o olho compreensivamente.
Ele limpa as lágrimas e suspira.
"Eu te amo." É só o que ele diz.
Meu telefone vibra, confiro e é meu pai.
"Não atende, nós... Nós já vamos embora." Ele me pede e não entendo porque não posso falar com meu pai agora.
"Só faz o que eu te digo pelo menos uma vez, ok?" Ele responde como se não soubesse que não gosto de receber ordens, principalmente se vierem de homens. Mas não vou discutir sobre isso agora, afinal já estamos indo embora e vou exigir que alguém me conte logo o que está acontecendo.
Fazemos todo o caminho de volta em completo silêncio. Eu quero saber o que está acontecendo e odeio o fato de não saber.
Abro a porta de casa dando de cara com meu pai e Esther sentados no sofá da sala. Eles levantam assim que eu abro a porta. Algo com certeza está acontecendo.
"Alguém pode me dizer o que está acontecendo?" Eu digo.
"Feliz Aniversário, Filha." Minha mãe vem em minha direção. Desde quando minha mãe está aqui no Rio de Janeiro?
"Ah..."
Meu Deusinho do céu.
"Não está feliz em me ver, filha?" Ela está sendo irônica? Não sei, não sei de nada nesse momento.
"Claro que estou, mãe." Vou a seu encontro dando-lhe um abraço, o clima está realmente esquisito, olho para Pedro e ele desvia o olhar, meu pai está presentes a ter um ataque cardíaco.
"Feliz Aniversário, querida." Esther me abraça. "Deixei um presentinho no quarto." Ela sussurra.
"Sarah, você me ajuda com os pratinhos para o bolo?" Ela me encara mandando uma indireta.
"Claro."
Pego os pratos no armário.
"O que é isso?" Pergunto o mais baixo que posso, sei que minha mãe tem o dom de controlar tudo à metros.
"Não sei, eu e seu pai tínhamos preparado um bolo para você hoje, mas sua mãe ligou dizendo que já estava no aeroporto.''
Minha mãe realmente não tem limites.
O clima ficou bem estranho, principalmente porque minha mãe foi a mais inconveniente possível. Não sei porque ela não me liga faz dias, porque ela apareceu aqui do nada, e porque Pedro parece que tem algo a ver com isso.
Todos sentados na mesa e me sinto como na Santa Inquisição, sei que por mais erros que eu tenha cometido como filha, por ter escondido coisas da minha mãe, não são coisas graves ou que prejudiquem alguém. Mas minha mãe leva tudo pelo lado pessoal e faz os erros pareceram mil vezes pior, sei que vou ser julgada até a tortura ou a morte.
O vestido dela está impecável, com seus cabelos castanhos os quais herdei, todos alinhados e perfeitos, nada nela está fora do lugar, a não ser a noção, é claro. Ela se porta tão perfeitamente no dia de hoje porque está na casa de seu ex-marido e da atual, e isso é muito difícil para ela, sei disso.
"Quando decidiu vir, mãe?" Quebro o silêncio.
"Há uns dois dias."
Pedro está pálido.
"Quando recebi uma ligação de uma garota chamada Rafaela me dizendo que minha filha estava envolvida com um garoto chamado Pedro."
Quase engasgo, agora realmente vou enfartar.
"Mãe, podemos falar sobre isso depois? É meu aniversário."
"Não, vamos falar sobre isso agora, quero saber porquê seu pai não me disse que você estava andando por aí com um drogado."
"Mãe, para por favor."
Pedro e Enrico não dizem nada, Esther está plena como sempre e meu pai sem graça, todos estamos.
"Eu sabia que não seria uma boa ideia deixar você se aproximar."
Ela dispara ofensas.
"Elisa, fico feliz que tenha vindo mas não vou permitir que você entre em minha casa e dispare ofensas contra minha família." Esther se levanta da cadeira e diz. Meu coração acelera ainda mais.
"Você não é ninguém para me dizer o que eu posso ou não fazer." Ela aponta para Esther. Nesse momento desejo que Jesus desça do céu e me leve com ele.
"Elisa, por favor, se acalme." É meu pai quem diz agora. E vejo os olhos da minha mãe ferverem de raiva por ver meu pai defendendo Esther.
"Chega. Sarah, arrume suas coisas que vamos embora agora, já comprei passagem de volta, nosso voo é daqui duas horas."
"Sério, mãe?"
"Sério, você tem uma vida em São Paulo, não vou deixar você estragar isso com qualquer um."
"Você não vai levar ela embora." Pedro diz algo pela primeira vez em horas.
"Ah, e eu gostaria muito de ver de que forma você vai me impedir."
"Eu não vou deixar você levar ela. Miguel, faça alguma coisa."
"Elisa, por favor, vamos conversar melhor sobre isso." Meu pai tenta.
Estou paralisada, assistindo um pesadelo, meu próprio pesadelo.
"Agora, Sarah." Minha mãe ordena.
Estão todos olhando para mim esperando uma reação, mas não posso fazer muita coisa quando se trata da minha mãe, sei que ela não vai embora sem mim e isso só pioraria a situação.
Vou para cima fazer minhas malas, conheço minha mãe, ela está estressada por causa do Pedro, maldita Rafaela. Sei que se eu não ceder à suas vontades, a situação só vai piorar, e não é isso que eu quero.
Enquanto faço as malas Esther entra no quarto, lágrimas escorrem por meu rosto.
"Querida, se você não quiser ir eu e seu pai podemos dar um jeito."
"Você é muito gentil Esther, mas conheço minha mãe, e sei que se eu não for com ela as coisas vão ficar piores."
Suspiro.
"Sinto muito por causar tudo isso, não era o aniversário que eu esperava ter."
Ela me abraça e eu choro mais.
"Você não tem culpa de nada disso, querida. Absolutamente nada."
Lágrimas escorrem pelo rosto dela também.
Pedro entra no quarto, está pálido.
"Vou deixar vocês a sós." Esther se despede exalando gentileza, é assim que ela é.
"Sarah, eu...Porra, desculpa. Estraguei tudo."
"Tudo bem, Pedro, eu sabia que não conseguiria deixar minha mãe de fora por muito tempo."
Ele se senta enquanto empilho meus livros.
"Quando fiquei aquela semana fora eu me encontrei com Rafaela, como você sabe, ela ficou brava por eu tê-la deixado de lado, como você sabe também, mas eu não tinha idéia de que ela seria capaz de fazer isso."
"Eu sei, Pedro. Eu sei, mas agora já era."
"E ela te ligou naquele mesmo dia em que você ficou com febre, eu atendi e disse para ela ficar longe, eu não queria que você voltasse para lá e acabei piorando mais a situação."
Eu gostaria de verdade que essa confusão fosse só um pesadelo.
"Agora já era, Pedro. Já foi, e conhecendo minha mãe, não há nada que possa impedi-la de me levar agora. As coisas vão se acalmar e vou resolver essa situação."
"Não vai, Sarah." Ele senta na cama me olhando com olhos entristecidos.
"Pedro, eu tenho dezessete anos e não posso bancar a adolescente rebelde, minha mãe me arrastaria à força se eu recusasse, e a situação só iria piorar."
Meu celular toca, um número desconhecido. Atendo.
"Oi?"
"Oi, querida, já comprou a passagem de volta?"
Reconheço essa voz. Rafaela.
"Isso foi muito baixo, Rafaela, até para você."
Pedro arregala os olhos ao me ouvir pronunciar o nome dela.
"Espero que tenha uma boa viagem de volta. Ah, quase me esqueci, mandei para você uma lembrança de que vocês dois juntos foi apenas uma ilusão."
Não entendo.
Recebo uma mensagem.
"Sarah, o que está acontecendo?"
Não respondo, meu coração vai sair pela boca.
É uma mensagem dela, um vídeo. Abro e assisto, alguém está gravando Pedro e Rafaela, sei que é do dia em que abri a porta do banheiro naquela festa e vi os dois lá dentro, porque estão na mesma posição e com as mesmas roupas. Pedro está nitidamente bêbado.
"Aquele vestido horrível dela, ninguém avisou que ela está ridícula?" Rafaela diz, Pedro sorri.
"Você chegou a olhar para ela? Toda desajeitada, provavelmente é a primeira festa que vem, nunca nem deve ter ficado com alguém." Ela continua dizendo.
"O que acha dela?"
Consigo ver seus olhos azuis e bêbados.
"Não acho nada."
"Enrico teria um infarto se você ficasse com ela."
"Sai dessa, Rafaela."
"Acho que ela não ficaria com você."
"Que porra você tá falando, Rafaela?"
"Se você não der em cima logo, Hugo vai dar, ouvi ele falando dela."
"Vamos ficar a noite toda falando dela ou vamos curtir?"
"Por isso que você é o meu preferido."
E o vídeo acaba.
Foi um diálogo consolidando todos os meus medos em um vídeo só. Meu medo de ser bom demais para ser verdade, meu medo de ser só uma distração, meu medo de não ser boa o suficiente. Será que foi tudo real? Ou tudo não passou de um delírio? Ele realmente queria ficar comigo ou só tomou iniciativa para alimentar o ego Meu coração está doendo, estou anestesiada pela dor de me sentir enganada. O amor é um sentimento tão subjetivo mas que causa dores reais, concretas e físicas, meu coração dói, meu corpo dói, minha cabeça dói, minha alma dói.
"Sarah, por favor, eu posso explicar." Só pode ser a porra de uma brincadeira. Ele chega mais perto, mas não quero sentir seu toque.
"Não toque em mim."
"Por favor, Sarah."
"Não chegue perto."
"Por favor, Sarah. Você não sabe nada, me deixa explicar."
Ele se aproxima.
"Se chegar perto eu grito."
Ele toma consciência da situação e não se mexe, não sou capaz de decifrar seu olhar.
"Você disse que nada poderia mudar nossa conexão."
"Parece que ambos contamos mentiras."
Olho uma ultima vez em seus olhos que estão vazios, pego minha mala e saio do quarto.
Desço as escadas e me despeço de Esther, meu pai e Enrico.
Não me lembro muito de tudo o que aconteceu depois da despedida, só me lembro de embarcar no avião e fechar os olhos. E aqui estou, ao lado da minha mãe que dorme profundamente, não consigo dormir nem reagir, estou apenas fluindo, como um objeto que boia no oceano longínquo até que chegue a algum destino.
Desde o desembarque até em casa, minha casa, São Paulo, só consegui sentir um aperto no coração, não sou mais capaz de raciocinar, estou me sentindo usada. Apenas sigo, como um barco segue a correnteza sem saber se vai completar o caminho ou bater em uma pedra, nas últimas horas bati em várias pedras e não sei se tenho forças para outra, então apenas me deixo ser levada pela correnteza que é a vida, ela está fluindo e permito que me leve.

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