Termino meu banho e tento entender tudo o que aconteceu em apenas um dia. Minha cabeça vai explodir e eu só quero deitar em minha cama quentinha.
Está chuviscando agora e o ar está um pouco gelado, o que me faz sentir arrepios de frio. Confiro se meu pai está dormindo e ele dorme feito uma pedra, tomamos banho no meu banheiro que é bem longe do quarto dele, graças a Deus. Morreria de vergonha se meu pai visse a cena que não para de ser repassada em minha mente.
Abro a porta do meu quarto e Pedro está sentado na cama. Estou só de roupão e e espero que ele fique onde está, não confio em meus hormônios quando estou perto dele.
"Quero te explicar o que aconteceu" Sua voz doce soa como uma ladainha.
E eu sento na cama ao seu lado para ouvi-lo, mas um ar gélido entra pela janela me arrepiando por completo. "Põe um pijama, Sarah. Não quero que fique gripada ou algo do tipo." Ele diz e me tira do meu transe, ele fica esplêndido até de moletom e camiseta, seus cabelos estão molhados e seus olhos calmos. Sua preocupação comigo derrete meu coração.
"Aah, claro, eu..." Penso em pedir para ele se virar, não sei se me sinto tão confortável com ele me olhando assim.
Ele ri discretamente e se vira, como se adivinhasse meus pensamentos.
"Está rindo de mim, Pedro?" Questiono em tom de sarcasmo enquanto ele se vira e eu me visto.
"Longe da minha pessoa cometer tal atrocidade, Sarah."
Ele é bom no sarcasmo, é assim que sei que sou realmente péssima.
Me aproximo dele que ainda está virado de costas para mim.
"Muito bom, porque eu odiaria questiona-lo." Digo aproximando meus lábios em sua orelha. E nesse exato momento sei que o afetei de alguma forma, sinto o modo com que seu corpo se comporta com minha aproximação, ele sente a minha presença. Ele se vira com seus oceanos me encarando, me sugando e me tragando, eu me deixaria levar pela correnteza de seu oceano de sentimentos sem pensar duas vezes.
"O que você está fazendo comigo, Sarah?" Ele me encara.
"Me pergunto o mesmo todos os dias desde que cheguei." Ele encosta sua testa na minha de forma carinhosa, meu coração se aquece. Não temos a resposta para tal dúvida, a única coisa que sabemos é que há algo entre nós, e que é recíproco.
Ele suspira.
"Olha, você ficou do meu lado em todos os momentos desde que chegou, não soltou minha mão, então merece saber o que está acontecendo. Aquele é meu padrasto, ele namora minha mãe já faz um tempo. Ela não ficou muito bem depois que meu pai morreu, sabe? E então ela conheceu esse cara, e eu o odeio. Meu Deus, como eu o odeio. Ele vive batendo em minha mãe e me enchendo quando eu tento me intrometer, e foi isso o que ele veio fazer hoje, descontar sua raiva. Ele bateu na minha mãe semana passada como você deve saber, mas minha mãe acabou retirando a queixa como sempre, por medo mesmo, e acho que porque a essa altura ela não consegue viver sem ele, pelo menos ela acha que não consegue. Então ele descobriu hoje que foi eu e seu pai quem ajudou minha mãe a fazer a denúncia. Era essa a ligação que recebi mais cedo, era minha mãe me avisando que ele provavelmente viria atrás de mim, já não é a primeira vez mesmo." Ele diz e olha para baixo esperando que eu fale algo.
"Por isso não aguentei ficar na minha mãe, ela retirou a queixa e ele voltou para a casa dela, ele não me suporta e o sentimento é recíproco. Então Rafaela me ligou, ela fareja meus momentos de angústia, sabe quando estou na beira do abismo e se aproveita disso, ela me usa também. Mas não tirei você da cabeça, eu queria correr para seus braços mas não podia, tinha que te deixar fora da minha confusão. E então Rafaela apareceu e eu apenas fui, mas não encostei nela, juro. Era você quem eu imaginava estar tocando e aí ela ficou puta da vida, nunca neguei um momento à ela. É daí que vem sua raiva por você, pois nem quando ela tem meu corpo me consegue por inteiro, meu corpo estava lá mas meu coração estava com você."
"Entendo." É tudo o que consigo dizer, é muito para assimilar.
E eu entendo tudo agora, por isso seu ódio gratuito por mim, por isso sua necessidade de me humilhar, ela quer ele por completo e não o tem, porque é comigo que seu coração está. E isso aquece meu coração de uma forma inexplicável. Nada apaga toda a angústia que senti durante essa semana, mas agora posso entender tudo. E saber que ela não o teve por inteiro me alivia e muito.
Mas o foco é no que está causando todos esses problemas, sua família, isso é horrível, eu não fazia ideia de que ele tinha um padrasto abusivo e toda essa merda.
"Mas...Você já tentou conversar com sua mãe sobre essa situação?" Eu pergunto colocando minha mão sobre a dele, quero que ele sinta meu carinho.
"As coisas não funcionam bem assim, Sarah. Por isso eu disse hoje na festa que você não entende. Minha mãe mora com ele, depende dele, é ele quem leva comida para casa e ela não vive sem ele. Ele me odeia porque minha mãe sempre disse que sou parecido com meu pai em quase tudo, nunca me suportou, por isso eu fico sempre aqui, entende? É minha segunda casa. É deprimente demais ver minha mãe nessa situação, mas depois que meu pai morreu, ela entrou nessa vida com ele, ele bebe demais e faz o que bem entende com ela. E não tem nada que esteja ao meu alcance para fazer com que isso mude, se ela não se dói vendo o próprio filho apanhando do cara, é porque as coisas já estão muito profundas, entende?" Ele diz com lágrimas nos olhos.
"Claro que entendo, Pedro, claro que entendo." Coloco as mãos sobre sua face quente e molhada pelas lágrimas. A cada dia que passa vejo um grau mais vulnerável de Pedro, estou começando a ficar preocupada sobre onde isso vai dar. Mas não me importo. Estou nessa agora.
"E sobre as garotas, bem, eu... Eu nunca tive com o que me importar, entende? Depois que meu pai morreu tive uma vida de merda, e se não fosse por seu pai e a mãe do Enrico, sabe-se lá Deus como eu estaria hoje, mas mesmo assim preciso de um refúgio pra tudo isso, entende? Ou melhor, precisava. Por isso as garotas. Quando digo que elas não significam nada para mim é real, nunca quis me importar de verdade com alguém antes de você."
"Antes de mim?" Pergunto feliz, porque isso quer dizer que significo algo para ele.
"Você se importa comigo, Sarah. De uma forma que ninguém nunca se importou. A forma com que você me toca, com tanto carinho, nunca senti tanto carinho antes. As meninas me tocam por prazer e não porque se importam, elas também me usam de certa forma." Ele me olha intensamente, tocando meu coração.
Eu realmente não sei o que dizer, o problema é bem maior do que eu pensava e compreendo o porquê desse temperamento oscilando o tempo todo. Ele nunca teve carinho de quem deveria ter, não sabe ser legal com as pessoas, não se sente amado. Jesus, que coisa horrível, me sinto muito mal por ele. Quero que ele sinta o meu carinho por ele, estou aqui para ele agora, e não pretendo ir embora. Quero abraça-lo e dizer que vai ficar tudo bem, que estou aqui agora.
"Vem Cá" eu digo estendendo o braço para um abraço.
"Não preciso que sinta pena de mim." Ele diz ativando seu modo defensivo.
"Não é pena, Pedro. É compaixão, carinho, quero que você possa sentir meu carinho. Estamos nesse barco agora, entende? O barco está em alto mar e não dá mais para voltar. Como eu disse, não me importa se o barco vai afundar ou não, eu estarei aqui do mesmo jeito, não vou te deixar sozinho nessa. Então por favor, não fuja e nem esconda as coisas de mim, eu preciso saber o que está acontecendo se quiser que eu esteja aqui. Entende?"
"Entendo." Ele diz em tom calmo e carinhoso.
"Fico feliz que estamos nos entendendo, essa semana foi uma das mais angustiantes da minha vida." Ele diz lendo meus pensamentos.
"É, para mim também." Eu digo sorrindo de canto.
E ele vem. Nos abraçamos por um longo tempo e ele diz: "Dorme comigo? Por favor."
Já passei por algumas coisas nos últimos dias mas nada que chegue perto disso.
"Você já dormiu com alguém antes?" Ele diz como se lesse meus pensamentos.
"Só com a minha mãe."
Rimos.
Ouvi-lo implorando para dormir ao meu lado em busca de conforto me dói o coração, estou pronta para fazer isso por ele. Não quero nem pensar no que minha mãe faria se descobrisse isso. Mas não penso nisso agora, nesse momento só penso nele.
"Vem, a cama tem espaço suficiente para nós dois." Eu digo apontando para minha imensa cama de casal que meu pai colocou em meu quarto na busca de compensar seus anos de ausência. Pelo menos serviu para alguma coisa.
Não sei o que vai acontecer amanhã ou como vai estar seu humor, só quero aproveitar o máximo ao seu lado agora.
Ele deita na cama de um lado e eu deito sem jeito do outro em uma distância considerável.
"Você sabe que pode conversar comigo sobre qualquer coisa, não sabe? Eu estou aqui pra você. Por favor, não fuja mais." Eu digo me virando e ficando de frente com ele. Ele coloca meu cabelo atrás da orelha com carinho. "Eu sei, meu bem. Eu sei, não irei." Seus olhos são anestésicos para meu corpo, quando mergulho em seu olhar não há mais nada, mais ninguém, apenas Pedro e seu profundo par de oceanos.
"E nem me troque por outras meninas, por favor." Digo baixinho, mas é tarde, sua respiração já está pesada e os olhos fechados. De qualquer forma, não consigo ter essa conversa agora, sei que demanda mais esforço do que eu tenho agora, e agradeço por ele não ter ouvido.
Ele se aproxima e se aninha de forma que eu fico deitada em seu peito. Não sei como vamos lidar a situação a partir de agora, mas estou disposta a estar aqui para ele. Ele precisa de alguém que lute por ele, e estou disposta a fazer isso.
Estou dormindo com um garoto, deitada em seu peito e nas últimas vinte e quatro horas já fiz mais coisas do que eu imaginaria fazer minha vida inteira. Ou pelo menos não antes de ir para faculdade. Nunca fui de sonhar com casamento nem nada, mas minha mãe ficou paranoica depois que meu pai a deixou, então ela só pensa em planejar minha vida e pensar em como ela quer que seja perfeita e diferente da dela. Mas já não me conheço mais. Essa é uma nova versão de mim. A bolha da qual eu vivi durante dezesseis anos estourou e eu vejo o mundo agora.
Ouço um barulho e abro os olhos de pressa, vejo minha mãe. O que minha mãe faz aqui? Por que ela chora tanto? Tento levantar, tento correr até ela, quero saber porque ela chora, o que aconteceu. Mas não posso, não consigo me mexer, estou presa nessa cama vendo essa cena. A angústia toma conta do meu peito.
E então eu acordo. Um pesadelo.
Minha blusa está ensopada de suor e minha respiração descontrolada. Meu coração vai sair pela boca.
Já tive pesadelos antes mas nunca tão reais, tão intensos e que me afetassem tanto. Olho para o lado e Pedro não está alí, meu celular marca cinco e meia da manhã.
Sento na cama e me encosto na parede, foi um pesadelo horrível. Levanto e faço um coque no cabelo, abro a porta e desço as escadas em direção à cozinha para beber um copo de água. Meu pai e Esther continuam dormindo. Pedro sumiu e Enrico ainda não apareceu. Meu coração acelera e o nervosismo vem à tona. Cadê Pedro.
Procuro na cozinha e na sala, meu coração dispara mais rápido a cada olhar sem sua imagem. Vou em direção à porta dos fundos e ela está entreaberta. Abro e ele está de costas, fico imaginando o que se passa em sua mente nesse momento, as coisas que ele teve que enfrentar ao longo de sua vida foram duras demais, sinto raiva por não ter estado aqui antes por ele, mas as coisas acontecem como têm que acontecer.
Caminho em sua direção e encosto minha mão quente em seu ombro. Ele vira e coloca as mãos em minha cintura.
"O que você está fazendo aqui?" Pergunto e meu corpo se arrepia. Meu corpo está pelando de quente e sair no vento frio não foi boa ideia.
"Vem, vamos entrar, você vai morrer de frio aqui." Ele me guia de uma forma protetora. Não consigo decifrar seu olhar e nem entender o que ele faz aqui sozinho, mas acho que não é uma boa hora para tocar no assunto. Então, não toco. Caminhamos até o sofá da sala. Ele me senta em seu colo.
"Eu estava sem sono e não queria te acordar, e também fiquei com medo de alguém nos ver. Não sei seu pai se sentiria confortável." Ele me olha firmemente.
"Aah..." Eu digo desanimada, não era isso que eu queria ouvir. Talvez era o que eu esperava, mas não o que eu gostaria.
"Você está pegando fogo, Sarah!" "O-o que aconteceu? Esta tudo ok?" Ele me olha franzindo a testa, devo estar com febre porque estou realmente muito quente.
"Tive um pesadelo. Foi bem real e acordei assim, ensopada e pegando fogo." Direciono meu olhar para baixo. O pesadelo realmente me assustou, nunca vivenciei algo tão real assim.
"Desculpa por ter deixado você sozinha, estou acostumado a dormir sozinho e ter companhias de vez em quando, mas nunca uma noite inteira, ou pelo menos a madrugada inteira." Ele diz me olhando e sorrindo de canto.
"Tudo bem..."
"Desculpa eu... Desculpa, ok? Estou tentando." E ele coloca meu cabelo atrás da orelha com carinho. Estou conhecendo um Pedro carinhoso, espero que continue. "Sabe, Sarah...Você..."
Ele começa a falar e meu coração se abre, quero ouvir o que ele tem à dizer, sobre nosso momento juntos, sobre o que isso significa pra ele, mas ele não termina porque somos interrompidos.
A porta abre e bate na parede, Enrico entra cambaleando, ele não aguenta com o próprio peso e cai. Leva junto com ele a mesinha a qual o vaso rose de Esther fica em cima. Ele cai, a mesa cai, o vaso cai e a casa toda acorda, ou o bairro todo talvez, levando em consideração que ele despencou no chão. Essa noite não vai ter fim nunca.
Levanto assustada do sofá e Pedro levanta correndo para ir em direção do meu irmão postiço. Ele está desacordado, sangrando e cheirando todo o tipo de bebida.
"Vem, pega desse lado que eu pego desse." Pedro diz me tirando do transe, eu não o vi na festa e não tenho ideia de onde ele estava. Não sei qual o problema desses garotos que aparecem em casa bêbados e machucados.
Levamos ele até o quarto fazendo o máximo silêncio para não acordar meu pai e Esther, mas é falho. Eles vêm atrás de nós.
"Mas eu posso saber o que... Jesus! Enrico! Miguel me ajuda aqui!" Esther grita para meu pai e vem correndo.
"Merda." Pedro murmura.
"O que aconteceu?" Ela pergunta chorando.
"Não sei, eu... Eu escutei ele chegar e o vi cair perto da porta, eu realmente não sei." Respondo.
Deitamos ele na cama, está desacordado e sua situação é feia, bem feia.
Ver o semblante de Esther tão triste e decepcionado me doeu. Não aguentaria se minha mãe me olhasse assim. Tem algo acontecendo, algo está errado porque eu não o vi nas duas festas que fui e sei que ele estava lá porque Laura me falou. Onde ele estava até esse horário? Porque duvido que a festa tenha durado até agora, quando fui embora já não tinha muita gente.
"Vamos levar ele para o hospital?" Pergunto ingenuamente, nunca vi ninguém nessa situação. As coisas são realmente muito diferentes por aqui.
"Não há necessidade, ele precisa de um banho bem gelado e uma boa noite de sono." Meu pai me responde.
"Eu cuido dele, podem ir dormir, está muito tarde." Pedro responde.
"Eu te ajudo, vão dormir vocês duas." Meu pai diz para mim e Esther.
Esther é bonita até de pijama, seu cabelo possui poucas ondas e seu pijama valoriza seu corpo.
"Nesse caso eu vou tentar dormir então." Ela diz e vai para seu quarto.
Fico sentada na cama de Enrico enquanto meu pai e Pedro dão banho nele, a impressão que tenho, é que não é a primeira vez que isso acontece. Encosto a cabeça na parede e penso no dia interminável que eu tive, á essa altura já devem ser umas seis da manhã, e meu corpo está exausto, sou incapaz de tomar qualquer atitude nesse momento.
Sinto alguém me carregando no colo, mas meu sono está profundo demais para que eu desperte, apenas sinto o quentinho da minha cama e um beijo na testa.
"Durma bem, Sarah."
E eu apago.
Acordo assustada com meu celular tocando. Odeio quando isso acontece, é minha mãe, mas não tenho paciência para ela agora, ignoro sua chamada e vejo que é meio dia. Sento na cama e sinto minha cabeça martelar, é como se alguém estivesse me socando. Olho em minha escrivaninha e tem um copo de água, um comprimido e um post it com belas letras. "Para a sua primeira ressaca, dona Capitu."
Sorrio, seu cuidado e preocupação comigo me fazem suspirar, amo que ele usa referências literárias.
Tomo o remédio e vou direto para o banho, nunca tive uma noite tão agitada dessa forma, tanta coisa aconteceu que mesmo que eu tentasse contar tudo para as meninas eu não conseguiria, nem cogito a possibilidade de contar para minha mãe.
Saio do banheiro e coloco uma calça confortável e uma camiseta do Harry Potter. Desço para a cozinha e Pedro está no balcão com uma cheirosa xícara de café, sinto o aroma à longa distância.
"Bom Dia, Sarah." Esther me diz, suas olheiras indicam que ela também teve uma noite difícil, todos tivemos.
"Bom Dia, Esther."
Caminho até o balcão ao lado de Pedro e me sento servindo meu café.
"Bom Dia." Pedro se aproxima e diz em meu ouvido, para que Esther não ouça. Meu coração dispara, é sempre a mesma reação.
Olho para ele sorrindo.
"Bom Dia, devo chamá-lo de Bentinho ou Escobar? Você escolhe." Pisco sorrindo.
"Quem você escolheria?" Ele fixa seus olhos em mim.
"Os dois, é claro." Pisco.
"Vou ver como Enrico está." Esther nos diz.
"Claro." Dizemos.
"Como ele está?" Olho para Pedro.
"Melhor." Ele desvia o olhar.
"Ele só bebeu? Porque no estado em que ele estava, não parecia que só tinha bebida em seu corpo." Pergunto.
"Não sei, Sarah." Ele não me olha nos olhos, e sei que ele não quer falar sobre isso.
"Onde está meu pai?"
"Dormindo, cuidamos até tarde do Enrico ontem."
"Não me lembro de ter ido para cama." Olho para ele.
"Eu coloquei você para dormir, estava dormindo como um anjinho." Ele me olha sorrindo, a cada dia que passa ele fica mais carinhoso, espero que isso permaneça assim.
"Obrigada pelo remédio, minha cabeça realmente dói muito."
"É o fruto da ressaca, toma seu café que passa." Ele pisca, e eu obedeço.
Ele consegue ser lindo de cabelo despenteado e bermuda de pijama, sua bermuda é justa e valoriza o que ele tem de melhor.
"Fã de Harry Potter?" Ele pergunta ao ver minha camiseta.
"Você nem imagina como." Sorrio.
"Há muitas coisas sobre você que eu ouso imaginar, Sarah."
Eu coro com sua resposta, ele adora me deixar envergonhada com suas palavras, com seu duplo sentido. Se eu não o conhecesse jamais diria que tem dezessete anos.
"Vai fazer o que hoje?" Pergunto.
Ele se aproxima de meus ouvidos, sinto sua boca encostar em minha pele, sinto sua umidade, e meu corpo tem um segundo de arrepios intensos.
"Vou levar você para almoçar." Ele diz baixo e calmamente, sua voz é inebriante e anestésica para meu corpo.
"Tudo bem." Sorrio. Meu coração aquece e ele percebe as reações que causa em meu corpo, e ama isso.
"Eu te intimido tanto assim, Sarah?" Sua voz doce e maliciosa invade meus ouvidos novamente.
"Você nem imagina." Sorrio e viro para encara-lo. Ele se aproxima e me dá um leve beijo, rápido, calmo e discreto.
Meu coração pula e meu corpo amolece.
Pedro e eu avisamos à Esther que iríamos dar uma volta, estamos sendo extremamente discretos, não sei o que meu pai pensaria disso, e minha mãe teria um ataque cardíaco na melhor das situações. Nós também não sabemos o que somos ou o que temos.
Meu maior medo é de eu acabar me magoando, sempre dizem que a primeira decepção amorosa a gente nunca esquece, é a mais dolorosa, mas não sei se estou pronta para isso. A questão é que mesmo sabendo de meu futuro incerto, não sou mais capaz de simplismente o abandonar, ele já sofreu muitos abandonos durante a vida, e não vou ser um deles. Mergulhei nisso profundamente, e não sei se tenho fôlego para voltar à superfície, há apenas litros e litros de um oceano profundo e escuro, onde não chega luz do sol para iluminar meu trajeto, apenas questionamentos e medo.
Pegamos metrô até um bairro bem aconchegante, próximo da praia. Possui bares e restaurantes muito receptivos, com músicas, mesas do lado de fora e um cheiro divino.
Ele me traz em um restaurante simples e sem muito movimento, sentamos em uma mesa no fundo, e pelos vidros sou capaz de ver o mar quebrar suas ondas na praia.
"No que tanto você pensa?" Ele me tira de meus devaneios, está sentando em minha frente, atrás dele está o mar, e diversos casais fazendo caminhada pela rua. Me lembro de quanto me perguntei se eu e Pedro um dia seríamos assim.
"A primeira vez que reparei casais caminhando pela orla da praia me perguntei se um dia seríamos assim." Eu o olho fixamente, sei que é um assunto do qual ele não se sente muito confortável falando.
Mas ele ri.
"Assim como? Caminhar, fazer compras, flores e cinema?" Ele sorri, mas é um sorriso malicioso.
"Sim." Respondo secamente.
"Você sabe que não sou assim, Sarah."
"Você esbanja cavalheirismo e fofura, senhor Pedro." Sorrio para quebrar o clima chato que criei.
"Me sinto lisonjeado com tal elogio."
"Nesse momento eu diria que você está mais no estilo Bentinho, fazendo o estressado."
Rimos. Rimos o almoço inteiro, quando ele se estressa com o garçom porque confundiu nossos pedidos, quando vimos um cara carregando diversas sacolas de compras para sua namorada, quando roubo sua batata frita, rimos de coisas simples e bobas, como um casal normal faria.
Almoçamos nesse aconchegante restaurante que possui um clima bem praiano. Passamos três horas rindo e comendo, sem pensar nos problemas que teremos que lidar quando voltarmos à realidade, me sinto realmente e inteiramente feliz e relaxada pela primeira vez desde que cheguei.
O garçom chega com a conta, é um garoto aparentemente da minha idade ou uns dois anos mais velho. Ele me olha firmemente antes de se dirigir à Pedro. Me sinto desconfortável. E Pedro percebe, é obvio.
"Algum problema?" Pedro pergunta sério, seu bom humor já era.
O coitado do garçom se atrapalha todo ficando sem graça, Pedro sabe intimidar as pessoas como ninguém.
"Vão querer mais alguma coisa?" Ele diz olhando apenas para Pedro dessa vez.
"Só a conta, por favor." Pedro diz da forma mais seca possível. E o garçom se retira.
Eu o encaro com desaprovação.
"Não precisava de tanta grosseria, seu Dom Casmurro."
"Vou fingir que não sei o significado de Casmurro."
Reviro os olhos.
"Ele quase caiu em cima de você de tanto te olhar." Percebo o ciúmes em sua voz. Não deveria me sentir feliz com isso, mas me sinto, e muito.
"Você está com ciúmes, Pedro?" Sorrio de orelha à orelha. "Cada vez mais semelhante a Bentinho."
"Agora chega de insultos. Vou levar você para outro lugar que acho que irá gostar." Ele sorri desviando do assunto. Gostaria que ele dissesse que sou sua e que sente ciúmes de mim. Mas me contento com seu sarcasmo.
"Estou feliz hoje Pedro, muito feliz." Eu o olho nos olhos.
"Eu também, Sarah. Você não imagina o quanto."
Caminhamos até a praia e chegamos próximo à um monte de Pedras, há uma trilha para ser seguida, ele me guia e eu só o sigo, me deixo ser levada pela correnteza.
Chegamos ao lugar mais lindo que meus olhos já tiveram a oportunidade de ver. É um lugar íngreme e alto, sou capaz de ver todo o oceano daqui, vejo as pessoas lá embaixo como formigas, e uma imensidão de água, meus olhos enxergam mais água do que já viram a vida toda.
Sinto a brisa no rosto, o cheiro de mar, e o frio na barriga.
"O que acha?" Ele pega minha mão e se posiciona ao meu lado.
"É lindo." Sorrio.
"Eu sabia que iria gostar."
"E incrível."
"Eu sei, obrigada." E seu senso de humor me deixa feliz, é bom ver um Pedro que esqueceu dos problemas por pelo menos um dia.
"Eu estava falando da paisagem, mas serve para você também." Rio.
Nos sentamos em uma pedra e não sou capaz de tirar meus olhos desse oceano lindo e inenarrável.
"A imensidão do mar me fascina, sua força e beleza são inexplicáveis." Eu digo admirando tamanha paisagem.
Ele pega meu queixo e vira meu rosto para encara-lo.
"Nenhum oceano é capaz de superar a profundidade que o castanho dos seus olhos tem."
E nesse momento ele mergulha com profundidade em meu coração, ele me tem. Sou dele e ninguém me convence do contrário. Ele tem meu coração como Luís XIV tinha a França, com absoluta e inteira posse, sem questionamentos e justificações, sou dele de corpo e alma.
A forma como ele lida com as palavras é surreal, ele é uma livraria ambulante com todas as citações e toda a maturidade para dize-las. Ele me tem apenas com suas palavras e seu domínio pelos sentimentos, ele é seguro de si e decidido em seus diálogos.
Em dezesseis anos de vida li todos os romances clássicos que alguém deve ler ao longo de sua vida, li juras de amor e senti a dor daqueles que morreram por amor. O romance sempre teve meu coração, todos eles. Mas nunca entendi como alguém poderia morrer de amor, como alguém poderia ser tão entregue à outro indivíduo a ponto de não saber viver sem. Mas eu nunca tinha vivenciado nada parecido, quando se decide que seu coração não é mais seu, é seu e de mais alguém, você dá a esse alguém o poder de controle sobre suas emoções, sobre seu psicológico, e eu, aos dezesseis anos de vida, em meu primeiro amor, vivencio tal momento com borboletas no estômago.
"Você tem meu coração, Sarah" Soa como uma flechada em meu coração.
Em uma tarde de dezembro, no crepúsculo, de frente para o mar, ouço minha primeira jura de amor. As pessoas costumam entender que juras de amor são promessas e as maiores loucuras que alguém pode dizer em nome do amor, mas eu discordo. Entregar seu coração à alguém é uma forte e intensa jura de amor, é um passo além, é um novo oceano, nova correnteza, e para mim significa que tenho uma responsabilidade muito maior do que as pessoas consideram.
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas, tu és responsavel pelo coração que cativas, pelo ser humano que ali habita, pelo sentimento que você provoca e intensifica. Tu és responsável, eu sou e Pedro também.
Chegamos em casa já é quase noite, Pedro não entrou, disse que precisava fazer algumas coisas, ele ficou um tanto estranho depois que falou sobre seus sentimentos.
Vou direto à meu quarto com o coração confuso, ser adolescente é não ter certeza sobre absolutamente nada, tudo é novo, inesperado, intenso e grandioso, tudo tem o dobro do tamanho que na verdade tem.
Meu telefone toca novamente. Minha mãe.
"Oi mãe."
"Oi filha, onde você estava?"
Sento na minha cama e respiro fundo.
"Com a Laura, mãe."
"Entendi. Então está havendo algum erro de comunicação, porque liguei para seu pai e ele me disse que você estava com um tal de Pedro."
Merda, mil vezes merda.
"Quem é Pedro, Sarah? Você fica fora de casa dois dias e já gruda em um garoto?" Ela diz duramente.
Desligo. Não consigo lidar com isso agora, não consigo lidar com nada.
Desço para tomar um copo de água e tomar com meu remédio. Meu pai, Esther e Enrico estão na cozinha.
"Oi filha, como foi o passeio?" Meu pai tem a audácia de perguntar, como se já não tivesse ido fofocar todos os detalhes para minha mãe.
"Tirando o fato de que você já foi fazer a fofoca para minha mãe, está tudo certo."
Esther e Enrico me olham firme.
"Ela me ligou e achei melhor dizer a verdade."
Estou explodindo de raiva, quero esmaga-lo.
"Agora você opta pela verdade, pai? Engraçado, porque à dez anos você não optava."
"Filha, você não precisa falar dessa forma comigo." Ele levanta do balcão, não sei o que ele pretende fazer, mas o interrompo.
"Você é quem não precisa voltar à tornar minha vida um inferno."
Coloco o copo em cima da pia e corro para cima. Entro em meu quarto e me soterro em baixo das cobertas, sou uma explosão de hormônios e sentimentos, não sou capaz de lidar com nada nesse momento. Minha mente se assimila à uma obra do Salvador Dali, à primeira impressão causa estranheza, difícil interpretação e para aqueles que não não capazes de decifrarem, confusas. E nesse momento, nem mesmo eu sou capaz de decifrar e interpretar minha própria mente e meus sentimentos.
Ouço uma batida na porta. Esther.
"Posso entrar?"
"Pode."
"Trouxe um chá para você." Ela caminha em direção à minha cama com toda sua calma e carinho.
"Desculpa por ter gritado, você não merecia presenciar aquilo." Digo sentando na cama ao seu lado, estou com o rosto inchado de tanto chorar, é claro. O dia em que eu conseguir controlar minhas emoções chove canivetes.
"Ah, querida. Se seu nervosismo fosse o meu maior problema estava tudo resolvido." Ela diz se aproximando mais, devagar e calmamente.
"Esse tipo de coisa acontece mesmo, e seu pai deveria ter conversado com você à respeito, antes de dizer algo para sua mãe, sabendo o jeito que ela tem."
Começo a chorar. Meu Deus, sou um poço de hormônios incontroláveis.
"Ah, querida, vem cá." Ela me coloca em seu colo.
"Pode chorar, vai te fazer bem." Ela acaricia meus cabelos.
Se Camões ainda tivesse vida poderia escrever um soneto sobre todos os litros que eu seria capaz de chorar.
"Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Sarah."
E choro, em um momento extremamente vulnerável e sentimental. Nunca tive a oportunidade de me dedicar ao sofrimento de ser abandonada por meu pai, tive que cuidar da minha mãe, mas agora sinto que posso, sinto que poderia chorar os sete mares se quisesse, Esther está aqui agora e isso de alguma forma me conforta. Sinto falta de poder contar com alguém, em casa nunca pude desabafar dessa forma com minha mãe, porque nunca fomos assim, mas ela estava sempre ali e eu tinha Mari e Liz, e convém que eu nunca tive tantas emoções com que me preocupar. Mas agora me sinto sozinha, perdida, são tantos sentimentos, tanta coisa acontecendo, e não tenho ninguém para pedir conselho ou só desabafar, me sinto angustiada.
Tomo o chá bem quente que ela me preparou e adormeço em seu colo, como uma criança quando rala o joelho e chora no colo da mãe, a diferença é que não sou mais criança e Esther não é minha mãe. Mas é assim que me sinto. Esse final de semana foi intenso, confuso e a briga com meu pai foi o estopim.
Sinto que não sou mais a Sarah de um mês atrás, não sei ao certo quem sou ou quem estou me tornando, mas o processo de desenvolvimento pelo qual passamos é sempre difícil, nos tira da nossa zona de conforto e nos faz sentir tudo e tanto. E nesse momento é isso que eu sinto, tudo e tanto.
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Inefável
Romance"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...