Escuridão e Escrivaninha

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ENRICO

Eu estava na escola, era um dia nublado mas nunca liguei para o clima, tanto fazia desde que eu pudesse jogar futebol na educação física. Pedro estava sentado sozinho na mesa do refeitório, seu pai tinha acabado de morrer, minha mãe me disse que ele tinha sofrido um acidente mas que ele morreu no hospital, acho que o médico fez alguma coisa errada, não sei direito, não tinha coragem de perguntar. Não tenho muitas lembranças desse momento da minha vida, eu era muito pequeno e a única coisa que me importava era jogar bola e falar de meninas com meus amigos, as meninas me davam medo, Clara, que era um ano mais velha que eu, vivia puxando meu cabelo no intervalo, nunca entendi o porquê, minha mãe me disse uma vez que é porque ela gostava de mim, mas nunca tive certeza disso, não entendia como alguém que gostava de mim me machucava, nunca fez muito sentido. Laura, que era de outra sala também, mais nova, me defendeu quando uns garotos mais velhos abaixaram minha calça na frente da escola toda, todo mundo riu de mim, é claro, e fui grosso com Laura, não precisava de sua defesa, não precisava de sua pena e proteção, nunca agradeci Laura por isso, apenas fui grosso e deixei que ela fosse embora. Não sabia nem quantos anos mais nova ela era, nunca prestei muita atenção nela, era muito na dela, só sei que ela não era da minha turma e nem da turma de Clara, eu conhecia todos da turma de Clara, todos me conheciam também, sempre fui popular entre as pessoas, menos com Clara, Clara nunca deu a mínima para mim, nunca respondeu meus bilhetinhos e nem agradeceu as balas que eu dei para ela, Clara nunca se importou.
Esse dia me sentei ao lado do Pedro e não falei nada, não precisava, minha presença bastava, eu sabia, ele sabia, o fato de sermos crianças não diminui nossos sentimentos, as pessoas acham que sim, acham que criança não entende direito o que acontece, mas entende. Eu e Pedro nos entendíamos, ele estava sofrendo e eu sabia, e estava ali por ele, porque era o certo a se fazer, era o que pessoas legais deveriam fazer, não éramos melhores amigos até então, só colegas que estavam ali um para o outro. Mas esse dia foi diferente de todos os outros, porque foi o pior da minha vida.
A minha pessoa preferida no mundo era meu pai, ele me levava para todos os jogos de futebol do nosso time, tínhamos camisetas de torcida e ele tinha me ensinado o hino do nosso time, cantávamos juntos todas as manhãs quando era dia de jogo, minha mãe odiava, ela odiava futebol, mas era uma coisa nossa, minha e do meu pai, só nossa, só nós entendíamos.
Só tinha uma coisa no mundo que eu odiava mais que tudo, quando minha mãe brigava com meu pai, eu achava que era tudo culpa dela, que ela era chata e brigava com meu pai, eles gritavam e meu pai saía com o carro, isso doía meu coração, eu não gostava quando eles gritavam e ele saía com o carro. Meu esconderijo era embaixo da minha escrivaninha, ela de certa forma abafava o som dos gritos e eu me sentia protegido, todas as vezes eram assim, até que meu pai voltasse e me tirasse de baixo da escrivaninha, nunca minha mãe, sempre meu pai, ele sempre voltava, sempre. Mas não aquele dia, não no dia quatro de julho, aquele dia ele saiu com o carro e eu esperei embaixo da escrivaninha, esperei, esperei, esperei, mas foi minha mãe quem me tirou de lá, não ele. Nesse momento eu senti, não sei o que senti, não sei porque senti, nem sei se senti de verdade ou era coisa da minha cabeça, mas meu coração doeu, bem lá no fundo, como se fosse na alma, como se fosse uma dor tão profunda que não se sabe onde dói, uma dor eterna. 
No outro dia, no dia cinco de julho sentei ao lado de Pedro, era dia de jogo e meu pai não voltou para cantar o hino do time comigo, ele sempre voltava, ele sempre me acordava, ele sempre estava lá, mas não no dia cinco de julho, esse dia ele não estava, e nem estaria nos outros.
No dia cinco de julho apoiei meu amigo da escola que tinha perdido seu pai, de certa forma eu sentia um pequenino pedaço da sua dor, porque sentia falta do meu pai que ainda não voltara para casa. Esperei meu pai no portão da escola porque era dia de jogo e ele sempre saía mais cedo do trabalho para me buscar, mas ele não veio, ele não veio me tirar da angústia. A mãe do Pedro me levou embora e sua cara não era boa, mas não tinha como a cara de uma mulher que perdeu seu marido ser boa, não faça perguntas idiotas, era o que eu pensava, é claro que ela não está bem, seu marido nunca mais vai voltar para casa, eu pensava.
Cheguei em casa e encontrei minha mãe chorando no chão da sala, fiquei em pânico, nunca tinha visto minha mãe chorar daquela forma, nunca nem tinha visto minha mãe chorar, ela não demonstrava suas emoções com frequência, mas aquele dia ela estava sentada no chão da nossa sala, em cima do nosso tapete branco de pelinhos, meu pai jogava dominó comigo nele, era quentinho, ela chorava sem parar, um choro infinito e constante, um som que ecoava em minha mente, ecoou por anos e anos, suas lágrimas poderiam preencher um mar, eram longas e pesadas, eram doloridas, eram sofridas.
Minha vó pegou minha mão e me levou para o quarto, a partir daí não tenho lembranças com tantos detalhes, é um grande borrão em minha memória, esse período foi um enorme borrão em minha vida, um embaralhado de memórias doloridas e cruéis, não sei explicar a dor, há muitas coisas nessa vida para que não encontramos respostas, mas a morte é a mais cruel delas, dói tanto que machuca, fere, espeta e corta. Me lembro da minha vó me dizendo que meu pai não voltaria mais para a casa, nem aquele dia, nem no amanhã e nem nunca mais. Não me lembro do que pensei na hora, não me lembro do que senti e nem do que disse à minha vó, é como se alguém tivesse cortado esse pequeno momento da minha vida, como se eu estivesse saído do meu corpo, e acho que de fato saí, doeu tanto que meu corpo não suportou, acredito que foi isso.
No começo senti raiva, por que meu pai não iria mais voltar? Ele não me queria mais? Tinha se cansado de nós? De mim? Da minha mãe? 
Depois disso senti raiva da minha mãe, meu pai não tinha mais voltado porque ela era muito chata com ele, era essa a minha explicação.
Depois disso eu vivi um bom tempo na inércia, no nada, entre o medo e a dor, entre o sentimento desconhecido e a perda, as memórias são carentes e prefiro que seja assim, não gosto de lembrar os detalhes. Sei que fiquei me escondendo de baixo da escrivaninha toda vez que sentia medo, toda vez que queria chorar, sempre com uma pequena esperança do meu pai aparecer e me tirar de lá, me dizer que estava tudo bem e me colocar para dormir. Mas nunca aconteceu, tudo só piorou, a escola ficou mais difícil, minha mãe e eu não nos falávamos direito, eu sentia muita, muita raiva e ela estava fazendo o melhor que podia, mas não era suficiente.
Clara me notou nas semanas seguintes, talvez porque ela tivesse sabido da notícia, talvez por ter ficado com pena, mas eu não a queria mais, acho que o problema nem era esse, acho que o problema é que eu não conseguia sentir outra coisa além de dor lá no fundo da alma, enraizada em minhas entranhas, em cada célula do meu corpo.
A única pessoa que eu não sentia raiva quando estava perto de mim era Pedro, todos sentavam comigo no intervalo depois do que aconteceu, e eu sabia que era por isso, por pena, e não porque queriam de fato ser meus amigos, isso me irritava, me dava raiva. Pedro não, a presença de Pedro me confortava, eu estive lá para ele e ele esteve lá para mim, todo intervalo sentávamos jutos, não dizíamos nada, nem uma única palavra, nada, só a presença era suficiente, sabíamos o que estávamos passando, ele era o único que sabia. Foi assim que ele me ajudou, não dizendo nada, porque em um momento como esse não há o que ser dito, apenas sentido, e Pedro sentiu comigo, sentimos essa dor juntos.
Assim nossa amizade começou, através do silêncio, da presença, assim eu soube que nossa conexão era para a vida, independente do que acontecesse estávamos ligados, sentimos a mesma dor, entendíamos um ao outro sempre. Não nos distanciamos nunca mais, ao longo dos anos passei a não caber mais em baixo da escrivaninha e minha mãe me levava para conversar com a Márcia, era minha terapeuta, mas eu gostava de chama-la apenas de Márcia, eu me sentia mais adulto assim, Marcia me ajudou muito, mesmo eu não percebendo no momento e achando extremamente desnecessária a presença de Márcia em minha vida, mas não era, Márcia nunca foi desnecessária, foi mais que necessária, eu só não tinha percebido ainda.
Comecei a crescer, meu corpo mudava e eu olhava mais para as garotas, a dor ainda estava ali, mas era distante, bem distante, camuflada e escondida, como quando queremos esconder algo as pressas, mal escondido, mas ainda escondido.
Fiquei com a primeira garota, não foi Clara, que se dane Clara, eu não estava mais nem aí para Clara. Saí com a primeira garota e ia para festas, comecei a beber para parecer legal, mas com o tempo vi que isso me ajudava a não sentir nada, literalmente nada, eu não sentia mais aquela dor que estava escondida, mas sempre presente, era como se ela nunca tivesse existido, me aliviava.
Pedro não curtia muito beber, acho que foi porque um cara bêbado bateu no carro do seu pai e causou o acidente, ele se sentia culpado quando bebia, era ao contrário de mim, ele sentia tudo o que eu não sentia, mas tinha uma coisa que o permitia não sentir nada, garotas. Quando estava com elas, mesmo que nem ouvindo o que elas diziam ele não sentia nada, entendo perfeitamente como ele se sentia, porque era nada, é um vazio, algumas pessoas julgam o vazio ruim, mas quando se tem muita dor a sentir, o vazio é bom, é um alívio.
Ele sempre tinha que estar com uma garota, pouco se importava com elas, raramente sabia no nome, as vezes lembrava a cor do cabelo, o que importava era sentir o vazio, não sentir nada, e elas lhe proporcionavam isso, era isso que importava, mais nada, nada de compromisso, nem para mim e nem com ele, nada mais importava desde que pudéssemos sentir o vazio, tudo era válido, inclusive o que era proibido, o que era perigoso, o que eu sabia que podia tirar minha vida se eu quisesse, estava tudo em minhas mãos, em meu controle, nós controlávamos o que sentíamos, e isso era tudo o que importava.
Isso foi tudo o que importou por muitos anos, por muitas festas e muitas garrafas, muitas doses, muitos porres e brigas, eu era bom nisso, era bom em descontar a raiva que eu sentia o tempo todo, a droga aliviava mais ainda, eu me sentia diferente, como se eu não fosse mais Enrico, como se fosse outro, outra vida, outra merda de vida. 
Nossa vida se resumiu nisso por muito tempo, só nós, sem mais amigos, não precisávamos de ninguém, só nós nos entendíamos, sem garotas porque eram só passa tempo e elas enchiam o saco depois, com o tempo Pedro passava mais tempo em casa do que na casa dele, seu padrasto era um filha da mãe, o pior tipo de pessoa com quem a mãe dele podia se relacionar, ela não lidou bem com a morte do pai de Pedro, não como minha mãe, minha mãe lidou bem até demais, arranjou um namorado que eu não gostava nem um pouco, como ela podia? Como ela conseguia? Eu sentia tanta raiva. Depois desse namorado ela conheceu outro cara, ele se esforçava para que tivéssemos uma boa relação, mas eu é que não queria, não estava pronto para isso, mas percebi que brigar só tornaria minha casa mais insuportável do que já era, então nós só não nos falávamos e estava tudo certo, nenhum homem substituiria meu pai, nenhum homem cozinharia na cozinha que ele fazia panquecas para mim, nem um homem, era assim que eu me sentia, com raiva, sentia tanta raiva o tempo todo, todo o tempo, pouca coisa me importava, pouca coisa era digna da minha atenção.
Minha mãe arranjou uma cama para Pedro em meu quarto, depois um guarda roupa, e quando vimos ele vivia mais em casa do que na casa dele, não tinha como ele viver lá, eu não deixaria mesmo se ele quisesse, e assim ele ficou, minha mãe gostava porque ela dizia que eu era melhor quando estava com ele, mas a questão é que Pedro sempre foi melhor com as palavras do que eu, sempre foi bom em convencer minha mãe das coisas, em inventar mentiras para acobertar nossos feitos, Pedro sempre foi melhor nisso tudo do que eu. Éramos nós contra o mundo, sempre, e honestamente eu não via nada além disso, no momento em que passávamos por tudo isso nem pensávamos em futuro, não era algo com que nos preocupávamos, mas agora vejo que não tínhamos um plano, não pensávamos em nada, apenas vivíamos, nós nos entendíamos e era isso, sem julgamentos, sem lição de moral, só vivíamos e nos entendíamos, foi sempre assim, desde que me lembro, as coisas apenas pioraram com o tempo.
Mas tudo mudou quando ela chegou, essa frase ''Tudo mudou quando ela chegou'' é clichê demais, sei disso, mas foi exatamente assim, foi assim que todo mundo se sentiu, foi assim que ela mudou tudo, apenas existindo, apenas sendo ela, minha irmã mudou todas as coisas apenas sendo quem é, mandona, chata e persistente, ela consegue uma coisa quando quer, assim ela transformou tudo e todas as coisas por aqui, sendo ela.
Sempre soube que Miguel tinha uma filha que não morava aqui, mas não sabia mais nada e não me importava, Miguel era o cara que ocupava o lugar do meu pai e era isso, nada mais, nenhuma informação que viesse dele me importava, até minha mãe dizer que a garota viria passar as férias aqui. Não dei a mínima, com tanto que ela não atrapalhasse meus esquemas estava tudo certo, tanto fazia, até tentei ser legal quando ela pareceu aqui no primeiro dia, tinha uns caras aqui, Arthur e Hugo, eles começaram a sair com a gente depois de umas festas e nós concordamos, eles não enchiam nosso saco e tínhamos mais gente para dividir a conta do bar, então estava tudo certo. Mas ela chegou e perguntou como eu estava , há muito tempo uma menina não me perguntava como eu estava, era um uso mútuo, eu não queria saber delas e a maioria delas também não queria saber, mas ela quis e ela se importava de verdade, eu sabia disso, não sei como, mas eu sabia, dava pra sentir.
Ela embaçou com a gente já nos primeiros dias quando viu a gente pulando a janela, mas não nos dedurou, não contou à minha mãe, não fez nada, não entendi a razão de ela não fazer nada, ela tinha tudo para fazer, mas não fez, apenas nos olhou feio com um olhar de repreensão e decepção, eu geralmente não dava a mínima para olhares assim, mas para os dela eu dei, mesmo não querendo sentir, eu senti, não sei porquê, só sei que senti. Ela começou a ir em algumas festas mas era nítido que ela não sabia nada, nem se vestir, não sei explicar o que senti, não era como pena, era mais para carinho, queria protege-la, não sei, só sei que sentia uma coisa boa quando ela estava perto, quando ela olhava, eu sabia que o olhar dela significava que ela se importava.
A partir daí passei a tratar ela melhor, nunca a tratei mal, mas sabia que deveria trata-la melhor, ser mais receptivo, não sei porque raios eu fiz isso, mais senti que deveria, apenas senti. Pedro demorou um pouco mais para se abrir, ele nunca foi uma pessoa acessível mesmo, as meninas eram descartadas rápido quando faziam muitas perguntas à ele, isso não o agradava.
Mas ela chegou com muitos por quês, por que isso, por que aquilo, ela sempre precisava de uma explicação, não podia ser assim e ponto, ela necessitava saber a razão. Pedro odiou isso, sei que sim, mas ele não se afastou, não se abriu facilmente, mas também não se afastou, pelo contrário, se tornou mais acessível ao longo do tempo, ele não me contou os detalhes, porque se sentia inseguro com tudo isso como eu, estávamos saindo da nossa zona de conforto, mas sei que ele se abriu mais ainda para ela, não sei o que ela fez com ele, mas ele se tornou a pessoa mais acessível do mundo para aquela menina cheia de dúvidas e carinho. Ela se importava conosco, nos tirou de muitas brigas, limpou nossos ferimentos de madrugada, não era sua obrigação, mas ela fazia, eu não entendia a razão, mas era por carinho, porque ela se importava, ela dizia que era o certo a fazer, isso me fez querer fazer o certo, ser alguém melhor para as garotas, porque elas podiam ser irmãs de alguém que se importasse com elas, eu passei a me importar, ela se meteu em brigas por nós, nos salvou de muitas e o mais importante, nos salvou de nós mesmos, estávamos perdidos em nossas dores e nossos vazios, estávamos inteiramente soterrados por nossa dor mal escondida. Sarah, minha irmã me salvou de tudo isso e eu a amo mais que tudo, um amor que nunca havia sentido porque nunca tive uma irmã para conviver, foi isso que me salvou, seu amor, seu carinho, o amor de irmão que sentimos um pelo outro.
No começo senti receio sobre a relação dela com Pedro, nunca dei a mínima para o que ele fazia para suprir o seu vazio, na maioria das vezes era quem, e não o que, mas eu não ligava, até ela aparecer, até eu sentir necessidade de protegê-la de caras como eu, de caras que faziam o que eu fazia, o que Pedro fazia, e saber que era por Pedro que seu coração começou a bater me doeu, por medo eu acho, de ele fazer o mesmo com ela, confio minha vida a ele, eu não confiava era em nosso estilo de vida, o que estávamos acostumados a fazer durante muito tempo. Será que ele mudaria por ela? Será que ele sentiu o que eu senti quando ela chegou? A mudança, alguém que nos desse razão para voltar para casa no outro dia. Não sabia, e isso me assustava, pensar nela sendo descartada como todas as outras foram para ele doía.
Mas ele sentiu como eu, ele a deixou entrar e ficar, ele a deixou toca-lo, senti-lo, entende-lo e guia-lo, ela pegou em sua mão e o guiou para o caminho que ele precisava estar de volta, um caminho que ele tinha desviado, mas que ela o ajudara a caminhar, com suas próprias mãos, com sua insistência e amor ela o salvou, como uma presa que foge do predador, sua vida era seu próprio predador, seus próprios sentimentos, ela disse que ficaria tudo bem e ficou, ela tornou tudo bem.
Mas agora, ele precisa caminhar com as próprias pernas.

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