SARAH
Acordo com um barulho que ecoa em minha mente, até me dar conta de que são as batidas na porta, estou meio confusa, não me lembro muito bem de como dormi. As malditas batidas continuam, que saco, minha cabeça dói.
''Entra.''
''Sarah, querida, achei melhor te acordar para você não perder o voo.'' Esther me diz e e as informações demoram para ligarem-se em minha mente.
''Que voo?''
Já é dia?
''Seu voo de volta para casa, querida, você volta hoje, daqui três horas, mas achei que você quisesse ser acordada mais cedo para poder se despedir e terminar de arrumar as coisas.'' Ela franze o cenho mas é educada demais para perguntar qual é o meu problema.
''Que horas são?''
''Sete e meia, querida. Está tudo bem?''
''Sim, obrigada.'' Sorrio da melhor forma que consigo.
Perdi completamente a noção de tudo, do horário, dos planos, de mim, de tudo.
Me sento na cama e olho para a escrivaninha, tem um xícara de café ainda morna, o que significa que alguém a deixou aqui não faz muito tempo, e uma carta, então me lembro de Pedro. Ele é o dono desta carta e deste café.
Aos poucos as lembranças vão retornando, Pedro vai embora, longe, muito longe, a uma distância a qual não posso visita-lo, muito menos minha mãe deixaria. Ele pensou nisso, se inscreveu e foi aprovado, sem contar para alguém, o que me fez questionar sobre sua confiança em mim, eu confiaria minha vida à ele, ele sabe de todas as coisas, tudo o que me assombra, meus pesadelos mais dolorosos, e ele me escondeu um detalhe muito importante da vida dele, um detalhe que nos afeta por completo, que nos separa, nos afasta por completo. Ele ignorou completamente os meus sentimentos, essa decisão me afeta tanto quanto ele, e ele não se importou. Ser colocada em segundo plano e não saber de nada disso me doeu de uma forma profunda, nada do que eu achei que seria é, nada será, eu planejei nossos futuros momentos juntos, ele planejou sozinho, o futuro dele, sem mim.
Me lembro de sentir essa dor, a dor de quando alguém vira as costas pra gente, e dele recitando seus trechos preferidos de Capitães da Areia, assim como fizemos com Dom Casmurro, um dos meus momentos preferidos. Não consegui deixa-lo longe nesse momento, precisei abrir a porta, quebrar a barreira que ficou entre nós, embora não tenha sido de fato, a porta o que nos separava naquele momento, e sim suas escolhas.
Chorei tudo o que eu tinha para chorar em seu colo, sinto uma certa vergonha quando a cena me vem à mente, embora eu não me lembre de muita coisa, estava anestesiada pelo momento, mas me lembro dele me acolhendo e me protegendo da dor, a dor que ele mesmo causou. Ficamos muitas horas assim, não sei muito bem, perdi a noção do tempo, me lembro de ter ficado tempo em seu colo, sem chorar nem dizer nada, apenas existindo em seu colo, não sei dizer quantas horas tudo isso durou, o dia todo, a noite toda, mas julgando o fato de que hoje já é outro dia, foram muitas, muitas horas.
Esgotei meus sentimentos em seu colo, me entreguei à decepção que senti, à traição que senti.
E agora estou aqui, provavelmente adormeci em seu colo, esgotada por meus intensos sentimentos, e ele me colocou para dormir, como sempre faz, ou fazia.
Me levanto e me olho no espelho, meus olhos estão inchados e meu nariz vermelho, resquícios de uma noite chorosa. Entro no chuveiro e deixo a dor externa sair, os resquícios dos meus sentimentos são lavados, agora só me sobram o que eu sinto aqui dentro, que só eu sei, só eu sinto.
Enquanto penteio meu cabelo observo a carta que está em cima da escrivaninha, não vou ler agora, sei que quando eu ler, me renderei aos meus sentimentos, e agora preciso ser forte. Hoje é o dia que eu vou embora, e ele sabe, se quisesse estar ao meu lado estaria, mas acordei sozinha, então não é onde ele deseja estar.
Guardo a carta na mala, junto com meus livros e os outros pequenos objetos que faltam ser guardados na mala, aos poucos o quarto vai perdendo vida, perdendo minha identidade, meu jeito, meu aconchego, tornando-se apenas um espaço vazio, um quarto de hóspedes. Cada detalhe desse quarto, dessa casa e das minhas coisas me lembram dele, cada mínio detalhe, e a cada vez que ele me vem à memória penso em outra coisa, não posso permitir que ele domine meus pensamentos e sentimentos de novo.
Olho pela ultima vez ao redor do quarto, despedindo-me desse espaço que me acolheu de todas as formas e que me acomodou durante os momentos mais inacreditáveis por aquela Sarah antiga, a Sarah antiga parece um momento tão distante, parece que foi há muito tempo.
Desço com as malas e encontro meu pai descendo as escadas, a lembrança de mim e Pedro sentados nessa escada enquanto eu o acalmava de seus próprios sentimentos me vem a mente, cada pequeno espaço dessa casa me lembra dele, talvez seja bom eu ir embora.
''Deixa que eu te ajudo com as malas filha.''
''Obrigada, pai.''
Ele posiciona as malas na porta e enquanto desço as escadas sinto meu corpo pesado, como quando dormimos uma noite bem dormida, por muitas horas.
''Bom Dia, querida, fiz café.''
''Obrigada Esther, vou sentir saudades do seu café.''
''Eu farei todas as vezes que você voltar, não se preocupe, querida.''
Não tenho previsões para volta, Esther, não por um bom tempo.
Ela veste um louboutin preto, saia colada até o joelho e uma blusa de manga valorizando seus seios, sempre bem arrumada e bem humorada, essa é Esther.
A porta da frente abre e meu coração dispara.
''Bom dia, família.'' Meu irmão entra com Laura e meu coração se acalma, são eles, e não ele. Mas no fundo, havia uma esperança de que fosse ele.
''Bom dia pombinhos, dormiram bem?'' Esther diz enquanto Enrico beija sua testa carinhosamente.
''Muito bem, obrigada.''
Ambos se sentam ao meu lado, enquanto eu fico entre os dois
''Sarah, ele...''
''Não.''
Digo um pouco alto e Esther olha de relance.
''Não quero saber.'' Sussurro.
''Tudo bem, dormiu bem?'' Meu irmão me pergunta na tentativa de mudar de assunto, mas não funciona.
''Vocês dormiram bem?'' Eu pergunto.
''Sim, muito bem.'' Laura sorri tímida.
''Que bom, fico feliz que vocês estejam dando certo, realmente feliz.''
Ambos não sabem o que me dizer nesse momento, e na verdade prefiro assim, não quero falar sobre nada, apenas aproveitar minha solidão.
''Acordou cedo?'' Olho para Enrico.
''Não deixaria de me despedir de você nunca.''
''Nem eu, Sarah.''
Minha amiga e meu irmão me abraçam e eu sinto o amor deles por mim nesse momento.
''Ele também gostaria de ter se despedido de você.'' Meu irmão insiste em me lembrar do que não deve ser lembrado.
''Por favor, Enrico.''
''Laura, por favor, leia pelo menos a carta, entenda seus motivos.''
''Não deveríamos estar indo ao aeroporto?'' Pergunto à meu pai.
Ele olha no relógio.
''Sim, se partirmos agora chegamos com meia hora de antecedência para nos despedirmos devidamente.'' Ele me olha sorrindo.
''Então vamos.''
No caminho do aeroporto me sento na janela, ao lado de Laura, que segura minha mão, ela sabe de tudo, sabe como me sinto, minha amiga entende o que estou passando, e por isso não toca no assunto, nem uma palavra, ela sabe o que é melhor para mim nesse momento, e me apoia com sua presença, assim como eu faria.
Durante o caminho observo as ruas, as pessoas e quais problemas elas podem estar enfrentando no momento e tendo que disfarçar para viver o dia. É assim que funciona, o mundo não está se importando com quais problemas você tem, tudo o que precisa fazer é esconde-los e viver o dia, máscaras são bem vindas no mundo real, é preciso mascarar-se para viver dia após dia.
Enrico está mandando mensagens e ligando para alguém, sei para quem é, e sei porque ele não atende, está fugindo, está deixando seus problemas de lado e decidindo não enfrenta-los, como um covarde.
Os pensamentos vem e vão, um filme passa em minha mente, de todos os momentos vividos, de todas as coisas que achei que nunca faria e fiz, das minhas primeiras vezes, das minhas loucuras, dos bons momentos que a vida me proporcionou, e da minha mãe dizendo para que eu me lembre dos motivos que me levaram à ir embora. ''Lembre-se do motivo que te fez ir.'' Ela disse, e eu lembro, mãe, de cada detalhe, bem no fundo do meu coração. Eu deveria ter escutado minha mãe? Deveria ter escutado minha consciência? Deveria ter lutando tanto por alguém? Foi tudo em vão? Não sei. Não sei de nada, não tenho respostas para nada, apenas dúvidas e decepção, é só o que me resta.
No aeroporto meu pai me abraça muito forte, expressando todo seu sentimento.
''Sua vinda mudou nossas vidas para melhor, filha, volte sempre que puder, essa é sua casa também.''
''Claro, pai, te amo.''
''Te amo filha, muito.''
Me despeço de meu pai com muito carinho.
''Sentirei falta da sua companhia, Sarah, você é uma boa menina, carinhosa, querida, volte sempre, por favor, e me ligue sempre que precisar, estarei aqui.''
Ela me olha firmemente, sei que ela se refere à minha mãe, mas é muito educada para falar.
''Você é muito importante para mim, Esther, voltarei sempre.''
Embora eu não tenha certeza de quando conseguirei voltar, a abraço com todo o carinho possível, Esther é mais que uma madrasta, é a presença feminina que eu precisava em minha vida, e agora sentirei falta de sofás amarelos e quadros estilo pop art, é onde me sinto em casa.
Laura me abraça calmamente, embora já tenhamos nos despedido muito, sou orgulhosa da minha amiga, que ajudou meu irmão a se recuperar de seus vícios, o ajudou a se reerguer, o deu mais um motivo para que ele queira ser bom, ter um bom caminho, minha amiga que agora tem boas amigas e é determinada, sinto orgulho da nossa amizade e da nossa evolução, se é que eu posso chamar o que estou sentindo no momento de evolução.
''Me ligue sempre, assim que estiver pronta para falar, falaremos.''
Ela sorri calmamente.
''Pode deixar, beijinhos.''
''Beijinhos.''
Meu irmão me abraça fortemente, me esmagando com seus músculos.
''Você sabe de tudo, não preciso dizer, você sabe o tanto que fez e o quão bem fez. Por favor, se cuide, me de noticias e volte sempre, sempre, ouviu?''
Meu querido irmão superprotetor me conforta, no fim das contas acredito que também me tornei uma irmã superprotetora.
''Sempre, irmão, estarei aqui sempre pra você.''
Ele me dá um beijo na testa e assim me despeço da coisa mais importante das minhas férias de verão, essas pessoas, uma despedida diferente da minha chegada, diferente de tudo o que eu esperava, nem em sonho imaginei tudo isso acontecendo, todas essas pessoas. Olho uma ultima vez para eles reunidos enquanto caminho para o embarque, me certificando de que ele não ira de fato aparecer, mas ele não aparece, ele não se despede de mim.
Sentada no avião, sozinha, comigo mesma, minha melhor companhia nesse momento, olho para a carta e para a janela do avião. Não sei se quero abrir, não sei se estou preparada.
Uma velhinha que está do outro lado sorri genuinamente para mim. Sorrio de volta. Suspiro, colocando todo o ar para dentro, me preenchendo, e expiro, me esvaziando.
Abro a carta e vejo suas letras únicas, pequenas e circulares, mais bonitas que a minha. Há várias fotos aqui dentro, fotos minhas, dormindo, distraída, comendo, olhando para o mar, fotos das quais nem percebi que foram tiradas, nossos momentos eram tão apaixonantes para mim que qualquer coisa que não fosse ele passaria batido. Em uma foto estou deitada em seu colo enquanto ele acaricia meus cabelos, em outra estou feliz da vida comendo, sorrindo com o coração, em outra estou sob a luz do crepúsculo, adormecida, como um anjo feliz. É assim que ele me vê. Abro a carta. As palavras de Enrico ecoam em minha mente ''Leia pelo menos a carta, entenda seus motivos.''
''Sou bom com as palavras, mas quando se trata de você tudo fica confuso, tudo fica mais difícil. Há diversas coisas que você pode pensar de mim nesse momento, tudo bem, não ligo, mas por favor, não pense nunca que eu te abandonei, eu não te abandonaria nunca, Sarah. É importante que você estenda isso. O problema é meu eu antes de você vir, minha vida e as confusões que eu causava, minhas práticas e toda a minha lama, era tudo um completo caos. Aí você veio e tudo mudou, tudo ficou diferente, você me fez querer você, querer ser uma pessoa melhor, eu quero, mais que tudo, estar ao seu lado, mas antes preciso tentar ser alguém melhor para você, ver você metida nas minhas confusões, no hospital, brigando e cometendo os mesmos erros que cometi me doeu, você não é assim, você não faz esse tipo de coisa, sei que se eu ficasse, daqui dois ou dez anos você se arrependeria das decisões que tomou por mim, e não quero, em momento algum ser motivo de arrependimento para você, não quero que você sinta arrependimento ao se lembrar de mim. Quero tudo, menos isso. Eu preciso tentar me tornar uma pessoa melhor, Sarah, conhecer novas pessoas, ter visões de futuro e de vida, ter mais um motivo, além de você, para querer viver, eu a amo, mas meu mundo se resume à você, e isso não deveria ser assim, amor não é sobre viver em prol de alguém, é sobre viver com alguém, preciso ter a minha própria razão para viver, para que possamos ter uma razão juntos. Precisamos ser dois seres que se completam, e não que suprem um ao outro, e eu estou te suprindo, toda a sua energia, todo o seu tempo, com toda a minha lama e com minhas atitudes do passado, estou desgastando você, e isso não está certo. Se continuarmos dessa forma, nosso amor será desgastado, eu suprirei todas as suas energias, porque todas as vezes que eu erro, você está ali para me segurar, e eu sou eternamente grato por isso, mas preciso arcar com as consequências dos meus próprios erros, preciso eu mesmo aprender a cair e levantar sozinho, com minhas próprias pernas. Assim, posso ser meu próprio porto seguro, e ser um porto seguro para você. O bem que você fez para mim é inenarrável, e é justamente por isso que preciso tentar melhorar e ser um ser humano melhor, com a luz e a esperança que você despertou em mim, serei um ser humano melhor e quem sabe terei uma família um dia. Ouvi sua mãe te dizer, no dia que você voltou do hospital, que eu seria a sua perdição, e de fato, eu estava sendo, e tomar consciência disso me doeu. Não quero ser o seu motivo de arrependimento, e sim o de orgulho, e se, diante dessa situação você quiser virar a nossa página e encontrar outro alguém, eu dou a minha permissão. Sei que nesse momento você deve estar revirando os olhos porque não precisa da minha permissão para fazer nada, e de fato, não precisa, você é mais sábia e centrada do que acredita, você simplesmente segue sua intuição e faz o que deve ser feito, você tem as respostas para seus tantos questionamentos, só precisa se ouvir e acreditar em você. E se você realmente quiser encontrar outro alguém, estarei torcendo para dar certo, mas saiba que meu amor será sempre você, aquela que me tirou da escuridão e me mostrou que era possível. Apoiarei qualquer caminho que você seguir, mesmo se você decidir que eu não estarei nele, não posso ser egoísta e pedir para que você espere por mim, embora eu deseje muito tê-la em meus braços novamente, não posso fazer isso com você. Apenas saiba que meu coração terá sempre o seu lugar reservado, um lugar para ser preenchido. Acreditei por muito tempo que o amor só era de fato vivido nos livros, que essa coisa de felizes para sempre não existe, se o para sempre existe, eu ainda não sei, mas sei que minha felicidade é eterna quando estou ao seu lado, você tornou tudo isso real, assim como o coração de Pedro Bala foi de Dora, o meu, que sou seu Pedro, será sempre seu, mesmo que você não o queira mais, ele ainda será seu, preenchido por um amor inefável.''
Se sobreviveremos à isso não sei, não sei se meu coração o perdoará, não sei se ele encontrará outra que o faça feliz, não sei se ele conseguirá encontrar o que deseja, meus questionamentos, como sempre, são muitos, e a única certeza que possuo é de que o primeiro homem da minha vida me deixou e o segundo está me deixando agora, além disso, do sentimento que possuo, do sentimento grandioso por esses olhos azuis profundos, do que não possui explicação, do que é irracional, nosso amor irracional e inefável.

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Inefável
Romance"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...