SARAH
Abro os olhos e demoro uns cinto minutos até entender onde estou, depois tento lembrar minha última memória, em seguida procuro meu celular. Esses são os passos que se segue quando se acorda de um pós festa e bebedeira. Sei que estou no quarto de Esther mas não encontro meu celular, e sinto tanta dor, nos ombros, no rosto e na cabeça, tudo dói, inclusive minha consciência, não lembro de tudo, mas o pior eu lembro, o pior a gente nunca esquece.
Tem um comprimido em cima da escrivaninha e um copo de água, a única certeza que tenho nesse momento é que devo toma-los.
Ai que dor, Jesus.
Não tenho ideia de como cheguei aqui, e a ultima memória que tenho é da Rafaela em cima de mim. Não tenho ideia de como vim parar nesse quarto e nem de como vesti esse pijama.
Abro a porta e não vejo ninguém, caminho até meu quarto silenciosamente e fecho a porta, sei que provavelmente estou enrascada. Encosto meu corpo na porta de olhos fechados, não estou preparada para enfrentar este dia, não estou preparada para enfrentar as consequências de meus próprios atos. Estou consumida por um sentimento estranho, agora eu definitivamente não sei quem sou, no momento parecia o certo a se fazer, mas não era minha consciência quem dizia, era a bebida, estou tomada pela vergonha. Abro os olhos e enfrento as consequências, eu que fiz, agora eu aguento. Entro no banheiro e me assusto, tenho um roxo na testa e um corte logo abaixo, minha boca tem um corte superficial também.
Minha cabeça está dolorida onde eu provavelmente bati quando caí no chão, pequenas lembranças vem à memória. Tiro minha roupa e ligo o chuveiro, deixo esvair todo o sentimento ruim que estou sentindo, toda culpa, todo arrependimento, todas as palavras feias que me xinguei até agora e toda a angústia que sinto no coração, está tudo tão sei lá. Sei que ''Sei lá'' não define nada, mas eu realmente não sei como definir a onda de sentimentos que me invade.
Me toco e me sinto estranha, me dói quando me toco, não só no corpo, mas na alma, me dói tocar um corpo que fez coisas das quais eu jamais faria meses atrás. Me convenci piamente de que estava tudo bem mudar, mas me transformei em alguém que não sei se gosto. Sentada no chão do banheiro me encolho entre minhas próprias pernas e deixo a dor se expressar, choro, um choro que vem do coração mesmo, porque é lá que está doendo, é lá que está tudo confuso.
Perdi a noção do tempo embaixo dessa água avassaladora, expus toda a minha dor e angustia, tudo o que eu me permiti senti, mas agora preciso enfrentar as consequências dos meus próprios erros. Ser adolescente é aprender muitas coisas, inclusive a lidar com as consequências dos próprios atos, não tem outra saída a não ser enfrentar o que te assusta.
Respiro fundo e desligo o chuveiro, mas por que eu tenho que sair daqui? Por que não posso ficar aqui em baixo até que tudo se resolva sozinho? Porque não tenho mais dez anos, aos dez tudo era mais fácil, não tão fácil quanto a vida das outras crianças que tinham pais e mães presentes, mas ainda sim mais fácil. Existem coisas que por instinto a gente sabe que é o certo a se fazer, e é o que deve ser feito.
Desligo o chuveiro e coloco meu roupão, abro a porta e ele está sentado na minha cama, me olhando com olhares que pela primeira vez na vida eu não gostaria de decifrar, olhares de pena, ele sabe como me sinto, ele sabe o que está acontecendo, ele sabe e ainda sim está aqui para mim, eu não o mereço mais.
''Oi.'' Ele me diz sem levantar da cama, seus dedos tamborilam em meu edredom.
''Vou entender se não quiser mais olhar para mim.''
Meus olhos já se enchem de lágrimas só de tocar nesse assunto em sua presença, mas me contenho.
''Tudo bem, Sarah, estou aqui.''
Não vou conseguir ser forte por muito tempo, eu não o mereço.
Ele vem em minha direção, não sou capaz de me mover, e me abraça, com todo o carinho que eu não mereço, mas preciso.
''Está tudo bem, estou aqui.''
''Me sinto tão horrível.'' Choro, como se já não tivesse chorado tudo o que achei que podia no banheiro.
''Shh, tudo bem, não vou sair do seu lado, estou aqui.''
Ficamos nessa por bons e longos minutos, era todo o carinho que eu precisava para ter força e enfrentar o que preciso.
Ele afasta seu corpo do meu e coloca aos mãos sobre meus ombros.
''Eu gostaria muito de passar o dia todo te consolando porque sei exatamente a culpa que você sente, é como se fosse a pior irmã do mundo, a pior filha, a pior amiga, tudo parece ser péssimo, mas passa, eu prometo que passa. O grande problema agora é seu pai que já estava puto da vida porque roubamos o carro, e agora que ele sabe o que aconteceu está mais bravo ainda.''
E agora, José?
''Vocês contaram?''
''Tínhamos que dar uma explicação, ele dormiu no seu quarto ontem te esperando chegar porque ficou preocupado. Eu sei que isso não ajuda com seu culpa, mas preciso te preparar para o que vai enfrentar.''
''Tudo bem, eu fiz, eu aguento.''
''Boa menina. Continuando, você chegou quase desmaiada ontem, estão te dei banho, te vesti e escondi o máximo que pude seus ferimentos, mas tivemos que dar uma explicação, Esther ainda me ajudou a amenizar a história, mas tivemos que falar que você bebeu um pouco e quis brigar, senão ele descobriria o pior.''
''Entendo.''
''Ele também tomou seu celular, mas eu já disse que não sei a senha, ninguém vai te dedar.''
''Nem sei como te agradecer, eu te amo.''
Encosto minha testa na dele.
''Você faria o mesmo, eu te amo também, Sarah.''
''Tudo bem, vou enfrentar meus problemas como gente grande.''
''Minha menina adulta.'' Ele sorri e eu também, ele me faz superar tudo em todos os momentos.
''Quer que eu desça junto de você?''
''Não, preciso enfrentar essa situação sozinha, vocês já fizeram muito.''
''Tudo bem.''
Me desvencilho de seus braços e dou-lhe um beijo bom e confiante. Caminho até a porta.
''Ei, você sabe a senha do meu celular?'' Me lembrei que ele disse que não me dedaria, isso significa que ele sabe.
''A privacidade é algo que se preza nessa casa, querida Sarah.''
Sim, ele sabe, ele sempre sabe. E não me espanta nadinha.
Desço as escadas como quem vai à batalha, mas dessa vez apenas para ouvir e aguentar, sei que estou errada e mereço o que receber.
Meu pai está sentado na mesa tomando seu café, pela primeira vez sinto medo, um frio na barriga. Esther está ao seu lado e Enrico está fazendo pão na chapa, ele me olha de relance e sussurra um ''Boa Sorte''. Vou precisar.
''Bom Dia, querida, o café está na máquina.'' Esther tenta do seu jeito mais doce e meigo para amenizar o clima de tensão que exala entre mim e meu pai.
''Bom Dia, obrigada.''
Pego o café e despejo no copo, me posicionando ao lado do Enrico.
''Ele está muito bravo?'' Sussurro.
''Sim.''
''Quanto?''
''Muito.''
Isso ajuda muito, obrigada querido irmão.
Sento na mesa e nenhuma palavra do meu pai.
''Acordou melhor, querida?'' Esther também está nervosa, sei que está, mas está se saindo muito bem em sua tentativa de amenizar o clima, agradeço a Deus por ela estar aqui.
Tomo meu café e a comida mal desce, não sei se é porque não há nada no meu estômago além de bebida ou se é porque estou nervosa, talvez os dois.
Foram os quinze minutos mais agoniantes da minha vida, um silêncio ensurdecedor, preferia quinze minutos de gritos á quinze longos e silenciosos minutos torturantes, os mais longos de toda minha vida.
Termino meu café e ele me olha nos olhos.
''Precisamos conversar, Sarah.''
Ai papi.
Ficamos só nós na mesa, ele se apoia com os braços e me encara.
Pode mandar pai, eu aguento.
''Olha Sarah, eu tenho plena consciência de que por muitos anos fui um péssimo pai, estive ausente e não fui digno de ser chamado de pai, mas desde que você veio estou tentando de verdade, fiz o que pude para que você se sentisse confortável e feliz, aceitei com bom gosto seu namoro com Pedro, mesmo no começo sabendo que ele não era o que eu queria para você, ele sabe disso. Você brigou com sua mãe eu te acolhi lhe dando toda a razão, sei que sua mãe não é a pessoa mais fácil de se lidar nesse mundo.'' Ele suspira. ''Mas não estou conseguindo achar maneiras mais para justificar seus comportamentos, Sarah, eu não tenho ideia do que está acontecendo, não sei se você está passando por algo, se está com algum problema que está te levando a fazer isso, mas preciso que pare, olhe ao seu redor e veja o que está fazendo. Você não é assim, de repente é Pedro quem tem que te impor limites, de repente eu estou me deparando com minha filha bêbada se metendo em brigas. O que está acontecendo? Qual é o problema? Porque certamente tem algum.''
Eu sei pai, o problema é que eu não sei qual é o problema.
''Você está me deixando assustado, Sarah. Não quero ser o pai que briga e é chato, mas não estou vendo outra maneira de impor limites em você, coisa que eu nem achei que precisasse fazer mais. Você não pode ser tão irresponsável assim, sei que na adolescência a gente faz umas burrices mas vocês saíram dos limites. Meu carro foi roubado e eu tenho que pedir carona para ir embora do restaurante e minha filha não volta mais para casa antes do amanhecer, e quando volta está desacordada e machucada. Eu não te conheço mais, Sarah, e se algum dia sua mãe já pensou em me dar um voto de confiança sobre você, esse dia já era, e eu infelizmente não posso mais fazer nada porque não está mais em minhas mãos, isso saiu do meu controle.''
''Sinto muito.''
''Não mais que eu.''
''Minha mãe sabe?''
''Tive que contar, não posso esconder esse tipo de coisa dela.''
''Ela ficou muito brava?''
''Ficou, é claro, é sua mãe. Você sabe como ela é, e dessa vez eu não tiro a razão dela.''
''Entendo.''
''Por isso que tomamos juntos a decisão de que você voltasse.'' Ele desvia o olhar.
''O quê?''
''Eu não tive muito o que fazer, ela já não te queria aqui depois que soube do Pedro, agora muito menos.''
''Você não está falando sério. Eu esperava um castigo, ficar sem celular, mas me mandar de volta? O que?''
''Sinto muito filha, essa é sua casa e quando você quiser é só me ligar que eu compro a passagem, mas dessa vez você vai ter que ir. Eu fui contra a vontade dela diversas vezes, inclusive nessa, mas não está mais em minhas mãos, filha, sinto muito mesmo, mas já está decidido.''
''Hoje faremos nosso jantar de natal e amanhã iremos ao almoço de formatura de Pedro e Enrico, você parte depois de amanhã bem cedo.''
Ele pega na minha mão e sai, me deixando absorver toda essa informação aqui, sentada na mesa de jantar. Eu esperava qualquer coisa, qualquer castigo ou punição, menos isso, ser mandada de volta. Não é lá que eu quero ficar, longe dele, do meu Pedro, longe da vida que construí aqui.
Recusei inúmeras vezes falar sobre o assunto de ficar e terminar a escola aqui, mas só porque o assunto de mudar drasticamente de vida me assustava. Assim como quando cheguei aqui, era assustador demais vivenciar coisas novas. Mas agora não imagino outra vida senão essa, senão nessa casa, com o meu Pedro, com Enrico, e a minha família aqui. É aqui que eu pertenço agora, é aqui que desejo estar, meu lugar é aqui, não lá. É aqui do lado dele onde meu coração bate, onde desejo estar.
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Inefável
Любовные романы"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...