Olho meu reflexo no espelho, meu cabelo desarrumado, minha boca seca, meus olhos cansados e um coração inquieto, sentindo tudo o que consegue. Por fora nada mudou, continuo com minhas penas não muito finas, mas bem mais finas do que qualquer adolescente que vai à academia, meus longos cabelos castanhos e minha boca bem desenhada. Mas aqui dentro, onde tudo se sente, onde dói e acalma, tudo mudou. Minhas certezas já não são tão certezas assim, minhas prioridades não são mais as mesmas, sinto como se estivesse no meu quarto bagunçado, onde não encontro meu carregador ou meus óculos, não sei a que direção procurar, não sei qual problema resolver primeiro.
''Sarah? Tudo bem?"' Enrico me pergunta do outro lado da porta, estou há muitos minutos dentro deste banheiro olhando meu reflexo.
''Ahh...Tudo sim, estou indo.''
''Ual. Acho que você fica bem melhor com essa roupa do que com aquele vestido de hospital.''
Rio.
''Obrigada, me sinto lisonjeada.''
''Seu pai está vindo nos buscar.''
''Obrigada por ficar aqui comigo, por ter dormido aqui, foi muito gentil da sua parte.''
''Você é minha irmã, Sarah, é para isso que os irmãos servem.''
''Meus dois amores juntinhos.'' Ouço a voz de Esther.
Ela vem em minha direção e me abraça, o mais forte que já fez.
''Fico feliz que esteja bem, querida.''
''Fico feliz que você esteja aqui, Esther.''
Ela não me solta do abraço e Enrico nos envolve com seus braços, sinto mais um aperto e sei que é meu pai completando nosso abraço. Me sinto amada, me sinto parte disso, dessa família.
Abro a porta de casa e surpresa. Ual. Vejo todos os que fazem parte da minha vida diante de mim, na sala de casa. Meus olhos correm por minha mãe, Liz, Mari, Laura, Pedro, Hugo, Yasmin.
Eu realmente gostaria de saber como essa união foi possível sem no mínimo uma terceira guerra mundial, mas não agora.
''Surpresa!'' Meu pai diz.
''Ual. Todos juntos e ainda não houve a terceira guerra mundial?" Rio enquanto coloco minha bolsa no sofá e vou em direção da minha mãe, que está ao lado de Laura.
''Sarcasmo não combina com você, Sarah.'' Minha mãe e Laura dizem rindo.
''Eu sei, gente, eu sei.''
Dou um abraço apertado em minha mãe, nosso ultimo encontro foi um tanto desagradável e aproveito que ela está calma hoje. Gostaria que fosse sempre assim, sem gritos ou brigas, só nós como éramos antes de tudo isso. Mas acho que precisamos de muitas conversas e um tempo para ela assimilar tudo isso, eu não a culpo por não concordar com minhas decisões, ela só quer o melhor para sua filha, o problema é que nós temos visões diferentes do que é melhor para mim.
''Obrigada por ter vindo, mãe."
''Ele vai acabar com seu futuro, Sarah.'' Ela me diz para que ninguém escute, só nós e meu coração que já está calejado. Obrigada, mãe, isso ajuda muito.
''Você vai precisar hidratar esse cabelo, sabe disso não é?'' Liz me diz tentando deixar o clima mais agradável, ela sempre sabe a hora certa de me ajudar.
''Eu já disso isso à ela.'' Laura completa.
''Meses sem me ver e é isso que têm a dizer?''
"Como se você não conhecesse as amigas que tem." Mari me apoia.
"Eu disse que as duas eram parecidas."
"Realmente."
Sentada no sofá observo todos em minha volta, saindo de sua zona de conforto por mim.
"Você falou com Pedro?" Laura olha em meus olhos.
"Não, quero evitar discutir na frente de todos, precisamos conversar a sós."
"Entendo."
"Ual, seu pai tem uma ótima vida aqui."
Mari diz.
"A casa é enorme mesmo."
"Talvez a gente venha para cá no próximo verão, conhecer gente nova." Essa vem de Liz.
"Quando quiserem."
"Sarah, tem bolo no forno, você pode cortar e trazer na mesa, por favor, querida?" Esther me pede.
"Claro. Vem, gente, eu mostro a casa."
"Ela é legal mesmo."
"Quem? Esther?"
"Sim." Mari me responde.
"Imagino agora o porque de sua mãe se sentir tão incomodada sobre tudo isso, vocês todos tem uma relação muito boa."
"Sim, mas ela poderia ficar feliz por isso." Liz completa.
"Sim, eu só acho que é demais para ela ver meu pai construindo uma família nova como se nada tivesse acontecido, sabe? Ele me pediu desculpas por tudo mas acho que nunca se desculpou de verdade com ela, ele a machucou muito."
"Isso é verdade."
"Ela reagiu pior do que eu imaginava quando soube de Pedro." Laura diz.
"Nem me fale, ela surtou. Não ter controle sobre minha vida quase a fez enfartar."
"Vocês não se resolveram ainda, não é? Depois do lance com o Guilherme."
"Não, vim direto para cá e não nos falamos mais, fiquei surpresa em vê-la aqui. Fiquei muito feliz, ela é minha mãe e a amo, mas não vou permitir que ela controle mais minhas decisões dessa forma. Vai ser difícil, mas estou decidida.''
"Entendo." Mari me conforta.
"Nem sei como você aguentou tanto tempo, eu já teria surtado." Liz protesta.
"Nem me fale." Laura, que é minha versão carioca de Liz concorda.
"Soube que o Arthur apareceu no hospital ontem." Laura me diz.
"É, pois é."
"O que? Como assim?" Mari e Liz me perguntam.
"Vocês já sabem de tudo?" Pergunto, não me lembro de ter contado à elas.
"Já, eu contei." Laura me responde. Me sinto aliviada que elas estejam se entendendo, odiaria que minhas melhores amigas não se entendessem.
"Ele apareceu lá ontem, foi estranho, não sei o que ele queria mas estava estranho, nervoso. E me lembrei que aquele dia na festa, no quarto, ele me pediu desculpas."
"Desculpas? Por que?"
"Não entendo, realmente não entendo como ele poderia ter feito algo assim, ele nem tinha motivos para isso."
"Não se precisa de motivos para fazer esse tipo de coisa, você sabe disso, mulheres infelizmente são violadas com muita frequência, Sarah." Mari muito consciente e carinhosa me lembra.
"Eu sei, mas...Arthur? Quer dizer, nem achei que ele gostasse de meninas."
"É, nem eu." Laura concorda.
"Mas então o que você acha que rolou de verdade?"
"Eu acho que não é o que, mas quem."
"Como assim?"
"Ela acha que foi Rafaela." Enrico entra na cozinha.
"O que? Por quê?" Mari e Liz perguntam.
"Eu fiz a mesma pergunta." Enrico responde.
"E por que raios Rafaela faria isso com você? O que ela ganha com isso?" Laura questiona.
"O que?" Pedro entra na cozinha.
Perfeito, todos contra mim era tudo que eu precisava.
"Não sei, mas vi Arthur entrar no carro dela depois de sair do hospital e fiquei com essa história na cabeça."
"Você acha que Rafaela faria isso?" Pedro surge do além e me pergunta, me sinto ofendida, é como se eu estivesse inventando uma história absurda.
"Você não?" Ergo as sobrancelhas e sou o mais enfática possível.
"Não sei." Ele está sendo o pior possível e sabe disso, está fazendo de propósito.
"Você é quem a conhece melhor, deveria saber."
"Não fui eu quem decidiu ter novas experiências ultimamente." Ele joga na minha cara sem a menor dificuldade.
"Eu não decidi nada, você sabe disso."
"Sei?'' Ele me encara. ''Espera aí, por que sou o único que não sei que ele foi visitar você?
Ele está jogando baixo e sabe disso, não respondo sua ultima pergunta.
"Sarah, você não acha que sua implicância com ela está falando mais alto?" É Mari quem me diz, eu sabia que no momento em que eu cogitasse essa possibilidade isso aconteceria.
"Até tu, Brutus?"
"Não, eu só acho que..."
"Ela não está errada."
Yasmin entra na cozinha e para em minha frente no balcão.
"Como assim?" Laura questiona.
"Sarah não está errada em seu palpite."
"Então fala o que você sabe, Yasmin." Pedro para todos os seus movimentos para ouvi-la.
Meu Deus, é um novo pesadelo.
Yasmin está nervosa, sua respiração está acelerada e se sente desconfortável, é perceptível em seu comportamento.
"Arthur ama Rafaela, desde sempre, mas nunca foi recíproco e ambos sabiam disso. Rafaela sempre ficou com vários meninos, inclusive com Pedro, e isso nunca foi um problema para ele, porque ele sempre soube que nada aconteceria entre os dois, e eu também nunca vi Rafaela brigar tanto por um menino como brigou por Pedro. Eu fui sua amiga desde sempre e ela fica com quem quer, sem compromisso, mas com Pedro foi diferente. Desde que a Sarah apareceu e que Pedro começou a gostar dela, Rafaela ficou com ciúmes e essa raiva da Sarah, parece que encarou isso como uma competição."
"Meu Deus."
Não sei se quero que ela termine.
"Mas aí ela se deu conta de que tem um fantoche, Arthur esconderia um corpo por ela, e ela aproveitou disso. Ele jamais faria algo do tipo com a Sarah, mas fez por ela. Ela queria que Pedro visse Sarah com ele e que de alguma forma Pedro ficasse com ela de novo. Ela nunca superou que Pedro não a quer, e quer você, Sarah. Ela fez e faria pior, pode ter certeza."
"E o que a fez contar tudo assim?" Laura pergunta.
''No começo parecia ser só uma briguinha por causa de menino, então não quis me intrometer, mas Rafaela fez coisas das quais não quero ser conivente. Quer alguém para se arrumar, se sentir linda e fazer uma fofoca? Ok, me chama. Mas isso foi longe demais, e não acho que o motivo valha a pena.''
Ela olha com desdém para Pedro, acho que não é muito fã dele.
Mas é para mim que ela olha agora.
''Sinto muito, Sarah.''
Ual.
O que realmente sabemos é uma gota e o que ignoramos é um oceano, agradeço à Newton por tal reflexão, com toda certeza ele não pensou em uma situação como essa quando formulou sua frase, mas cai como uma luva. Me entristece que mulheres sejam capazes de fazer isso com outras mulheres, evoluímos tanto conquistando nossos direitos para regredirmos outras mulheres, é realmente muito triste. É triste o quão profundo as pessoas podem ir só para causar o mal, e eu aos meus dezessete anos, estou descobrindo coisas das quais não gostaria, coisas das quais me fazem ter vontade de gritar para o mundo e dizer que está tudo errado, nós estamos brigando pelas causas erradas, pelas pessoas erradas, há milhares de questões humanas das quais podemos questionar. Mas não dá para mudar o mundo aos dezessete anos, não dá para salvar o planeta da maldade humana, e eu, aos dezessete anos, estou entendendo isso.
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Inefável
Romans"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...