O primeiro e o segundo

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SARAH

É Sábado, meu ultimo dia inteiro aqui, o dia que ele termina seu ciclo na escola, encerra uma fase da sua vida, a fase mais difícil de sua vida, acredito eu, não importa quais sejam suas dificuldades na faculdade, nada supera tudo o que lhe aconteceu durante sua vida escolar.
O sol da manhã entra pela minha janela e ilumina seus cabelos que parecem mais brilhantes, estão castanhos agora, como mel, bem clarinhos, pela ultima vez observo seus detalhes, cada detalhe seu me encanta e faz meu coração bater mais forte, a ponto de eu nem sentir, não sinto nada quando ele está assim, dormindo, sonhando com sabe-se lá o que, seu nariz perfeitamente desenhado, sua mandíbula que marca quando ele morde, sua boca rosada desenhada como um coração, sua expressão séria que esconde um menino bom e sensível. Meu menino. É a ultima vez em um bom tempo que vou acordar ao seu lado assim, com essa calmaria, escutando os barulhos da cidade lá fora, o vizinho cortando a grama, o passarinho cantando e o cachorro latindo, e aqui dentro, só nós e o nosso mundo, protegidos de tudo e todos, nossa bolha. Tenho medo do que pode acontecer quando estivermos além dessas paredes, tudo muda quando estamos lá fora, no mundo real, tudo é mais complicado e difícil, só o amor não é suficiente lá fora.
Me atrevo a acariciar sua franja fazendo esforço para que ele não acorde, parece tão tranquilo dormindo, sua respiração calma e suave indicam que ele está tendo um sono tranquilo e calmo.
Hoje o dia é só dele, então tenho a ideia de preparar um café na cama para ele. Levanto com todo o cuidado do mundo e vou até a cozinha, estão todos dormindo pelo jeito, a casa está silenciosa como se eu estivesse sozinha. Nesse momento, prefiro assim.
Preparo um café nessa cafeteira que ainda não sei utilizar direito, mas sei que ele gosta de café forte e me esforço para que saia perfeito. Torradas e geleia de amora, seu café da manhã preferido. Arrumo tudo da melhor forma que sou capaz, escrevo um bilhetinho.
''A vida é boa se estiver disposto a vivê-la, e duas vezes melhor se estiver com quem ama ao lado.''
Subo de vagar as escadas e encontro com Laura descendo, eles dormiram no quarto do Enrico, eu presumo.
''Não acredito, eu tive a mesma ideia.'' Ela quase grita mas faço cara feia, não quero que meu plano vá por água abaixo.
''Desculpe.'' Ela sussurra.
''Vá fazer um café pra ele também, deixei as coisas em cima do balcão.''
Respondo o mais baixo que posso.
''Somos ótimas namoradas.''
''Somos mesmo.'' Sorrio.
Abro a porta bem de vagar e ele está na mesma posição, como um anjo iluminado pela luz do Sol, que vem lá de cima. Não tenho coragem de tira-lo se seu sono, então fico aqui o observando, aproveitando cada ultimo segundo ao seu lado. Mesmo que um dia estejamos separados e vivendo vidas diferentes, mesmo até se nos casarmos com outra pessoa, jamais esquecerei do que Pedro foi e é para mim, transformou minha vida do avesso, diversas coisas aconteceram, boas e ruins, e eu não mudaria nadinha, nem uma experiência. Faz parte de quem sou e das coisas que aprendi, faz parte do meu processo, um processo que jamais vou esquecer.
Ele desperta, abre os olhos para o mundo e sorri, o sorriso que aquece meu coração.
''Bom Dia.''
''Ual. Bom Dia.''
Recebo um beijo leve e carinhoso.
''Você é a minha pessoa, independente de tudo que aconteceu e de tudo que poderá acontecer, você é a minha pessoa, entende isso, não entende?''
''Entendo.''
''Um café na cama? O que eu fiz para merecer isso?'' Ele pergunta sorrindo, mais como um argumento do que uma pergunta.
''Você é você, isso basta. E hoje é seu dia, só seu.''
''Não, por favor, não me obrigue a participar disso.''
Ele se joga na cama fazendo graça, como se fosse a pior coisa do mundo.
''Não dramatize, é só um almoço de formatura, só uma colação, sem festa nem nada, só uma despedida de quem você conviveu sua vida toda.''
Ele me olha profundo nos olhos.
''Vou estar ao seu lado o tempo todo, quando não se sentir confortável olhe para mim e eu estarei lá.''
Ele me beija expressando seu amor por mim neste momento, e eu me permito aproveitar esse momento ao seu lado e me entregar à ele como todas as outras vezes que me entreguei, com carinho e desejo, sempre.
''Eu amei o café da manhã.''
Ele diz enquanto acaricia meus longos cabelos depois de um momento só nosso.
''Que bom.''
Sorrio.
''Já escolheu sua roupa?''
''Pra quê?'' Ele me olha como se estivesse esquecido algo importante.
''Para a colação, ué.''
''Não é só ir com uma blusa branca e uma calça preta?'' Ele diz normalmente.
''Meu Deus, Pedro.''
''O quê, qual é o problema?''
''O problema é que não é como ir na esquina tomar sorvete, é sua colação, o momento mais importante da sua vida acadêmica.''
''Meu Deus, Sarah.'' Ele ri, ele está rindo de mim, assim, na minha frente, e eu nem sei o porquê, pois falo muito sério.
''Qual é a graça?''
Cruzo os braços.
''Você é tão preocupada sempre, com tudo e todos os detalhes.''
''E qual o problema em me importar com sua roupa?''
''Nenhum problema, você é assim, é assim que eu gosto de você, só achei engraçado.''
''Pois não tem graça, vamos agora escolher uma roupa.''
''Nossa, Pedro, que guarda roupa bagunçado.''
''Acho que Esther me deu alguma coisa de Natal.''
Ele vai falando enquanto eu vasculho seu guarda roupa, se é que isso pode ser chamado de guarda roupa, é um amontoado de roupas desdobradas e empilhadas.
Nem uma camiseta no lugar, cintos para todo o lado, um desastre. ''Guarda roupa bagunçado, vida bagunçada'' minha mãe dizia.
''Tudo bem, veste essa calça e essa camisa branca.''
''Vou ficar parecendo um playboy, de jeito nenhum.''
''Pedro.'' Eu o olho com o olhar que eu sei que ele teme, todos os homens temem à mulheres que os olham assim, e deveriam mesmo.
Ele pega a roupa.
''Um pouco de privacidade por favor.''
Ele diz ironicamente, pois já fiz isso com ele inúmeras vezes, trocar de roupa é algo muito pessoal.
''Tudo bem, eu me viro.''
''É brincadeira, boba, você já me viu de ângulos piores.''
''É verdade.''
Rio.
''Eu estou realmente parecendo um playboy, não vou colocar esse cinto de jeito nenhum.''
''Ok.''
'Ok?'' Ele pergunta desentendido, impressionado por eu não discordar e aceitar sua decisão de forma passiva.
''Ok, se você não quer vestir, não vista, não posso te obrigar a nada, é o seu dia e meu ultimo aqui.''
Sei muito bem o que estou fazendo e minha deusa interior bate palmas orgulhosa.
Ele vem em minha direção e beija minha testa.
''Tudo bem, você é a melhor, obrigada pela ajuda.''
''Agora vamos descer e dar um sinal de vida.''
Ele me acolhe em seus braços e descemos juntos.
''Bom Dia, casal.''
''Bom Dia para o meu irmão preferido.''
''Eu sou seu único irmão.''
''Exatamente.''
Ele semicerra seus olhos para mim rindo.
''Dormiram bem?'' Esther me pergunta da cozinha.
''Muito bem.'' Laura responde quase como um sussurro para que Esther não ouça.
''Cale a boca, Laura.'' Sussurro e rimos, todos.
''Bem, obrigada Esther.''
''Vocês dormiram muito bem também.'' Pedro diz à Enrico.
''Melhor que nunca.'' Meu irmão nada vergonhoso responde.
Laura revira os olhos.
''Ganhei até um café na cama.'' Pedro conta.
''Eu também, temos ótimas namoradas.'' Meu irmão diz.
''Sarah, vou me arrumar no cabeleireiro, consigo um horário para você se quiser, e para você também, Laura.'' Esther nos diz enquanto termina de arrumar a louça.
''Tudo bem, não precisa, vamos nos arrumar aqui mesmo.'' Respondo, não quero algo muito exagerado, é só uma colação e Pedro não se sentiria confortável com tudo isso. Menos é mais.
''Tudo bem.'' Ela diz sorrindo, tudo está sempre bem para ela. ''É tão bom tê-las aqui em casa.''
''É sempre bom ter você por perto também, Esther.'' Eu e Laura respondemos de forma carinhosa.
''Vocês são importantes para nós e para esses meninos, mais do que vocês imaginam.''
Ela sempre toca meu coração com muito carinho.
''Para nós também.''
''Vou indo para não me atrasar, meninas, mas qualquer coisa é só me ligar.''
Ela pega a bolsa e a chave do carro enquanto tira seu avental personalizado com seu nome, nada mais a sua cara.
''Tudo certo.''
''Beijos.'' Ela grita da porta.
''Beijos.''
''Você já sabe o que vai fazer no seu cabelo, Sarah?''
Eu a olho como um cachorrinho sem dono, minhas habilidades para penteados e maquiagens não são as melhores.
''Tudo bem, vamos pensar em alguma coisa.''
''Vamos tomar um banho na banheira da Esther, é gigante.''
Me lembro que ficávamos horas na banheira da Lis fofocando, falando da vida de alguém, rindo. Sinto saudades disso.
''É enorme mesmo.''
''Como você sabe?''
Sei bem como ela sabe, e não me importo, pelo contrário, fico feliz que ela e meu irmão estejam avançando em sua intimidade, se dando bem juntos, fico realmente feliz, meu irmão merece ser feliz.
''Como você acha que eu sei?''
Nos entreolhamos com o olhar que nós bem entendemos e rimos.
''O que será que é isso?'' Eu digo com um frasco rosa na mão, não tenho ideia do que usar nessa banheira, nunca tive uma.
''Assim, ó.'' Ela pega o frasco da minha mão e despeja parte do líquido ao redor da água, sinto um cheiro divino, me sinto no céu.
''Que roupa você vai?'' Pergunto enquanto descanso meu corpo nessa banheira inteiramente grande e confortável.
''Com um vestido até o joelho, preto. E você?''
''Com um vestido lindo, você vai ver. Quando fui comprar encontrei Rafaela, me lembro que ela me olhou com tanto desdém que me senti feia.''
''E por que você vai com ele?'' Ela me olha curiosa.
''Porque me sinto linda naquele vestido e não vou deixar que o olhar dela me abale de alguma forma, não mais.''
''Entendo. Sarah, eu...''
''Há quanto tempo vocês se conhecem?''
''Eu e Rafaela?''
Faço um sinal afirmativo.
''Desde sempre, nossos pais trabalham juntos e ela é um ano só mais velha, então quando entrei na escola ela já estudava lá, e desde então nos conhecemos. Eu não tinha muitas amigas, então saía sempre com ela antes de você chegar.''
''Entendi, desculpe, o que você ia falar antes de eu te cortar?''
''Não era nada...''
''Tudo bem.''
E aqui, nesse momento calmo, me lembro de como eu me sentia insegura sobre vir para o Rio, me lembro de todas as vezes que disse para minha mãe que não queria vir, de todas as vezes que disse à ela que eu me sentia desconfortável. Aprendi inúmeras coisas nesse lugar, inclusive que não se deve recusar tais propostas por medo do desconhecido, o desconhecido às vezes é bom e traz experiências das quais nunca esqueceremos.
''Não acredito que você vai embora amanhã, é nosso ultimo dia juntas.''
''Pois é, já me remoí muito sobre isso, e por mais que eu queira muito ficar, eu preciso voltar, é minha casa, meu lugar, é aqui que prefiro estar, mas nem sempre fazemos o que queremos, então preciso encarar as responsabilidades, tenho um ultimo ano para terminar e quem sabe se eu consigo passar em uma faculdade aqui, aí posso vir.''
''É um saco que a gente precise fazer 'O certo', o certo nem sempre é o que queremos e o que nos deixa felizes.''
''Pois é, um dos fardos de ser adolescente, e o fato de isso só piorar quando nos tornamos adultos não ajuda.''
''Não mesmo.''
Rimos, rimos até a barriga doer, rimos de tudo, dos nossos próprios problemas, sempre há problemas, uns aqui, outros ali, uns mais sérios, outros menos, então por que não rir deles? Eles também devem rir de todos os nossos tombos.
''Vou sentir saudades de tudo isso, da sua companhia, eu nunca tive muitas amigas. Rafaela me aceitava junto dela mas acho que depois de tudo o que aconteceu não rola mais.''
''Você tem Enrico, a melhor companhia de todas. Você pode me ligar sempre que quiser, e eu espero poder vir aos finais de semana, todos os que eu puder.''
''Você acha que vai conseguir manter as coisas com Pedro?''
Vim evitando esse assunto o máximo que pude, porque não tenho ideia de como as coisas entre mim e Pedro vão ficar, estamos muito bem, mas Pedro é uma pessoa complicada, precisamos de muito diálogo e paciência pessoalmente, a distância vai ser muito mais difícil. E o fato de eu não saber como vai ser me assusta.
''Não sei, espero que sim, mas ele anda meio estranho.''
''Com você?'' Ela se senta e se posiciona para me dar uma melhor atenção.
''Não exatamente, estamos bem, mas sabe quando você sente que tem algo estranho? Não sei explicar, tipo um sexto sentido, você sabe que precisa preparar seu psicológico para qualquer coisa que aconteça.''
''Entendo.''
''O problema é que eu o amo tanto, mais do que sou capaz de explicar, tanto que fico com medo todas as vezes que penso na possibilidade de nos separarmos.''
''Vocês não vão se separar, ele te ama, todo mundo sabe.''
''Espero, espero de coração.''
Nos entreolhamos com carinho, sei que independente do que aconteça ela estará aqui para me apoiar.
''Agora vamos pensar em coisas boas e ficar gatas.''
''Vamos.''
Coloco uma música e começamos pela maquiagem, Laura que é muito melhor que eu nisso faz o trabalho, um trabalho muito bem feito por sinal, ela passa até um líquido brilhante em minhas pernas, disse que é pra eu ficar mais bronzeada, não tenho ideia do que é mas eu amei. Depois vamos para o cabelo, ela escova meus longos cabelos negros, como um véu e faz cachos.
''Você tem tanto cabelo que me cansa só de olhar.''
''Se quiser ajuda com os cachos é só falar.''
''Tudo bem, não precisa, dou conta desses cabelos enormes.''
''E existe algo que Laura Miler não consiga fazer?''
''Se existisse, você, Sarah Freitas, seria capaz.''
''Prontinho, meu trabalho está feito.''
Me olho no espelho e gosto do que vejo e do que sinto, me sinto bem comigo, me olho no espelho e gosto do que vejo. Minha deusa interior está me aplaudindo em cima de seu Louboutin.
Coloco me vestido vinho que tem mangas e vai até meu joelho marcando meu quadril da melhor forma que pode, me sinto pronta, não sei para quê, mas pronta para viver, para que as pessoas me olhem e eu me sinta segura, eu me sinto segura para qualquer coisa nesse vestido.
''Ual, Sarah, você está divina.'' Ela me olha com olhos de ternura e carinho, sinto que nossa amizade é real por esses pequenos momentos, os momentos em que ficamos felizes com o brilho da outra, acredito que é assim que deve funcionar uma amizade, ficar feliz pela felicidade de seu amigo, e minha amiga, nesse momento, fica feliz por mim.
''Você também está divina, fizemos um bom trabalho aqui.'' Eu pisco e rimos.
''Vou sentir saudades, por favor não me abandone.''
Me aproximo diante de minha amiga insegura.
''Não vou, estarei exatamente aqui, de alma, ao seu lado, assim como sei que você estará para mim.''
A adolescência é um turbilhão de emoções, emoções das quais não estamos preparados para sentir, não sabemos lidar. É estranho como cada segundo conta, cada centésimo de segundo ao lado de quem se ama faz diferença. É muito difícil ter que tomar decisões sem ter a mínima ideia se irá dar certo ou se seremos capazes de lidar com as consequências, no fim, a adolescência é um caminhão de incertezas a serem vividas sem a menor experiência e com a maior cobrança para que seja perfeito. O problema, é o que o perfeito é relativo, a vida perfeita para a minha mãe, não é avida perfeita para mim, o vestido perfeito para Laura, Liz, ou Mari, não é o vestido perfeito para mim, então como é que as pessoas podem exigir tanta perfeição se nem sabem se é o que de fato querem, se não têm a mínima certeza do caminho perfeito, ninguém tem, o caminho perfeito é um processo cheio de experiências das quais fazemos escolhas, acertamos ou erramos, e se for um caminho perfeito, nos sentiremos felizes, e é assim que saberemos que chegamos perto.
''Vou ver como Pedro está.''
''Vou terminar aqui e depois vou ver o Enrico.''
''Meu Deus.'' É o que ele me diz ao me ver, acredito que tenha sido uma boa reação considerando sua expressão, a mesma expressão que fazemos quando vemos algo que gostamos muito, algo que nos impressiona tanto que não temos palavras. É assim que ele me olha e é assim que eu me sinto.
''Demais?'' Pergunto encolhendo os ombros.
''Não, perfeita.''
''Você está linda, Sarah, linda mesmo.'' Meu carinhoso irmão diz se aproximando de mim e saindo pela porta, por um segundo sinto que ele vai me dar um beijo na bochecha, mas ele não faz, acho que ainda é muito, aos poucos ele está se abrindo e demonstrando carinho, mas no tempo dele, e eu respeito, sei que ele está fazendo o melhor que pode e eu estou aqui para apoia-lo e entende-lo.
''Você me impressiona todos os dias , Sarah.'' Ele se aproxima de mim e eu olho em seus olhos.
''E o que eu faço para impressionar Pedro Freitas?''
''Tudo o que você faz me impressiona, cada dia que você evolui como pessoa, cada dia que você se esforça para que seja melhor, cada dia que você supera seus medos e me ajuda a superar os meus, cada passo pra frente que você da, que me faz dar um pessoa junto. Eu te admiro como ser humano e como mulher, Sarah.''
''Você aquece meu coração em todas as sua palavras, cada vez que você se expressa assim, sinto que você está evoluindo sua postura fechada e que você gosta de mim. Mas por que eu sinto que é uma despedida, Pedro? Por que desde que você soube que eu iria embora sinto que você está se despedindo como não fossemos mais nos ver?''
''Sarah, eu...'' Ele passa as mãos pela testa, está nervoso, ele está se despedindo de mim e há um motivo, eu sei que há, só não sei, ele não se expressa com facilidade, não conta seus planos à qualquer um, mas sou eu, poxa.
Ouço batidas na porta. Droga, eu preciso de respostas, é assim que vivo, preciso de respostas, preciso entender o que está acontecendo.
''Pedro, querido?''
''Pode entrar, Esther.''
Nos afastamos para que o clima fique favorável e Esther coloca nele uma gravata, meu Pedro, meu menino perdido e machucado, meu menino confuso, o que ele esconde de mim? Qual o problema que terei que lidar dessa vez? O que a vida tem para mim agora?
Cada vez que penso em como ele vem se despedindo de mim meu coração dói, decidi ignorar isso da primeira vez que senti, e vou continuar ignorando se ele não quiser me contar, não irei força-lo à nada, se é preciso que eu o force para me contar algo, então não quero saber.
''Esther, não preciso de gravata.''
Ele odeia gravata, sei disso porque eu o conheço, porque conheço cada detalhe seu.
''Precisa sim, querido, é um cerimônia.''
Ele revira os olhos e eu rio, meu menino teimoso.
Esther me olha com sua ternura.
''Você está linda querida, como sempre.''
''Obrigada, Esther, você também, como sempre.''
Esther foi a primeira que eu julguei mal, julguei seus gostos e personalidade, e julguei muito mal por sinal, Esther é a pessoa mais humana que eu conheço, ela se importa, isso muda tudo, seu carinho e sua ternura, sinto-me acolhida por seu carinho. Já me acostumei com seus saltos vermelhos e suas cores extravagantes, ela é assim, se ama assim, e eu também a quero bem assim, do jeitinho que ela é, do jeito que ela se expressa e não tem medo do que os outros vão pensar, ela é o que ela é, e isso basta.
''Te vejo lá em baixo quando estiver pronto, você está lindo.''
Deixo-o com o coração apertado, o coração de alguém de incertezas, que não sabe o que esperar.
Sento no sofá com meu celular e entro em sua conta do instagram, ele tem várias fotos minhas, fotos que não aparecem meu rosto por completo, mas detalhes meus, meus longos cabelos, meus olhos, minhas curvas, nada que mostre demais, ele não gostaria nem de pensar em alguém me olhando como ele me olha, mas são fotos que me mostram a forma como ele me vê. Sinto um pouco de vergonha, mas ao mesmo tempo gosto, sempre que alguém entrar em seu instagram me verá.
Meu pai se senta ao meu lado, meio sem jeito, ele ficou muito distante depois que teve que me dizer que eu teria que ir embora, ele sabe a dor que isso causou a todos, mas não é culpa dele, não são as escolhas dele, e sim as minhas, minhas escolhas e minhas próprias consequências.
''Você está linda, filha.'' Ele me olha nos olhos, os olhos que herdei dele, qualquer um que olhe em meus olhos se lembra dele.
''Obrigada, pai, você está bonito também.''
Ele sorri de forma sem graça, apesar de seu esforço para que nossa relação seja boa, nossa falta de convivência nos deixa desconfortáveis por nossa falta de intimidade.
''Eu te perdoo, pai.''
Ele me olha intrigado, como se não entendesse do que estou falando, mas se vira para me incentivar a dizer o que eu sinto.
''Eu te perdoo por ter me abandonado, você é um bom pai agora.''
Uma lágrima escorre de seus olhos, e uma escorre dos meus também, passei minha vida toda sentindo raiva de um pessoa que tinha abandonado eu e minha mãe, de uma pessoa que nos deixou no escuro, mas essa pessoa não é mais ele, essa pessoa faz parte do seu passado agora e eu preciso perdoa-lo e seguir em frente, para que ele possa seguir em frente, e para que eu possa viver bem, para que eu possa virar essa página, algumas páginas de nossas vidas ficam inacabadas e obrigatoriamente passamos para outra, mas para que o livro de fato possa ser fechado, é preciso que volte na página inacabada e dê um fim à ela, seja bom ou ruim, a página precisa de um fim, para que possamos fecha-la com segurança.
''Eu te amo, filha, mais do que sou capaz de explicar.''
Ele me abraça.
''Eu também te amo, pai.''
Me sinto aliviada, eu o perdoo, perdoo porque todos erramos, e o importante é nos sentirmos arrependidos e tentamos ser pessoas melhores. A questão é que esse processo não pode ser forçado, deve ser natural, cada um em seu tempo, foi preciso que meu pai me desse um tempo para que eu enxergasse sua mudança e trabalhasse essa carga de sentimentos em mim, e foi preciso que eu desse tempo à ele para desculpar-se. Nada repara os anos de sua ausência, mas isso já passou, e ele está aqui para mim agora, isso não muda o passado, mas muda o futuro, muda o meu futuro para melhor, um futuro com o meu pai, um futuro do qual nunca imaginei.
''Todos prontos?'' Esther pergunta com receio de ter interrompido um momento importante.
''Sim, claro.'' Meu pai e eu levantamos do sofá.
Me sinto de corpo e alma leve, sensação de dever cumprido, como se tudo estivesse em seu devido lugar, e está mesmo, nada do que aconteça irá me fazer pensar que me reaproximar do meu pai não valeu à pena, tudo vale a pena se a alma não é pequena, já dizia meu caro Fernando Pessoa, e nesse momento, me sinto com uma alma gigante e confortável por tudo de bom que sinto, pela forma como me sinto e por tudo o que vivi, o meu processo.
''Espero vocês no carro.'' Meu pai diz caminhando até a porta.
E enquanto todos caminham até a saída, ele me para.
''Podemos tirar uma foto juntos? Não temos muitas e gostaria de registrar o momento em que você me obrigou a participar da minha formatura.'' Ele diz sorrindo.
''Vamos.''
Ele me da seu celular e eu tiro uma linda foto desse lindo momento, algo em meu coração me diz que pode ser nossa ultima foto juntos, então aprecio a foto com carinho.
Ele faz menção de dizer algo mas eu faço um sinal negativo com a cabeça, nada do que ele disser agora poderá me fazer ama-lo menos, e sinceramente, não quero que nada estrague seu momento, então seja lá o que ele pretendia dizer, ou se realmente iria mesmo dizer, não é preciso nesse momento, não mais.
No carro de Esther, eu e Pedro nos sentamos distantes, cada um em uma janela, mas com nossas mãos unidas, e logo atrás em outro carro, meu pai leva meu irmão com Laura.
Acaricio suas mãos, um carinho leve e sincero, é tudo o que consigo sentir por ele, carinho. Ele não faz muito contato com o olhar, então seguimos assim, em repleto silêncio e pensamentos, sei que ele pensa em muitas coisas, é como se sua mente pensasse alto, só não sei em quê ele pensa, no que ele se preocupa.
A escola está toda reformada, da pra saber pelo cheiro de construção recém feita, dos bancos que não possuem nem um arranhado e pela expressão dos alunos ao verem sua escola recém formada, uma reforma da qual não irão usufruir.
Estão todos bem vestidos para sua formatura, belos vestidos e belas gravatas, uns com seus tênis, outros com seus sapatos sociais, e meu Pedro com seu All Star de couro preto, seu inesquecível All Star de couro preto.
A cerimônia corre bem, da mesma forma que todas são, pais chorando por verem seus pequenos filhos crescidos entrando para a faculdade, alguns alunos que tiveram um bom Ensino Médio choram por separarem-se de seus amigos, outros dão graças a Deus e outros são inexpressivos, como Enrico e Pedro, eles passaram por mais coisas que qualquer um desses adolescentes aqui presentes já passaram na vida, acho que dão graças não só pelo Ensino Médio te acabado, pois esse não foi o problema em si, mas por essa fase de suas vidas, essa fase sombria e dolorida. Não tenho certeza de que essa fase acabou, assim como eles também não têm, mas a mudança é perceptível, seus olhos estão diferentes, são olhares com vida, diferentes dos olhares vazios e sem esperança de antes, suas almas parecem ter vidas novamente. Qualquer fase difícil que eles passem em suas vidas não chegará aos pés dessa.
É um novo começo, uma nova fase e um novo processo, as bagagens que eles levam são pesadas, mas não os impedem de viver essa fase, apenas os deixam inseguros, como sei que são. Peço de coração, para qualquer força divina que esteja me ouvindo nesse momento, que os dê força para essa fase de suas vidas, a vida é boa pra quem está disposto a vivê-la e a olhar com bons olhos, e sei que eles estão.
Becas no chão e chapéus para o alto, assim se encerra a cerimônia, lágrimas e sentimentos de alívio, sorrisos e sentimento de gratidão por terem sobrevivido ao Ensino Médio, assim acaba-se a colação depois de um belo discurso feito por uma menina loira, muito bonita, dizendo o quanto foi grata pela presença de cada um em suas vidas, discursos de formaturas são sempre muito clichês e emocionantes, é assim que é, mesmo que não seja verdadeiro.
Tiramos muitas fotos, Esther não nos deixa fugir de nenhuma e meu irmão e meu amado namorado, se é que posso chama-lo assim, fazem as caras mais feias possíveis, e em seguida Esther os obriga a tirar novas fotos para que fiquem sorridentes, o que provoca risos em mim e Laura, é um momento especial e familiar, me sinto confortável aqui, com todos.
Ele não solta a minha mão em nenhuma das fotos, faço menção de afastar minhas mãos das suas por um instante mas ele não deixa, segura minhas mãos com força e nervosismo, estão suadas e apreensivas. Tiramos várias fotos, Rafaela está muito bem arrumada como sempre, um vestido dourado que reluz conforme o sol o ilumina, extremamente inapropriado para a ocasião, minha mãe diria, com seus seios quase pulando para fora e suas pernas muito bem mostradas, cabelos soltos e saltos agulha bem altos.
E para não perder o costume, ela vem em nossa direção, e como sempre, sei que irá fazer o que for preciso para me deixar desconfortável, a questão, é que a essa altura do campeonato, existem diversas outras coisas que merecem minha real preocupação, ela não me deixa mais desconfortável e nem me ameaça com seus seios maiores que os meus.
''Bonito vestido, Sarah.''
Pedro revira os olhos, Enrico evita fazer contato com seu olhar, e Laura não diz nada.
''Gostaria de poder dizer o mesmo, Rafaela.'' Sorrio ironicamente, um sorriso com o olhar levantado, mostrando que ela precisa de muito mais que isso para tirar minha paciência.
''Você não gostou, Sarah? Ou é demais pra você?'' Ela olha para seus seios e me retribui o sarcasmo, olhando diretamente para Pedro.
''Só não faz meu estilo.'' Pego na mão de Pedro e ele beija meus cabelos delicadamente demonstrando carinho, minha deusa interior pula de alegria.
''Agora, se você não faz questão, eu gostaria de ter um bom dia com minha família em paz.'' Esther a olha com um olhar matador, desses que não precisa de interpretação, um olhar de uma leoa que protege seus filhotes. Ela nos conduz para outra direção, não olho mais em Rafaela, ela teve o que mereceu hoje.
''Essa menininha é abusada, ein.'' Esther diz irritada ao ver que sua família está sendo incomodada.
''Venham, vamos tirar umas fotos aqui.'' Ela aponta para um jardim com rosas.
''Mais fotos, mãe? Já não está bom não?'' Enrico está realmente irritado com essa gravata, e faz menção para tira-la, mas Esther não deixa.
''Só mais umas fotos, querido, por favor, vem Pedro você também.''
Estão todos meio de saco cheio de tantas fotos, mas é um momento importante para ela, seu único filho e seu filho de consideração estão se formando hoje, é um grande momento para ela, sua felicidade está estampada em seu rosto, então não ousamos reclamar.
Mas reparo em um homem nos olhando e depois nos olhando de novo, um homem de gravata, acredito que seja um dos professores, ele vem em nossa direção.
''Pedro? Oi, parabéns pela formatura.''
Ele cumprimenta Pedro e ele solta da minha mão pela primeira vez em algum tempo, ele está quase suando frio. O professor cumprimenta meu pai e Esther também, aceno de leve para ele, por educação, ele veio aqui especificamente para falar com Pedro.
''Gostaria de parabeniza-lo por sua escrita, Pedro, recebi a confirmação do reitor de Cambridge ontem à noite, mas achei melhor parabeniza-lo hoje, imagino que receberá sua carta de aceitação por email em alguns dias, apesar de não ser um aluno muito regular, sempre admirei sua escrita e sua forma de se expressar com as palavras, essa universidade avalia muitos critérios além dos boletins e da regularidade, e você, sem dúvidas, tem um bom domínio da escrita e um bom conhecimento de literatura, estou realmente muito orgulhoso, Pedro.''
Mas ele percebe que ninguém está a par dessa informação nova pela cara que todos fazemos, seu tom de voz vai diminuindo conforme ele fica sem graça, é uma informação realmente nova e inesperada para todos.
''Espero que sintam orgulho do Pedro, é um bom rapaz.'' Ele da leves batidinhas no ombro de Pedro sorrindo e sai pedindo licença, percebendo que jogou uma bomba e reagindo como tal, sair correndo.
Ual, Cambridge? Onde fica? Inglaterra? Pedro não sairia daqui, isso acabaria com todos os nossos planos, acredito que tenha sido esse o motivo de não ter dito uma palavra à ninguém, ele não vai. Mas por que ele se inscreveria para não ir? Ele realmente pensa em ir? Quer dizer, achei que fossem só especulações quando falamos disso.
A viagem de volta para casa foi o mais estranha possível, depois da bomba que o professor Danilo jogou, imagino que seja esse o nome dele, o assunto era sério demais para prestar atenção nos mínimos detalhes. Pedro disse resumidamente no almoço que tinha se inscrito porque esse professor disse que seria uma oportunidade incrível, mas não contou a todos porque tinha certeza que não entraria. Esther fez inúmeras perguntas ao longo do almoço, e ele respondeu à todas, sem hesitar e direcionando seu olhar à mim, como se me devesse alguma explicação, e ele realmente me deve, ele respondeu todas as perguntas de forma rápida e bem explicada, como fez a inscrição, no que pensou, quais foram suas intenções e a pior de todas, se iria, ele disse que não sabia.
Provavelmente mais algumas perguntas foram feitas, mas não lembro, está tudo um verdadeiro limbo em minha mente, um vazio, uma escuridão, um aperto no coração, não sie o que pensar, não sei o que sentir, não sei que reação ter, acredito que estou em choque. Mas até agora, esse choque tem me impedido de sentir grandes coisas, Laura também não pronunciou uma palavra, só me lembro dela ter direcionado seu olhar à mim todas as vezes que Pedro abria a boca para explicar mais alguma coisa para Esther ou meu pai, e Enrico permaneceu calado, sem dizer uma palavra.
Eu simplesmente não sei o que sentir, não sinto nada além de um grande vazio, uma sensação ruim, desconfortável, quando sabe-se que algo não está certo, e nesse momento, existem diversas coisas que não estão corretas. Não trocamos olhares depois disso, não tirei meus olhos da janela no caminho para o restaurante, e lá não tirei os olhos da comida que nem sequer encostei, a fome é um bônus nesses momentos, e agora, ainda não consigo tirar meus olhos da paisagem, não dá, é como se meus olhos não desejassem mais olhar outra coisa, como se não conseguissem, e de fato, não conseguem. Meu emocional está com defeito temporariamente, por um tempo que não sei quanto, não sou capaz de expressar nenhuma emoção, nada, nem felicidade, nem tristeza e nem raiva, nada, nada passa por aqui, apenas vazio o medo de ele ir, porque no fim do túnel, bem no fundo da minha mente, sei que ele vai, sei agora que é por isso que ele estava se despedindo, ele vai, ele realmente vai. O primeiro homem da minha vida que deveria ter ficado e me ensinado coisas, partiu, o segundo, irá partir também.

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