Entro no carro do meu pai e passo o caminho todo pensando em como minha vida foi parar nesse estado. Eu vivi criticando adolescentes que agem por impulso ou fazem coisas imaturas, mas eu não tinha tido a chance de vivenciar isso. Estou me tornando o que eu mais critiquei, e isso me faz enxergar como nós somos egoístas ao julgar as pessoas. Não sabemos pelo que estão passando e mesmo assim julgamos, deveria ser uma regra não julgar um adolescente, não sabemos o que estamos fazendo na maior parte do tempo.
Vamos para um hotel e eu divido o quarto com Esther, tudo o que eu quero é um banho e uma cama, nosso vôo é amanhã bem cedo.
"Estou aqui se precisar conversar, tudo bem querida?" Ela diz carinhosamente enquanto arruma nossas camas.
Eu assinto, estou exausta demais para um desabafo e sei que se eu começar não vou conter meu choro.
Depois de um banho libertador deito na cama para ver se consigo dormir, mas a única coisa que passa em minha mente é imaginar o que Pedro está fazendo agora, se ele pensa em mim como penso nele ou se seu coracão dói ao perceber que não estou do seu lado. E em minha mãe, em como nossa relação ficou nessa situação. Acabo adormecendo entre um pensamento e outro. Novamente estou no mesmo lugar, deitada na mesma cama e vendo a mesma cena, minha mãe chorando e um sentimento de angústia em meu peito por não conseguir ajudá-la.
Sinto um toque em meu ombro.
"Sarah, querida, está tudo bem?" Esther me acorda, pela milésima vez tenho o mesmo pesadelo.
"Você estava falando umas coisas e está suada, está tudo bem?" Ela me descobre e senta ao meu lado na cama, está de madrugada.
"Acho que sim, eu... Eu tenho uns pesadelos às vezes."
"Que tipo de pesadelo? Você parecia estar sofrendo."
"Sempre o mesmo pesadelo, ficaram piores depois que voltei."
"Ah, querida. Venha aqui, vai ficar tudo bem."
Ela me acolhe em seu colo e eu deito, como uma criança quando sente falta da mãe, e nesse momento, eu gostaria muito de um colo de mãe. Choro e me permito sentir tudo o que tinha me privado de sentir, toda a dor que soterrei sobre minha força, permito que ela me tome e que eu sinta. Durmo assim, sentindo a dor dos problemas da vida.
Acordo com a mão de Esther em meu ombro.
"Querida, temos um vôo a embarcar, arrume suas coisas."
Minha cabeça dói e meu corpo está exausto, a falta de Pedro me dói fisicamente.
Passamos pelo hall do hotel e pegamos um táxi em direção ao aeroporto, não sei como as coisas vão ficar agora, só sei que Pedro é o meu lugar. É dele que eu preciso.
Minha deusa da consciência me diz novamente: Burra.
O voo de volta para a casa do meu pai é tranquilo, fico feliz que ele tenha uma vida bem sucedida agora, nunca vou esquecer o que ele fez, mas acho que posso conviver com isso. Penso o tempo todo na frase que minha mãe me disse, e eu me lembro a todo segundo do motivo que me vez ir embora, ele é o motivo da maioria dos meus problemas, inclusive.
Não teve um minuto dessa viagem em que eu não tenha pensado em Pedro, meu corpo sente falta dele. O táxi estaciona e meu pai tira nossas malas do porta-malas, eu pego a minha e vou abrir a porta. Vazio.
Meu lado racional fica feliz, porque eu realmente não estou pronta para estar frente a frente com ele agora, não posso perdoa-lo assim tão fácil, o que ocorreu foi doloroso, egoísta e mal esclarecido, ainda estou confusa, mas meu lado emocional sente que ele gosta de mim de verdade.
Me sinto em casa aqui, subo para cima guardar minhas malas e vejo meu quarto do mesmo jeito que deixei, com os livros que deixei para trás na mesma posição.
Esther bate na porta.
"Entra."
"Oi, não posso nem imaginar o que você está passando agora." Ela se aproxima.
Contei tudo à ela, todos os detalhes.
Suspiro.
"Pedro não vai aparecer aqui se você não quiser, ele nem deu sinal de vida depois que você foi, Enrico me disse que ele está na casa da mãe."
"Entendo."
"Vou deixar você em paz." Ela sorri.
"Obrigada, Esther, você é muito importante para mim."
"Você também é muito importante para mim, Sarah."
Sorrimos carinhosamente uma para outra, seu carinho aquece meu coração.
Ela caminha até a porta e ouço novamente sua voz.
"Sarah?"
"Sim?"
"Sei que não muda nada, mas ele está sofrendo tanto quanto você. Ele gosta de você, disso eu não tenho dúvidas."
"Obrigada."
Meu coração dói, porque sei que meu lado emocional estava certo, sei que ele gosta de mim da mesma forma que gosto dele, sei que é recíproco, mas aquele vídeo me aparece na memória constantemente para me lembrar do que houve e me deixar confusa.
Oa dias passam rápido, me dediquei nesses dias à ler livros novos, conheci livrarias novas, uma delas é minha preferida. Pensei nele a cada romance que eu via e lia, mas sei que precisso desse tempo sozinha. Não tenho idéia do que fazer, só sei que ler não vai piorar minha situação.
Conheci cafeterias novas, me recusei à entrar naquela.
Hoje é o quinto dia em que resolvi tentar deixá-lo de lado para cuidar da minha saúde mental, me recompor e organizar minhas idéias. Laura me ligou logo cedo porque queria me mostrar um lugar legal perto da praia.
Fomos tomar um café e caminhar pela orla da praia.
E enquanto sinto a brisa do oceano, e a areia nos meus pés uso todos os meus neurônios para colocar ele em segundo plano na minha mente, tudo me lembra dele. A praia, o mar, livrarias, cafeterias, tudo e todos os detalhes envolvem Pedro.
"Amiga, Yasmin me contou o que houve."
"Então você já sabe?"
"Sei sim, eu e Yasmin não saímos com Rafaela desde então, foi cruel o que ela fez."
"Foi mesmo." Respiro fundo, falar sobre o assunto pela primeira vez em cinco dias é dificil para mim. "Todos já sabem? O pessoal todo? Arthur? Hugo?"
"Ainda não, mas vão acabar descobrindo, Rafaela está achando o máximo que conseguiu afastar você dele."
"Posso imaginar." Tomo meu último gole do delicioso suco de laranja que comprei.
"Mas não adiantou nada, já tiveram mais duas festas desde que você foi e ele não apareceu, Rafaela fez de tudo para chamar a atenção dele e nada adiantou."
"Entendo." Não sei muito o que dizer.
"Conversei muito com o Enrico, porque fiquei realmente preocupada com você, mas ele disse que você estava bem com Esther ao seu lado."
"É, estou melhor mesmo, tentando lidar com isso."
"Amiga, se você quer um conselho, não fique com esse homem limitado de neurônios, tenha consideração pela sua mãe e pelos nove meses que ela te carregou no ventre. Gosto muito de você e sinseramente não acho que ele seja dígno de uma mulher como você."
"Obrigada, Laura, você é muito importante para mim também."
Esse é o grande problema, estou em uma batalha constante entre meu lado racional e o irracional, meu lado racional sabe perfeitamente que mereço alguém que jamais faça esse tipo de coisa comigo, que não fique comigo por ego, por uma competição, mas meu lado irracional me lembra a cada segundo de todos os nossos momentos legais e das sensações que só ele me fez sentir.
Li em um livro uma vez algo que dizia: "Não mergulhe fundo em amores razos." E quando li fez todo o sentido, mas agora que vivencio isso, não faz, pois a questão é que nem sempre temos esse controle. Até que ponto podemos mergulhar? Como sei se o amor é razo? Como sei se estou fundo demais?
São questões que eu, aos meus dezessete anos, não sei responder.
A relação entre mim e meu pai melhora a cada dia, fico muito feliz por conseguir deixar aquela história toda no passado e poder aproveitar o presente, esses dias tem sido legais entre mim, Enrico, meu pai e Esther, rimos até minha barriga doer e contamos os micos que já passamos, foram dias realemente bons depois de alguns difíceis. Enrico esta sóbrio há duas semanas completas, é o que estamos comemorando hoje no jantar.
Esther e eu estamos fazendo panquecas, meu pai e Enrico falam de futebol na mesa.
"Quando conheci seu pai ele só falava de futebol, não parava nunca, e eu odeio."
Rimos.
"Também não sou fã."
Levo uma jarra do suco natural maravilhoso de Esther à mesa.
"Para uma super comemoração." Digo sorrindo.
Todos sorriem.
"Obrigada, Sarah, até que não é tão ruim ter uma irmã."
Rimos.
"Fala sério, uma irmã como eu é o máximo, eu sei."
"Vai sonhando, vai."
A noite em família foi boa e prazerosa assim como todos os outros dias dessa semana, esse detox de Pedro me fez bem. Há muitas situações em que passamos em nossas vidas que são um repleto inferno, nos levam até as camadas mais profundas de angústia e desespero até que você não se reconheça mais. Essa é a questão, lidar com os problemas da melhor forma possível para que eles não te engulam. Não sei muito bem como fazer isso, mas vou por partes, um inferno de cada vez.
Dormi escutando minha playlist de músicas tristes depois de ficar horas olhando para o teto. Acordo impaciente porque algo me incomoda, me incomoda o fato de eu não saber onde ele está, com quem esteve. É como um ralado no joelho, que depois de um tempo para de doer, mas você sabe que está alí, ainda te incomoda. É assim que meu coração está, meu lado racional quer continuar o dia e pensar que está tudo bem, mas meu lado irracional está me lembrando de cinco em cinco minutos dele, me incomodando como uma ferida que não cicatriza. E me dói mais ainda o fato de ele não vir atrás ou de dar explicações, ele não se preocupa comigo como eu me preocupo com ele? Ele sequer pensa em mim?
Tais questionamentos pairam sobre minha mente enquanto eu fico aqui sentada na cama olhando para o teto.
Meu celular apita e torço para que seja uma mensagem dele, mas não é.
É minha mãe deixando o orgulho de lado e me desejando um bom dia, outro assunto que me aperta o coração, não gosto do fato de estar meio brigada com a minha mãe, me dói o coração. Muitas coisas me doem o coração no momento.
Levanto e só faço um coque no cabelo, não estou disposta o suficiente para me arrumar, pretendo passar o dia todo no quarto com meus livros e minhas músicas tristes, é assim que enfrento meus problemas ultimamente. Respondo o bom dia da minha mãe, são dez da manhã e eu não tenho uma notícia sequer dele, isso incomoda todas as células do meu corpo.
Desço as escadas com meu pijama azul marinho, tudo o que eu mais desejo é não sair do meu quarto pelos próximos 10 dias, as vezes é tudo o que um adolescente precisa.
"Bom dia, Sarah." Esther diz animada, ela está sempre animada e bem vestida, se eu tivesse um quarto do seu ânimo eu já me contentaria.
O cheiro de café me invade e me consome, é tudo o que eu preciso para que minha alma volte para o corpo, uma boa dose de café e um pão na chapa.
Enquanto minha alma volta para meu corpo depois do café reparo nas roupas de Esther, ela veste uma camiseta branca e um blazer vermelho, seu Louboutin vermelho chama mais atenção do que qualquer coisa ao redor, agora entendo porque minha mãe inicialmente não foi com a cara dela, mulheres tendem a se sentirem ameaçadas quando veem uma mulher tão bonita, bem vestida e bem decidida em sua frente. O que eu acho uma besteira, eu admiro muito mulhres assim, mas a sociedade desde sempre nos impõe uma rivalidade feminina absurda. É assim que as coisas são, e minha mãe se sente mal por ter sido trocada pela Esther, o que para mim é outra bobagem, ninguém perde o marido para outra pessoa, se meu pai resolveu trocar minha mãe por outra mulher, é porque seu coração já tinha deixado de ser dela faz tempo.
"Eu vou fazer compras, vai querer me acompanhar?" Ela diz tomando um gole de café. Me esqueci completamente que tínhamos combinado de ir comprar a decoração de Natal. Tinha planejado passar o dia escutando Billie Elish, mas agora sair e me distrair me parece uma boa ideia.
"Claro, vou só colocar uma roupa." Sorrio e coloco a caneca na pia. Subo para o meu quarto e pretendo me arrumar, ver Esther tão arrumada me despertou um ânimo que eu já não sentia faz um tempo, é incrível como a energia das pessoas nos influenciam também, era a energia que eu precisava.
Coloco uma calça preta rasgada e dobro a barra, uma blusa cinza com detalhes metálicos me cai bem e no pé o meu vans de sempre. Olho para meu colar em formato de coração e me observo no espelho. Solto meu cabelo e ele está com ondas porque não sequei direito quando lavei, o que dá um toque mais leve e natural. Passo meu gloss, porque uma garota com seu gloss passado, é uma garota pronta para a guerra, e é exatamente assim que eu me sinto agora.
Desço as escadas e Esther está sentada no sofá, mas levanta assim que me vê.
"Uaal, alguém resolveu tirar o pijama." Ela ri e eu concordo.
"Pois é, não só de pijama se vive um adolescente." Rio.
"Bom, vamos às compras." Ela abre a porta e caminhamos em direção à sua Range Rover. Nunca liguei muito para nenhum tipo de compra, nunca precisei me preocupar com o que estava vestindo. Mas depois que começamos a sair, acho que nossa opinião muda um pouco, mesmo que eu não me importe em estar arrumada, estar em uma festa onde todas as meninas estão arrumadas menos eu, se torna um pouco frustrante. Quando se é adolescente, há coisas que nós julgamos tão necessárias e importantes sem nem questionar, vamos à festas chatas e sem graça onde chega um momento que só queremos tirar a maquiagem e deitar em nossa cama quentinha, mas mesmo assim postamos uma foto representando felicidade, é como se fosse uma necessidade de provar para as pessoas que fazemos parte do mundo real. Nos sujeitamos a usar roupas apertadas que nos enchem de marcas e desconforto para que a foto fique linda, e quanto mais curtida tiver, melhor nos sentimos. E qual o propósito de tudo isso? E por que, mesmo tendo consciência de tudo isso, ainda nos sujeitamos a tal situação? Ser adolescente é ter muitas dúvidas, e algumas delas são insolucionáveis.
Entro no carro e sinto um pouco de medo, ela dirige um pouco rápido e não se preocupa muito com as sinalizações. Um cara grita: "louca" quando ela desvia rapidamente de uma moto, e ela contra ataca:
"Você não me viu louca ainda."
E eu rio, seu senso de humor é maravilhoso e eu a admiro mais ainda, minha vó sempre me disse o quão importante é nós admiramos e apoiarmos umas às outras, afinal, com tanto tempo de patriarcado, se nós não nos apoiarmos, os homens é que não vão.
Aperto o sinto e sigo firme no banco. O clima hoje está agradável e o trânsito está grande por estar próximo do Natal, então consigo olhar as paisagens e observar as pessoas na rua, passamos em frente ao calçadão e observo casais fazendo exercícios juntos, casais normais fazendo coisas de casais, não sei se eu e Pedro chegaremos a esse patamar, e isso me dói. Toco o colar que ele me deu e respiro fundo, a paisagem me distrai.
"Se você me permite dar um conselho, homens fazem coisas estúpidas às vezes, não que você tenha que justificar seus erros por isso, mas as vezes vale a pena lutar." Ela me olha um instante mas vira novamente quando um cara buzina para ela.
"Obriagada." Sorrio, não sei bem o que responder porque não sei nem o que pensar, tá tudo tão confuso em minha mente.
"Só não deixe que isso te impeça de respirar, sabe? As vezes ficamos tão condicionadas esperando que as pessoas mudem por nós, mas não dá para ajudar quem não quer ser ajudado." Ela buzina para uma moto.
"Enfim, posso te dar todos os conselhos do mundo mas nenhum deles vai fazer muito sentido se você não olhar a situação como um todo, sabe? Medir os prós e contras, o Pedro é um filho para mim, mas nós mulheres devemos apoiar umas às outras, então só quero o melhor para você." Ela sorri para mim, sinto que é sincero. Fico muito feliz que tenho Esther para conversar sobre esse tipo de coisa, queria muito que um dia minha mãe me desse essa abertura, ela é sempre tão fechada.
Paramos em um estacionamento e eu vejo como as pessoas nos olham diferente, os olhares não são para mim, é claro, mas para Esther, não é qualquer dia que você vê na rua uma mulher tão linda em cima de um Louboutin vermelho.
Passamos em uma dessas lojas que vendem de tudo e compramos uma enorme árvore de Natal com vários enfeites, vai levar no mínimo algumas horas para montar. Compramos uma gravata para o meu pai, ingressos para um jogo de futebol para Enrico e Pedro.
"Sou péssima para presentes, geralmente compro coisas que todo mundo gosta, uma gravata, ingressos para jogo, pulseiras." Ela diz andando pela loja. Estou só seguindo-a como uma criança segue a mãe sem entender nada.
Rimos horrores quando ela tenta experimentar uma calça e não fecha, ela teimou com a funcionária que fecharia, mas foi dez a zero para a calça. Ela me faz experimentar um vestido preto curto e decotado que nunca me imaginei usando, é obvio que não levei, mas no fundo gostei de como ele vestiu em meu corpo.
"Ual, todo mundo deveria ter a oportunidade de te ver vestindo esse vestido." Esther diz me admirando.
"Não é muito a minha cara, e eu não me imagino usando esse vestido nunca." Sei que estou mudando mas vamos com calma.
"Como quiser." Ela sorri.
"O que acha de tomarmos uma água de coco na praia?" Ela pergunta no caminho de volta.
"Mas assim? Com essa roupa?" Estou de tênis e não acho que seja uma boa ideia caminhar de tênis na areia.
"Podemos tirar o sapato e caminhar descalça, não tem nada melhor do que sentir a areia no pé" Ela sorri com um semblante realmente feliz.
"Bom, por mim tudo bem." Respondo com indiferença mas gostei da ideia, se fosse minha mãe, diria que é um absurdo andar por aí descalça.
Compramos uma água de Coco e deixamos os sapatos no carro, me lembro da primeira vez que estive nessa mesma praia com Pedro, parece um momento tão distante com uma Sarah tão diferente, eu já não me sinto como antes.
É bom estar de volta na praia mas não é o mesmo sentimento da primeira vez que estive aqui.
Caminhamos na orla da praia sentindo a brisa do oceano, é um momento tão carinhoso. Não estamos nem aí que nossa roupa não é propícia para praia, Esther faz parecer tudo menos complicado, bem diferente da minha mãe.
"Eu estava caminhando na praia no dia em que conheci seu pai. Tudo bem por você falarmos desse assunto?" Ela me olha com preocupação, mas a essa altura do campeonato está realmente tudo bem, acho que se tocassemos nesse assunto a um mês atrás eu teria me fechado, mas não mais, sinto que eu mudei não só nas atitudes, amadureci emocionalmente também, guardar rancor não vai me levar a lugar nenhum nesse momento.
"Claro" sorrio.
"Eu tinha acabado de passar por momentos complicados em minha vida, depois que o pai de Enrico morreu fiquei tão abalada emocionalmente que coloquei em minha cabeça que precisava arranjar uma figura paterna para ele. Besteira, é claro, mas na época eu não sabia a força que eu tinha." Ela suspira, sinto seu incômodo ao falar desse assunto.
"É por isso que não devemos embarcar em um relacionamento quando estamos emocionalmente frágeis, coisas ruins acontecem, principalmente se seu parceiro for um merda, como foi no meu caso. Ele começou implicando com minhas roupas, depois com meu batom vermelho, sei que sou meio extravagante, mas sempre fui assim, é quem eu sou, e ele me impediu de fazer tantas coisas até que eu me sentisse sufocada." Ela olha para o mar agora.
"Até que um dia eu disse à ele que não queria mais, bem nessa praia, um dia quando estávamos sentados tomando um sol, ele começou uma cena dizendo que eu estava olhando para outro cara, ridículo porque eu era tão cega de tudo e só tinha olhos para ele. Aí resolvi terminar, e se você quer saber foi bem tarde, ele quis dar um tapa em minha cara, e daria, se seu pai não tivesse o acertado com um soco antes." Ela ri e eu não me contenho rindo também. Não imagino meu antigo pai defendendo outras mulheres.
"Mentira" digo rindo, eu realmente não imagino meu pai se posicionando em defesa de outras pessoas.
"É, eu estava tão cega pelo Fábio que nem vi que seu pai estava a um tempo observando nossa discussão, nem eu vi o quanto Fábio era arrogante, mas ele estava ali e me defendeu." Ela me olha agora.
"Depois disso fomos jantar e as coisas foram indo, ele me contou sobre você, sua mãe e do quanto se arrependia, e eu acreditei sabe, ele falava a verdade."
"Entendo, fico feliz que tudo tenha dado certo." Sorrimos uma para outra.
"Entendo que tenham sido tempos difíceis para você e sua mãe, nunca vou passar pano para o que seu pai fez, foi realmente irresponsável e egoísta." Ela me olha com cautela.
"É, foi mesmo, minha mãe desabou, sabe. Mas de qualquer forma, já passou e eu já deixei no passado." Tomo um gole da água de coco.
"Aliás, não me desculpei direito pela forma que minha mãe te tratou, é difícil para ela, sabe." Eu olho em seus olhos.
"Sem problemas, querida, ela tem toda razão em sentir mágoas. Não são só vocês adolescentes que fazem coisas irresponsáveis e sem sentido, acho que a vida toda se faz umas coisas desse tipo, a diferença é que com o tempo temos mais responsabilidade e menos chance de errar."
"É tudo tão confuso."
Rimos muito essa manhã, conversamos sobre todos os assuntos possíveis e rimos muito, principalmente quando brincamos de avaliar os biquínis classificando como "usaria" ou "não usaria", nós temos gostos extremamente diferentes.
Chegamos em casa com muitas sacolas de compras e sinto um cheirinho de lasanha.
"Ual, parece que temos um master Chef aqui." Esther diz enquanto caminha para a cozinha. Meu pai está aparentemente cozinhando algo para nós.
"Estou preparando uma lasanha." Meu pai diz beijando os dedos. Ele está sempre nos fazendo rir.
"Tenho uma reunião depois do almoço e levei meu carro para arrumar, tudo bem você me dar uma carona?" Ele se dirige à Esther.
"Claro."
Almoçamos os três juntos em um clima bem agradável, meu pai contou das reuniões e dos problemas com o trabalho.
Subo para o meu quarto depois do almoço, estou lendo a Triologia de Cinquenta Tons de Cinza, e não há nada que me conforte mais do que um bom livro. Passo um bom tempo entretida no livro e escuto a porta do quarto de Enrico bater, achei que estava sozinha porque quando chegamos das compras nem Enrico e nem Pedro deram as caras. Abro a porta do meu quarto e não vejo ninguém, mas sinto um calafrio, sei quem é no exato momento, só ele provoca tais sensações em mim, meu coração para. Sei que parou porque não sinto nada, nem meu corpo, nem a mente, nem o coração. Nadinha.
Ele está parado em minha frente, corpo e alma. Seus olhares são soturnos e sem vida. Não consigo reagir.
E agora, José? Gostaria que Drummond tivesse me dado mais respostas.
"Sarah."
"Pedro."
Ameaço fechar a porta, não tenho emocional para enfrenta-lo ainda. Mas ele me para.
"Por favor, só um minuto."
Ele me entrega uma pequena caixa.
"Abra, e tente pensar nos momentos bons. Tem sido um inferno sem você."
Ele sai. Joga essa bomba e sai. Me deixando aqui entre o abismo e o frio na barriga.
Fecho a porta, sento em minha cama e abro a caixa, tem um exemplar de Dom Casmurro. Abro e tem vários trechos sublinhados com post its, são os trechos em que lemos um para o outro no dia em que deitei em seu colo e lemos juntos, trechos em que fizemos brincadeiras e trechos em que eu utilizo para chama-lo de junção de Bentinho e Darcy.
"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade, do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastámos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve."
O meu trecho favorito sublinhado com um post it escrito: "Da mesma forma que Bentinho se sente embriagado pelos olhos de Capitu, eu me sinto duas vezes mais pelo seu, se é possível. Não há olhos azuis nesse mundo que supere a beleza e a intensidade de seus olhos castanhos, que me tragam e me puxam como a ressaca do mar."
Meu coração para novamente, se é que ele voltou a bater.
Encontro vários outros trechos e vários outros post its.
Outro trecho:
"Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por minha falta de jeito, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes."
Outro post it:
"No dia em que sequei seu cabelo lembramos dessa cena, e não sou capaz de ler esse livro sem me lembrar da sensação que senti ao tocar seus cabelos, seca-los e cuidar de você. Eu desejo seca-los por todos os séculos dos séculos e tecer duas tranças que envolvam o infinito por um número inominável de vezes, querida Sarah."
Outro trecho:
"Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e... Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas..."
E um post it:
"Tão belo foi o primeiro beijo de Capitu e Bentinho, como foi o nosso. Seus lábios sabor de mel e seus olhos com infinitos castanhos. Eu poderia saboreá-los por uma eternidade sem fim, sei que o termo é redundante, querida Sarah, mas somos envoltos de redundâncias, um infinto sem fim de amor, uma imensidade grande de conexão entre nós, nossas redundâncias nos completam e é assim que é."
Há dezenas de post its e é assim que eu passo a noite, saboreando de sua incrível habilidade com as palavras e seu domínio sobre meus sentimentos.
Acordo assustada, são oito da manhã e não dormir direito, na verdade nem me lembro de ter dormido, a última coisa da qual me lembro é de derramar lágrimas sobre o melhor presente que eu poderia ganhar. Cada palavra escrita tocou meu coração de uma forma diferente, cada frase invadiu meu coração com uma intensidade que eu jamais havia sentido. Me sinto perdida em meio de meus sentimentos.
Alguém bate na porta.
"Entra."
É Enrico.
"Oi, Sarah, você pode falar agora?"
"Claro, senta aí."
"Certo."
Ele se senta na cama, está apreensivo.
"Olha, eu não te disse antes porque não estava pronto para enfrentar isso, sei que fui egoísta, mas estou tentando concertar as coisas."
Ele suspira, como se demandasse muito esforço para dizer o que deseja.
"No início desse ano comecei a me envolver com uns caras que não deveria, comecei a usar drogas como você sabe. Mas aí não queria ter que pedir dinheiro à minha mãe para sustentar uma coisa que não era correta, me sentia culpado, então comecei a vender também."
"Drogas?"
"Sim."
Ai papi.
"Rafaela sempre foi obcecada por Pedro, a vida toda fez de tudo para chamar a atenção dele, desde que éramos crianças. A relação deles nunca foi de casal, mas sempre tiveram uns rolos, só que desde que você chegou ela ficou em segundo plano para ele. Aí ela descobriu o que eu estava fazendo e foi a chantagem perfeita para ela."
"Mas seus pais não sabem do seu problema com drogas?"
"Sabem que eu usei umas duas vezes, não que eu usei desde o começo do ano e que vendi também, além de causar uma decepção enorme pode me prejudicar a entrar na faculdade ano que vem, eu tinha muita coisa em jogo."
"Entendo."
"Mas não ligo para isso agora, não posso deixar que isso vire uma bola de neve e prejudique mais pessoas. O Pedro viveu duas semanas no inferno sem você, e sei que você também ficou mal sem ele. Quando vi vocês dois assim por causa de chantagem feita por minha causa, senti que não dava mais para continuar nisso."
"Ela teve coragem de chantagear Pedro usando você?"
"É a Rafaela, Sarah. Ela é capaz de muito por ele, é um tipo de obsessão eu acho."
Uma raiva cresce dentro de mim, sou capaz de tudo nesse momento. Mas não é essa a minha preocupação no momento, o que me invade o coração é ele.
Ele passou por tudo isso, é uma loucura, não foi correto da parte dele, ele não é isento de culpa, mas não sei o que eu faria em seu lugar, ficar entre o melhor amigo e a mim, é loucura.
"Ele quis ir atrás de você no momento em que você se foi, mas ela disse que se ele fosse, ela contaria para minha mãe e seu pai."
"Onde ele está agora?"
Preciso falar com ele.
"Na casa da mãe, eu tô indo tomar um café agora, te dou carona até lá."
"Certo."
Levanto da cama e pego meu celular.
"Tira esse pijama do corpo se não quer parecer doida." Ele ri.
Rio também.
"Tudo bem, vai. Me espera lá embaixo."
"Penteia o cabelo também." Ele diz saindo do quarto.
A última coisa que pensei nesse momento é na minha aparência.
Coloco uma calça jeans qualquer e uma camiseta.
Entro no carro e meu coração vai sair pela boca, ele é tudo o que me move nesse momento.
Enrico me deixa em frente à uma casa com portões enferrujados, é um bairro bem diferente do que meu pai mora, mas não é tão ruim quanto pensei.
"Boa sorte." Enrico diz saindo com o carro.
"Obrigada." Sorrio.
Toco a campainha, meu estômago vai pular para fora de tanta ansiedade.
Uma mulher aparece na porta.
Não sei o que fazer.
"Oi." Digo.
"Oi. Desculpe, quem é você?"
"Desculpe, sou Sarah, o Pedro está?"
"Ah, claro. Entre."
Ela vem em minha direção e abre o portão, é uma mulher bonita a qual o tempo foi maldoso, suas marcas de vivência são aparentes.
Ela me abraça.
"Sei quem você é." Ela sorri.
Sabe é? Meu coração acelera.
Sigo ela até a sala de estar, ela não parece se importar muito com a casa, mas tudo sai da minha vista quando o vejo, descendo as escadas como o Deus grego que é.
"Vou deixar vocês a sós." Ela encosta calmamente a mão em meu ombro sorrindo.
Parece ser uma mulher muito doce.
Ele vem em minha direção parando em minha frente.
"Sarah, você está pálida." Ele me olha nos olhos com intensidade pela primeira vez em semanas.
"Desculpe, estou nervosa. Enrico me contou da Rafaela e da chantagem."
Trinta quilos saem das minhas costas.
"Senta aqui." Ele me conduz até o sofá.
"Onde está seu padrasto?"
"Não temos que nos preocupar com ele agora."
"Enrico me contou tudo, e eu sinto muito por tudo isso, por que não me disse algo? Poderíamos ter dado um jeito."
"É complicado, Sarah. Ele te contou tudo mesmo?"
"Tudo."
"Eu sinto tanto por isso, tanto mesmo. Foram duas semanas insuportáveis, não dormi uma noite inteira sem você por perto."
"Eu também não dormi."
"Sinto muito mesmo, Sarah."
Seu rosto está próximo do meu, sinto seu hálito de café e seu cheiro doce. Seu rosto encosta no meu e sinto sua face molhada das lágrimas. Coloco minha mão em seu rosto, senti-lo depois de tanto tempo é reconfortante.
Não beijamos, um beijo doce, calmo, saboroso e sentimental. Meu lugar é aqui, ao seu lado.
Sua mãe se aproxima.
"Fiz café, querem?"
"Claro." Respondo.
Me sento na mesa, tomo um café incrível e como um bolo de chocolate maravilhoso.
"Está divino."
Olho para ela que sorri com os olhos, sei agora de quem Pedro herdou seus traços mais bonitos, dela. Seus olhos azuis são inconfundíveis. Ambos profundos e sentimentais.
"Muito obrigada, querida. Adorei te conhecer."
"Foi um prazer para mim também."
Sorrimos.
"Você é tão bonita quanto Pedro me disse. Na verdade é ainda mais pessoalmente."
"Muito obrigada, digo o mesmo de você."
"Fico feliz que ele tenha encontrado você."
Pedro revira os olhos, senti falta disso.
Sorrio e meu coração dói, é uma mãe preocupada com seu filho, independente de seus problemas, ela ainda continua sendo mãe.
Meu telefone toca, é Esther me ligando.
"Atende." Pedro me diz.
"Desculpa gente, só um minuto."
Vou até a sala.
"Oi, Esther."
"Oi, querida. Você está com ele? Está tudo bem?"
"Sim, agora está tudo bem."
"Que bom, querida fico feliz. Já sabemos de tudo."
"Entendo."
"Vamos jantar juntos, eu, seu pai e Enrico para conversarmos sobre tudo isso e achamos que você e Pedro precisam de um tempo para conversarem, então tem lasanha no forno, não voltaremos tão cedo."
"Obrigada, Esther."
"Qualquer problema me liga e eu saio correndo."
Ela ri, seu senso de humor é ótimo em todas as horas.
"Claro, obrigada mesmo."
"Tcahu, querida."
Pedro vem em minha direção.
"Vou pegar minhas coisas e podemos ir."
"Não tenho privacidade nem na casa da minha própria sogra?"
Rimos.
"Você é minha em todos os lugares desse planeta."
Ele sobe.
Sua mãe vem em minha direção vendo que ele se afastou.
"Vocês se entenderam?" Ela tem um semblante preocupado.
"Sim, Vanessa."
"Fico feliz, foram dias difíceis para ele, a última vez que vi ele tão mal foi quando o pai dele morreu. Fiquei realmente preocupada."
"Foram dias realmente difíceis."
"Não sou uma excelente mãe, sei disso, mas o que toda mãe deseja é ver o filho feliz, e vejo como ele está feliz depois de você, obrigada por isso."
Meu coração fica realmente apertado, ela é só uma mãe que passa por problemas na vida, mas ama o filho mais que qualquer coisa no mundo.
"Volte mais vezes, por favor."
"Voltarei sim, é claro."
"Vamos?" Pedro vem em nossa direção pegando em minha mão e beijando minha testa, seus olhos brilham.
"Vamos."
"Tchau queridos, fiquem bem."
Chegamos em casa e não há ninguém, apenas eu, ele e um sentimento grandioso do qual me faz sentir completa, inteira e com borboletas na barriga, estou vivendo os romances que li em minha vida toda, sinto a forma como me entrego à esse sentimento.
Seu semblante feliz preenche meu coração, era tudo o que eu precisava, vejo vida em seus olhos novamente. Eu o abraço com tanta força que meu braço dói, precisava sentir seu coração, sua pele contra a minha. Sorrimos e ele beija minha testa.
Sou capaz de qualquer coisa se Rafaela tentar tirar isso de nós novamente.
"Fico feliz que você esteja de volta." Ele sorri de canto com sua expressão maravilhosa, tinha até me esquecido do quão maravilhoso ele é.
"É bom estar de volta."
Ele coloca meu cabelo atrás da minha orelha, senti saudades disso.
Se meses atrás alguém me dissesse o que eu estaria vivendo, não acreditaria. Bom, continue a nadar, acho que é esse o lema da vida, não é?
Subo para o meu quarto tomar um banho, sem dúvida é tudo o que eu preciso agora.
Entro no chuveiro e permito que ele lave não só as impurezas do corpo, mas também as impurezas da alma, é como se todo o sentimento ruim que se prende em meu coração esvaísse pelo ralo. Lavo meu cabelo e me permito ficar mais tempo do que deveria no chuveiro.
Me enrolo na toalha e abro a porta, ele está sentado na minha cama com um livro na mão. Me assusto um pouco, acho que não vou me acostumar tão cedo com alguém me olhando assim de toalha, embora ele já tenha me visto assim muitas vezes.
"Achei que não ia sair nunca." Ele ergue a sobrancelha e sorri de canto.
"Achei que tivesse parado de mexer nas minhas coisas." Sorrio.
"Bom, parece que temos velhos hábitos."
Ele levanta e caminha em minha direção ficando bem próximo, nunca vou me acostumar com a reação que ele causa em meu corpo, todas as células do meu corpo o desejam, o querem mais perto.
"Legal esse livro." Ele coloca em cima da escrivaninha e se aproxima encostando sua mão de leve na minha, quase como um carinho.
"O conto da Aia, um ótimo livro." Olho em seus olhos o encarando, outra coisa que nunca vou me acostumar é a profundidade de seus olhos, é como olhar o oceano, não sabemos o que está por trás nem o que esperar, não se sabe o que essa profundidade guarda e mesmo assim mergulhamos fundo. E eu estou mergulhando profundamente em Pedro.
Ele sobe a mão pelo meu braço causando uma onda de arrepios em meu corpo, sua outra mão toca meus cabelos molhados descendo até tocar minha boca.
"Sempre tão linda." Nos encaramos firmemente. "Não me canso do seu olhar, eu poderia ficar anos só o observando, seus olhos de mel, é tão doce, eu só consigo sentir carinho vindo de você."
Sorrio, o Pedro tão carinhoso é a minha religião.
Ele enterra a mão em meus cabelos e só consigo saborear seus lábios, seu hálito fresco com leve gosto de café, é como se nossos lábios precisassem um do outro, nosso beijo tem carinho, fervor e saudade, senti muita falta disso.
"Eu tiraria essa toalha agora se não estivesse morrendo de vontade de comer aquela lazanha divina de Esther." Ele sorri e vejo sua boca cortada.
Meu sorriso fecha no exato momento.
"Pedro, com quem você brigou?"
Ele coloca a mão em seu corte. E as extremidades de sua mão estão com feridas novamente.
"Pedro, sério?"
"Não é nada, não precisa se preocupar."
Eu me desvencilho e sento na cama.
"Agora temos segredos novamente, então?" Eu olho para o chão, todo momento de carinho com Pedro acaba em algo não muito bom.
"Não, Sarah. Poxa, não é nada, não dá para confiar em mim?" Ele me olha com olhos irritados.
"Não dá para ter muita confiança quando se existem segredos." Ergo minha sobrancelha demonstrando minha irritação, cruzo os braços.
"Qual é, Pedro, pode contar comigo, não sabe disso?"
"Mas que maldição, Sarah." Ele sai e bate a porta. Mais uma tentativa falha de ter uma conversa civilizada com Pedro. Eu não vou atrás, bancar a babá tem me cansado.
Coloco um conjunto de moletom, está um pouco mais frio hoje, seco meu cabelo e escuto meu celular tocar. Mari e Liz.
"E aí, Gente."
"Você não vai acreditar." Ambas dizem. Sim, acho que eu posso esperar tudo de Mari e Liz.
"Bom, considerando que minha vida virou um furacão ultimamente, eu acredito em qualquer coisa que vocês me contarem." E é verdade, depois que a adolescência chega tudo fica esquisito.
"Mari saiu com o Vinicius." Elas riem.
"Saiu tipo saiu, ou saiu tipo só beijou?" Por essa eu não esperava, mas já temos dezessete anos, já era de se esperar que uma hora acontecesse, está tudo bem, nós é que éramos enroladas demais achando que só ia rolar quando conhecêssemos o amor das nossas vidas, conto de fadas não rola.
"Saiu saiu, tipo, até o fim." Liz me conta, ela ama uma fofoca.
"Uaaaal." Não pergunto como foi porque eu não quis contar todos os detalhes para elas, então não vou fazer essa investigação também. É um momento muito íntimo e pessoal.
"Pois é, minha filha, fomos a uma festa ontem na casa dele e eu perdi a Mari de vista, quando ela apareceu já tinha acontecido." Liz continua.
"Ual, com o Vinicius?" Eu pergunto porque não me lembro dela dizendo que gostava dele, eles sempre ficaram, mas não me lembro dela dizer que tinha sentimentos por ele.
"Mas você gosta dele?" Sento na minha cama porque essa é nova.
"Sarah, não foi só para você que as coisas mudaram sabe, acho que eu só tô deixando as coisas levarem, estamos amadurecendo agora e não dá para ficar esperando um príncipe encantado, né."
"Verdade, rolou comigo e com o Pedro também."
"Você curtiu? Doeu? Como foi?" É claro que essa pergunta vem de Liz. Eu imaginei que elas fossem surtar ao saber desse detalhe, mas não. As coisas estão diferentes, nós estamos amadurecendo, indo à festas, ficando com garotos. Somos adolescentes reais agora, tabus não são mais tabus e as coisas acontecem.
"Aah, foi tranquilo, ele foi bem calmo e não foi tão ruim." Digo com indiferença, mas para mim esse fato fez toda a diferença em minha vida.
Eu sempre li vários romances e fui obcecada por todos eles, desde crepúsculo à cinquenta tons de cinza, romances sempre fizeram meu coração bater mais forte, foi assim que me apaixonei pela leitura. Mas acontece que essa é a vida real, nem todo mundo tem sua primeira vez à luz de velas da forma mais romântica do mundo ou com a pessoa que mais se ama. Nem todo mundo encontra o amor da sua vida no primeiro namoro e nem é todo mundo que quer isso. Eu sempre vivi condicionada à esses romances, sonhando com o dia em que eu iria esbarrar em um menino lindo e carinhoso que seria o amor da minha vida, nos casaríamos, teríamos dois filhos e um cachorro. Mas é a vida real, pessoas passam por relacionamentos abusivos, mentiras, ciúmes excessivos e nem todo relacionamento é perfeito. Nem todo relacionamento perfeito é aquele cujo casal é aparentemente estável, às vezes aquele casal que não parece bem está bem, às vezes aquele que parece ótimo não está bem, tudo depende da perspectiva a qual você olha e da maneira a qual você padroniza os relacionamentos.
Pedro chegou em minha vida como um tsunami e eu o acalmei, fui seu porto seguro, ele não esbarrou em mim em um corredor do colégio e me chamou para ir ao cinema, nada do que eu tinha como relacionamento perfeito está acontecendo comigo nesse momento, e eu não mudaria nada disso, porque me fez sair da minha zona de conforto, da minha bolha, e enxergar o mundo real com problemas e defeitos. Acho que eu nunca aceitei esses comportamentos de adolescentes porque nunca tinha entendido a complexidade de passar pela adolescência, em um dia você precisa que sua mãe diga qual o seu problema para o médico porque nem nisso você é capaz de se expressar, e no outro você está tentando fazer as coisas darem certo com um ser humano que possui valores e visões de mundo muito diferentes de ti. É impossível que isso dê certo de cara como em um amor a primeira vista que vemos nos filmes, pessoas têm defeitos e às vezes esses defeitos se chocam com os seus, às vezes, conviver com pessoas que possuem vivências diferentes das suas te faça enxergar além da sua bolha. Acho que é por isso que é tão difícil ser adolescente, as pessoas dizem que é a melhor fase de nossas vidas porque não temos tantas responsabilidades como os adultos, vamos à festas, iniciamos nossa vida social e temos as experiências mais doidas de nossas vidas. Mas estamos só tentando sobreviver a essa transição, não apenas da fase infantil para a adulta, mas transição de valores, amadurecimento, responsabilidades afetivas e emocionais, comportamentos e morais. A sociedade nos joga essa bomba e temos que desarma-la na adolescência, temos que decidir o que faremos pela vida toda aos dezessete ou dezoito, temos que conciliar os estudos e vida social, porque se não soubermos conciliar os dois, ou somos nerds que não aproveitam a melhor fase da vida, ou somos irresponsáveis que não se dedicam o suficiente aos estudos. Estamos tentando descobrir quem somos, porque somos e onde seremos em meio à tudo isso.
Minha vó sempre me disse que nessa vida não somos obrigados à nada, que não temos que nos obrigar à certas coisas, mas não sei se concordo, a adolescência está aqui para isso, para nos questionarmos e descobrirmos qual tipo de ser humano queremos ser, para falhar miseravelmente e depois levantar a cabeça e seguir em frente com o aprendizado. Cada dia vivido como um adolescente é um novo aprendizado, acho que é por isso que os maiores erros vividos pelas pessoas são justificados como "Eu era apenas um adolescente", porque é de se esperar que você amadureça e erre quantas vezes forem necessárias, desde que no fim você aprenda e levante a cabeça para seguir em frente. Somos obrigados à muitas coisas nessa vida, principalmente na adolescência, somos obrigados a estudar feito loucos para ser 'alguém na vida', somos obrigados a ter uma vida social porque se não tivermos, seremos questionados, somos obrigados a decidir a profissão a qual seguiremos e muitas outras coisas. Não sei muito bem, no auge dos meus dezessete anos, dizer se tais obrigações no fim nos fazem seres humanos melhores ou piores, só sei que estou tentando sobreviver à isso, e espero que eu sobreviva para contar essas histórias aos meus netos.
A briga que Pedro teve me faz ficar impaciente, homens estão o tempo todo agindo como crianças e nós só aceitamos isso porque desde pequenas percebemos que há alguma diferença entre nós e os homens, uma diferença que não é só a parte fisiológica. Crescemos percebendo que a maioria de nós entendemos e assumimos nossa maturidade um pouco mais cedo que os meninos e só aceitamos isso porque é uma verdade já aceita por todos, é é como se houvesse duas certezas na vida: A morte e de que meninas são mais maduras que os meninos. Ouvi essa frase durante toda minha vida.
Mas que eu saiba, não há nada biológico que os impeça de adquirir tal maturidade também, nós aceitamos isso como verdade sem questionar porquê isso acontece e o que faremos para mudar, dessa forma eles ficam em suas próprias zonas de conforto entendendo que está tudo bem ser assim. O problema é que não está, o peso de ser uma mulher madura que assume as responsabilidades chega para todas, temos exceções, é claro, sempre tem exceções. Mas geralmente é assim que as coisas funcionam, eu nunca entendi o porquê de nós mulheres ainda não termos dominado o mundo, já mandaram um homem para lua, não custaria muito mandar o resto.
Abro a porta do quarto e ele está bem na minha frente, parado e encostado na parede.
"Fui idiota, eu sei."
O problema, é que me custaria muito mandar Pedro para lua.
"Que bom que você sabe. Mas não vou te forçar a nada, se não quiser falar, não fale." Dou de ombros e desço as escadas. Sirvo a lasanha que está realmente deliciosa.
"Briguei com Hugo."
Ele dispara. Minha Deusa interior agradece.
"Por quê?"
Ele me encara.
"Tudo bem, sem pressão."
"Encontrei ele ontem depois que saí daqui, ele disse umas merdas."
"O que ele disse que te afetou tanto?"
"Sobre você, por favor, não me peça para repetir, ele é um idiota. Só fique longe dele."
"Tudo bem."
Ligamos a Televisão e colocamos um belo som de Imagine Dragons, o jantar perfeito.
"Estou feliz aqui."
"Eu também, Sarah. Você nem imagina como."
O jantar ao seu lado foi incrível, cantamos uma playlist inteira de Imagine Dragons e de One Direction, eu sei todas as letras, é claro.
"Não acredito que você me fez cantar One Direction." Ele ri.
"Não subestime uma Boy Band."
Rimos muito, são esses momentos que me fazem querê-lo mais e mais.
"Estamos sozinhos." Ele ergue a sobrancelha para mim e não resisto. Tudo nele é irresistível, e parecemos dois adolescentes doidos para que os pais saiam para poder fazer o que não fariam na presença dos mesmos. Talvez é o que a gente seja mesmo, de qualquer forma, quero navegar por seu corpo agora mais do que nunca.
Ele me deita e se posiciona em cima de mim, ouço sua respiração e sinto sua alma, a forma como nos conectamos é surreal.
O toque, a respiração, o sentimento, é tudo o que importa agora, ele investe em mim e eu me sinto completa.
Acordo e demoro a entender onde estou, olho para o lado e o vejo dormindo como um anjo, seus cabelos escuros iluminados sob a luz do sol, e seu corpo sobre o meu alegram minha manhã, foi a primeira noite bem dormida em semanas, me sinto descansada.
"Bom Dia."
"Bom Dia."
Ele beija minha testa.
"Senti tanta falta disso, de dormir ao seu lado."
"Eu também, é a primeira noite em semanas que não tenho pesadelos."
"Meu coração dói em imaginar você sozinha tendo esses pesadelos. Estou aqui agora, tudo bem?"
"Sim." Me aninho em seus braços, estou no paraíso, sei que estou.
"Vou preparar um café, trago uma xícara para você."
"Tudo bem." Sorrio.
Seu celular apita em cima da escrivaninha não só uma, mas quatro vezes. E minha curiosidade me invade, gostaria muito de saber quem está tão desesperado assim para falar com ele. Levanto e dou uma espiada, mas desejo mais do que nunca não ter olhando. É uma mensagem da Rafaela. "Eu sei que você me quer." É o que eu leio, e meu corpo entra em chamas, é como se toda a raiva possível a ser sentida por um ser humano tivesse invadido meu corpo. Estou brava, estou mais que brava, estou puta da vida. Ela não desiste nunca.
Ouço a porta abrir e tenho um sobressalto, não sei se me espanto por ser pega no flagra em uma situação desagradável, a qual estou invadindo sua privacidade, ou se é porque meus olhos encontram seu tanquinho dos Deuses.
"Mas que porr..." Ele diz e eu o interrompo. "Eu é que pergunto."
Ele se aproxima e toma o celular da minha mão.
"Então agora eu não tenho privacidade?" Ele está bravo, muito bravo.
"E por acaso eu tive?" Eu o encaro, sinto sua raiva e ele sente a minha, somos intensos em todos os sentimentos.
"Você está sendo criança."
"Ela já nos separou, isso não é suficiente para você?" Eu o encaro.
"É, é sim." Ele joga o celular em cima da cama.
"Você tem razão, não vou mais deixar que ela nos incomode."
Ganho um abraço reconfortante, seus braços me envolvem com carinho e gostaria que todos os problemas se resolvessem dessa forma.
Um alívio paira sobre mim, mas sei que ela não vai desistir tão fácil.
Mas que inferno.
Deito na cama e ligo para Mari e Liz, ninguém me atende, fico mais brava ainda, logo agora que preciso de alguém. Ligo para Laura e enquanto chama eu me pego olhando para o teto, sempre há algum problema entre nós.
"O que ele fez agora?" É assim que ela me atende.
"Como você sabe?" Suspiro.
"Você me ligando a essa hora da manhã sem nem mandar uma mensagem antes, boa coisa não pode ser." Suspiro novamente.
Encosto a cabeça na cabeceira da cama e olho para cima. Tudo entre nós é intenso, emoções e atitudes, tudo é oito ou oitenta.
Essa é uma das partes mais chatas de ser adolescente, tudo é novo, todas as atitudes, sentimentos e sensações, você nunca sabe o que fazer ou como se sentir, não é como cair da bicicleta, que você sabe que tem que ir para casa fazer um curativo ou simplesmente ignorar o machucado e voltar a brincar, você já sabe o que fazer porque passou por isso muitas vezes na vida. Mas na adolescência é tudo novo e estranho, e nós nunca sabemos ao certo o que devemos fazer.
"O que ele fez agora, Sarah?" Ela está impaciente, Laura é dessas meninas que não gosta de se apegar, curte só ficar e não ter compromissos, o que é ótimo para que ela que evita esse tipo de situação.
"Estava tudo bem até eu ver uma mensagem da Rafaela no celular dele."
Ela fica muda.
"Laura?"
"Ela não desiste mesmo, não é?"
"Não."
Cada dia na adolescência é um inferno, a diferença é que tem graus de infernidade, tem dias que é um inferno que dá pra levar, tem outros que é um repleto inferno, como hoje.
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Inefável
Romance"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...