Olhos de ressaca

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Acordo e olho no celular, são nove da manhã e adormeci rapidamente ontem, sequei os cabelos e vi um filme para ver se conseguia dormir, não saí do quarto nem para jantar, fiquei sem fome depois de tanta coisa ter acontecido, apenas uma cena se repete em minha mente. Olho para minhas mãos e vejo que estão arranhadas de novo, resultado da minha ansiedade que me faz esfregá-las. Levanto da cama, vou para o chuveiro e fico por lá um bom tempo, não há nada melhor que um banho quente para me acalmar, mesmo sendo verão não abro mão dos meus banhos quentes. É o meu lugar sagrado. Coloco um shorts largo, uma camiseta e meu vans de sempre. Mariana vive dizendo que uso roupas que não valorizam meu corpo, por mim está tudo bem, são confortáveis e ninguém repara em mim mesmo.
Desço as escadas e um cheiro de manteiga me invade. Que bom, porque estou morta de fome, costumo comer bem mais quando minha ansiedade me ataca e visto o estado das minhas mãos arranhadas, dá para perceber que minha ansiedade está batendo na porta.
"Que bom que acordou filha, Ester está fazendo torradas, você come?" Meu pai pergunta como se importasse para ele. Mas, como prometi à minha mãe que tentaria, respondo o mais gentil que posso:
"Como sim, obrigada Ester." Começo a comer a torrada com requeijão incrível que ela fez e Enrico desce com Pedro.
"Bom dia, galera" Ele diz e eu apenas olho. Pedro só acena e não olha em minha direção, como se nem tivesse notado minha presença. Fico rígida na hora, não sei o que acontece comigo quando ele está perto, mas me sinto estranha, meio exposta.
Comemos a refeição normalmente e até então não ousei olhar na direção de alguém, até que por um pequeno segundo olho na direção em que Pedro está e ele me pega olhando. DROGA. Que merda, Sarah, tinha que olhar bem agora? Continuo a refeição querendo me esconder de baixo da mesa, mas sei que ele está olhando para mim, seus olhos me atraem como nunca outro me atraiu. Olho de novo em sua direção e ele está olhando. Olhos de ressaca, que me atraem e me puxam da mesma forma que o mar atrai tudo o que pode em seus dias de ressaca. Me sinto anestesiada.
Finalmente Ester acaba com o interminável e constrangedor silêncio me pedindo para ajuda-la com a louça. Faço que sim com a cabeça e me levanto para lavar os pratos e copos. Permaneço pensando em tudo o que houve ontem e se Pedro vai continuar fingindo que nada aconteceu, eu gostaria de saber de algo pelo menos.
Quando subo as escadas para colocar meu celular para carregar, ouço risadas do quarto de Enrico e vejo que a porta está encostada, decido espiar só por uma fração de segundo, não sei de onde saiu tanta curiosidade da minha parte, eu geralmente ignoro garotos e todas as suas merdas. E quando coloco o olho na porta meu irmão está mostrando alguma coisa interessante no celular a ponto dos dois estarem vidrados. Me sinto curiosa espiando pela fresta da porta. Queria muito saber o que é, mas Enrico me vê, fecha o semblante e vem em minha direção. Meu coração quase pula para fora.
"Me desculpe, eu... Eu não quis..." Foi a única coisa que consegui dizer.
No entanto, Pedro diz: "Que merda em, Enrico, tem uma detetive, agora?"
Eles riem e passam por mim. Enrico só diz: "Relaxa, Sarah."
Não me mexo até eles desaparecerem escada a baixo, estou paralisada de vergonha, esse garoto não precisava ser tão grosso comigo, um sentimento de raiva surge, não sei qual é o meu problema, a alguns dias atrás eu só viraria os olhos e ignoraria por completo caras idiotas. Porque é isso que eles são. Idiotas. Estão todo o tempo tentando provar como são adultos ficando bêbados e beijando o máximo de pessoas que conseguem. Idiotas. Mas ele me beijou, foi gentil por alguns momentos, parece que ele realmente vai fingir que nada aconteceu.
Passo o resto da manhã relendo meu exemplar de Anna Karenina, não canso de reler porque é um dos únicos momentos da literatura o qual a mulher faz o que quer sem se importar tanto com o julgamento dos homens e da sociedade idiota. Elas se sentem livres e quebram padrões. Eu amo a literatura e odeio os homens.
Meu pai bate em minha porta me tirando de minha leitura me chamando para o almoço, fiquei tão distraída nos livros e pensando em tudo que nem percebi a hora passando. Desço as escadas e sinto cheiro de carne vindo do quintal, parece que temos um churrasco em família. Ótimo, mais gente velha e chata, era tudo o que eu precisava. Quando meu pai nota minha presença vem até mim com uma mulher muito bem vestida, um tanto exagerada eu diria, e uma menina.
"E você deve ser Sarah, é um prazer conhecê-la." A mulher diz em tom eufórico e eu retribuo com um sorriso. "Essa é Alda, mãe de Laura." Meu pai diz apontando para a mulher e a garota que aparenta ter minha idade.
"Vem, vamos sair de perto desses velhos." Laura diz me puxando para o lado e todos riem. "Desculpe pela minha mãe, ela quer saber de qualquer gente nova que chega no pedaço e costuma causar vergonha mesmo." Laura diz em um tom amigável. Gostei dela.
"Está à fim de comer algo?" Pergunto tentando arranjar um assunto.
"Bora."
Vamos até a mesa para nos servirmos.
"Veio passar as férias por aqui?"
"Sim, vou ficar, meu pai insiste que eu fique, então não tem muito jeito." Digo erguendo as sobrancelhas e jogando os ombros.
"Se quiser fazer alguma coisa para se distrair qualquer hora, conta comigo." Ela sorri.
"Legal, não sou muito boa em socializar, mas parece legal."
"Posso te apresentar a galera se quiser, eles são bem de boa."
"Talvez."
Pego o pegador de salada e uma mão encosta em cima da minha. Olho para conferir com quem estou disputando a salada e não podia ser ninguém diferente, é claro.
"Desculpa, pode pegar primeiro." Pedro me diz de forma calma e receosa. De onde ele surgiu?
Não respondo e nem olho em sua direção, se ele pensa que pode ser grosso comigo e que vou agir como se nada tivesse acontecido, está enganado.
Depois de um longo almoço com a companhia de Laura, acabo descobrindo algumas fofocas de quem nem conheço. Pelo visto meu irmão postiço costuma ser um idiota e andar com caras mais idiotas ainda. Tenho vontade de dizer que já tive o desprazer de conhecer um deles, mas me contenho.
"Vai rolar uma festa hoje, é só para os mais íntimos, você vai curtir."
"Mas não conheço ninguém..."
"Relaxa, Sarah. Você está sendo dramática, o pessoal vai gostar de você. E você é irmã de Enrico Monteiro." E coloco na lista de coisas descobertas que meu irmão postiço deve ser respeitado ou algo do tipo.
Marco com Laura às oito e decido que eu realmente vou à essa tal festa, melhor do que encarar o clima com meu pai forçando a barra.
O almoço em família finalmente acaba, se não fosse ela eu nem sei como teria sobrevivido a um bando de quarentões cantando músicas de suas épocas.
Laura pega meu número e nos despedimos, finalmente posso dizer para minha mãe que fiz amigos, assim ela para de encher o saco. Na verdade tenho uma colega, mas posso dar uma aumentada na história só pra ela não me encher o saco. A galera da minha idade geralmente é previsível, agradeço por ter Mariana e Liz comigo desde sempre, estudamos juntas desde o fundamental, não sei se conseguiria arranjar duas melhores amigas no Ensino Médio. Se essa é a melhor fase da minha vida, gostaria de saber qual é a pior.
Vou para cozinha levar meu prato e copo para lavar e hesito por um momento. Meus olhos encontram alguém vestido inteiro de preto e com All Star de couro, parado, procurando algo na gaveta do armário.
Ele provavelmente ficou mais tempo aqui do que em sua casa, Ester disse que ele tem problemas com sua família, mas com esse temperamento provavelmente vamos ter problemas por aqui também.
Me aproximo e paro, observando.
"Só estou procurando a tesoura, você sabe onde fica?" Ele diz em um tom normal, como se não tivesse sido idiota comigo hoje cedo, ou como se não tivesse rolado algo entre nós. Eu paraliso, porque não entendo sua mudança de humor, poucas horas atrás ele me olhava com desprezo, me ofendendo com suas palavras e agora me olha com um olhar calmo como a maré naqueles dias que quase não tem onda.
"Tenta na segunda gaveta." Eu digo quando saio do meu transe e me lembro de ter guardado depois que ajudei Ester com a louça.
"Valeu, Sarah." Ele agradece, cerra firmemente meus olhos e sai. Mas é novamente como se acontecesse em câmera lenta, meus olhos se fixam aos seus, sinto um incômodo no estômago e fico imóvel. Existe algo entre nós, eu sei que não estou louca.
Acabei de encontrar novamente um Pedro gentil, com olhares calmos e corpo não tão rígido como quando estava estúpido. Ou esse garoto tem muitas versões de si, ou algo a ser desvendado.
Passo a tarde procrastinando. Ligo por vídeo para Liz e Mari, conto da Laura e do tédio que meu verão está sendo até agora, conto da festa e elas piram, exatamente como eu previ.
"Me conta mais desse Gustavo aí." Digo curiosa.
"Ela está gamada nele." Mari diz.
"É da mesma Liz que estamos falando?" Brinco.
"Podem parar vocês duas, eu só curti sair com ele, e nos chamaram para uma festa amanhã também." Liz diz.
"Parece que as coisas estão realmente mudando para nós, estamos até sendo chamadas para festas." Digo rindo.
"Realmente." Elas respondem.
"Se divirtam amanhã na festa e não façam nada que eu não faria." Rimos.
Ainda não contei para elas o que rolou entre mim e Pedro, gostaria de contar tudo pessoalmente.
Troco umas mensagens com Laura e penso no que vou vestir.
Ouço a campainha tocar, alguém subir as escadas, e então bater na minha porta.
"Sarah?" Laura chama abrindo de leve a porta.
"Oi, entra aí. Estou quase pronta." Eu digo decidida de que não vou me arrumar demais, coloquei um vestido que vai até a metade das coxas, nem tão curto e nem tão longo, meu vans de sempre e o cabelo solto mesmo. Reparo em Laura e ela está com um vestido preto colado no corpo, uma sandália e uma maquiagem linda. Por um segundo desejo ser mais vaidosa. "Vou só passar um perfume e podemos ir." Digo já querendo desistir da ideia.
"Olha, não quero ser chata ou nada do tipo, mas você vai parecer uma freira com esse vestido até o joelho." Ela me olha dos pés à cabeça e faz cara de pensativa franzindo a testa.
"Vamos pelo menos passar uma maquiagem se você não estiver querendo ser uma versão da Madre Tereza." Ela diz rindo e tira de sua bolsinha um rímel, blush e pó. Sério, Laura? Madre Tereza?
Então ela que me dê sorte, porque começo a pensar que essa festa foi uma péssima ideia. É o que eu tenho vontade de dizer, mas não digo. Laura é uma versão festeira de Liz, e se ela estivesse aqui adoraria falar mal de minhas roupas com Laura.
Aceito passar uma leve maquiagem que comparada a de Laura nem aparece, e descemos as escadas.
Meu pai está vendo televisão abraçado com Ester e se levanta assim que percebe minha presença.
"Olha filha, se você não quer que sua mãe me mate, acho bom você não beber, não usar nenhum tipo de droga e chegar em casa antes de amanhecer." Ele diz sério e preocupado. Ele realmente não me conhece, caso contrário saberia que se tem uma pessoa improvável de agir como uma adolescente louca por atenção, sou eu.
"É de mim que estamos falando, pai." Eu digo, pego o dinheiro que ele me dá para o Taxi e saio com Laura.
Durante o trajeto Laura confere sua maquiagem umas vinte vezes, eu nem me dou o trabalho de olhar, ninguém presta atenção em mim e não pretendo passar muito tempo nessa festa. Toca uma música legal no rádio e me animo um pouco, não pode ser tão ruim, eu acho.
O carro para em frente uma casa branca e enorme, em um bairro bonito, dá para ouvir a música da esquina e está cheia de gente. Eu não sei qual é o conceito que essa gente têm de amigo próximo, mas pelo jeito é bem diferente do meu.
Caminhamos até a porta e durante o trajeto vejo dois caras vomitando em um canto e um casal se beijando como se não pudessem mais beijar depois disso.
Passamos pela sala onde tem mais gente bebendo até cair e se pegando, até que chegamos á cozinha, não sei de onde Laura tirou esse litro de Vodca, mas coloca sobre uma mesa cheia de bebidas e nos aproxima de um grupo. "E aí galera, essa é a Sarah que falei pra vocês hoje." Ela diz me apresentando para a turma de 4 pessoas que há ali.
Eu definitivamente não me encaixo, as meninas estão todas com roupa com pelo menos a metade do comprimento da minha e todas muito justas, maquiagens fortes e batons fortes.
"Sarah, estes são: Rafaela, Yasmin, Hugo e Artur." Laura diz e aponta para eles me mostrando. É a turma de amigos de Enrico e Pedro. Já os conheço, principalmente Rafaela, não me esqueci de seu rosto.
"E aí, Sarah, aproveitando a festa?" Hugo diz sem esperar resposta. E o resto só acena.
"A irmã do Enrico, não é?" Rafaela diz rindo, não sei identificar se esse riso é de sarcasmo ou não.
"Isso." É o que eu respondo.
"Bonito vestido." Ela diz me olhando de cima à baixo, agora sei que está sendo sarcástica, não faz o tipo dela gostar de um vestido como o meu, tenho noção que ela deve considerar isso brega.
Apenas rio e ergo as sobrancelhas, isso me deixou um tanto sem graça.
Yasmin franze o cenho e olha com desaprovação para ela.
Ainda estou tentando entender o que Enrico quis dizer ontem com "Não vão encher o saco dela."
"Vem Laura, vamos beber alguma coisa." Rafaela diz para Laura e Yasmin as segue.
"Você vai ficar bem, né? Quer beber algo?" Laura me pergunta.
"Não, tudo bem." Sorrio. Era tudo o que eu menos queria, que ela me deixasse sozinha com os lobos.
Só sobrou eu, Hugo e um constrangimento enorme por estar sozinha nesse lugar.
"Passando as férias por aqui?" Hugo pergunta.
"Sim, na casa do meu pai." Tento entrar no assunto.
"Irmã do Enrico, não é?" Ele foi o único que não me olhou de cima à baixo até agora, por isso já ganhou minha simpatia.
"Parece que sim." Rio.
"Você vai gostar daqui, o pessoal é legal também, só são um pouco eufóricos." Ele arregala os olhos e ri.
"É, eu percebi."
"Mas você se acostuma."
"Espero que sim." Abaixo a cabeça.
"Já fez amizades?" Ele me olha nos olhos agora, e percebo que ele é bonitinho.
"Só com Laura."
"Entendo. As meninas são legais também, só se sentem um pouco ameaçadas com gente nova."
"Entendo."
Me lembro da cena em que Rafaela abraçou Pedro, não sai da minha cabeça.
"Ela está com Pedro?" Pergunto não querendo saber a resposta.
"Qual delas?" Ele diz rindo, e essa na verdade não era a resposta que eu esperava.
Depois daquela resposta de Hugo nem precisei dizer mais nada.
"Os dois vão ficar só de papo ou vem curtir?" Artur grita de longe, já vi esse garoto virar uns quatro shots, provavelmente está sentindo os efeitos da bebida.
Não foi tão ruim quanto eu esperava. Coro deixando minhas bochechas mais vermelhas do que já estão por causa do blush que a Laura insistiu que eu passasse. Decidimos ir lá para fora e tomar um ar, essa casa está fedendo á cerveja, vodca e algum tipo de droga, como alguém pode gostar desse tipo de lugar só Deus sabe. Sigo eles em direção à porta dos fundos, mas um garoto esbarra em mim e derruba toda sua bebida em meu vestido. Ótimo, agora vou ficar cheirando sabe-se lá Deus que bebida é essa.
"Subindo a escada, tem um banheiro na segunda porta à direita, se você quiser se limpar, Sarah." Yasmin diz em um tom amigável percebendo minha irritação. Agradeço e me afasto para procurar o banheiro arrependida de ter vindo, se eu tivesse deitada com meu pijama maratonando Gossip Girl, nada disso teria acontecido.
Passo pela multidão de gente e acho que Laura foi minimalista quando disse que eram só os mais íntimos, é impossível que alguém seja íntimo de tanta gente assim.
Abro a porta do banheiro e me arrependo mais ainda de ter vindo, tem uma garota sentada na pia com seu vestido mostrando quase tudo, com as pernas entrelaçadas em um garoto com uma camiseta e calça preta, e um All Star preto. Estão em um momento realmente íntimo, e nesse momento começo a me lembrar dessa roupa e desse corte de cabelo. Pedro. Eles percebem minha presença e ele se vira para fechar a porta, mas percebe que sou eu, ele me olha nos olhos com um olhar desesperado como se precisasse fazer o que está fazendo e fecha a porta.
Ótimo Sarah, perfeito. Agora vou ter que esperar a vontade dos dois de se engolirem passar até que eu possa entrar no banheiro. Não tem um quarto ou coisa assim para eles irem longe de mim? Eu só quero me limpar e pedir o táxi pra ir embora. Essa festa já deu o que tinha que dar. Ele realmente nem ligou para o que aconteceu, já fez isso tantas vezes que um beijo com uma garota esquisita é só mais uma para ele contar vantagem. Sinto uma pontada de vergonha. Em que momento pensei que um beijo realmente significaria algo pra ele?
Fico infinitos minutos esperando e nada, mas que inferno! Não tinha outro lugar para eles se engolirem não? Pego minha bolsinha que deixei no chão porque cansei de segurar e desço as escadas, vou embora assim mesmo e se meu pai perguntar digo que foi algum idiota que derramou toda essa bebida nojenta em mim. Mando um recado pra Laura do meu celular e passo por toda aquela gente despercebida, abro a porta e respiro ar puro. Sem cheiro de bebidas, cigarro ou coisa do tipo, só ar puro. Meus pulmões agradecem e chego à conclusão que ir embora foi a melhor decisão que tomei hoje.
Passo pelo gramado de cabeça baixa para que ninguém me encha o saco e espero pelo táxi que pedi, está frio e só quero minha cama logo, mas sinto uma mão gélida em meu ombro. Me viro e tem um cara alto, loiro e aparentemente bêbado me olhando, ele tem um olhar perverso e nojento.
"Desculpa, eu não te conheço e já estou de saída." Eu digo já em um tom desesperado porque tem um cara bêbado com intenções claramente não muito boas em minha frente e com a festa inteira bêbada ninguém vai ouvir meu socorro.
"Relaxa, gata, vamos só curtir, ok? Fica tranquila."
"Olha, desculpa mesmo mas não estou à fim e já estou indo embora." Eu digo me afastando e rezando para esse maldito táxi chegar logo, nunca desejei tanto pegar um táxi. Mas ele se aproxima de mim pegando em minha cintura dizendo: "Relaxa, você vai gostar, eu garanto."
Eu grito e tento me desvencilhar mas é tarde, eles está com as mãos em minha cintura me trazendo para perto e sinto tanto nojo que quero vomitar, sinto asco, quero sair correndo e fingir que isso nunca aconteceu. Mas ele de repente cambaleia para o lado e percebo que alguém o acertou com um soco.
"Tá maluco, cara?" Ele diz. E ainda acha ruim? Você deveria estar indo pra cadeia, seu nojento. É o que desejo dizer mas não digo porque estou paralisada.
Tem um briga acontecendo em minha frente, Pedro está em cima do cara o enchendo de socos, pelo visto levou alguns também porque está sangrando.
"Encosta um dedo nela de novo e você vai implorar para viver, otário." Pedro está gritando. O que? Como Pedro veio parar aqui?
Finalmente Enrico chega e tira Pedro de cima dele e alguém leva o cara para longe.
"É bom sumir mesmo." Pedro continua gritando.
Estou tentando entender a cena, nos últimos dez minutos vi Pedro em cima de uma garota, fui assediada e ouve uma briga por minha causa. O verão por enquanto está sendo ótimo.
Uma buzina me tira do transe, é o meu táxi, um pouco atrasado, porque se dependesse dele para me salvar eu já estaria sabe se lá Deus onde ou como. Entro no táxi e olho pra Enrico, perguntando se ele não quer aproveitar a carona, e ele arrasta Pedro junto com ele.
Fazemos o trajeto todo em silêncio, não ousei dizer uma palavra porque ainda estou tremendo. Olho para Enrico e ele está com um semblante cansado e preocupado olhando para a mão de Pedro que sangra sem parar. Olho para Pedro e ele olha para mim, encontro seu olhar, mas é um olhar de raiva, não calmos como quando hoje à tarde e nem de ressaca como quando hoje cedo, é um olhar fundo e furioso.
Abaixo a cabeça e penso em quantas personalidades e olhares ainda vou conhecer dele.
O táxi para, descemos, abrimos a porta e graças à Deus meu pai e Ester já estão dormindo porque está tudo apagado. O que é ótimo, porque uma tentativa de estupro em meus primeiros dias aqui não seria uma boa história a ser contada para minha mãe, meu pai teria que me colocar no próximo voo o mais rápido possível.
Subimos as escadas e Enrico diz: " Cara, vê se cuida dessa mão, eu vou arrumar sua cama." Ele parece menos idiota tentando cuidar do amigo.
Pedro assente e o acompanho até o banheiro, é como se tivesse um imã me puxando em sua direção.
"Eu posso te ajudar a cuidar disso se você quiser, é o mínimo que posso fazer depois de você ter me salvado. Eu não sei o que teria acontecido se você não tivesse chegado." Eu digo em tom calmo e agradecido. O acompanho até a pia onde ele se encosta. Pego a caixa de primeiros socorros, toco sua mão e começo a limpar todo aquele sangue.
"Relaxa, você só não está acostumada com esse tipo de festa e com esse tipo de gente." Ele diz calmo e com olhares baixos, é o Pedro calmo que está falando agora. Ele recua um pouco ao sentir o toque de minha mão, como se nunca tivesse sido tocado. Começo a limpar seus ferimentos com algodão.
"Está tão na cara assim que não costumo sair?" Eu digo tentando quebrar o clima tenso.
Ele ri e diz: "Bom, levando em consideração que nem sequer bateu na porta do banheiro antes de abrir, acho que sim. A propósito, foi mau por isso."
"Relaxa, eu não tenho nada a ver com quem você engole ou deixa de engolir." Eu termino de dizer em tom engraçado, mais uma vez tentando quebrar o clima.
"Você não tem nada a ver com isso e mesmo que tivesse, Rafaela é notícia velha" Ele diz deixando claro seu incômodo com meu comentário.
"Hummm" Digo sem graça.
"Ai, porra" ele diz depois que passo o antisséptico.
"Desculpe, eu...Desculpe, já vai passar"
"Porque você se desculpa por tudo?" Ele diz franzino a testa.
"Bom, desculpa." eu rio e balanço a cabeça.
Ele ri e diz: "Na verdade não estou acostumado com as pessoas cuidando de mim assim, com tanto carinho, desculpa por ser grosso, não estou acostumado com isso. Geralmente eu só deixo os ferimentos sararem sozinhos e boa."
"Então quer dizer que você vive brigando é? Porque já é a segunda vez que limpo seu sangue em dois dias." Eu digo balançando a cabeça.
"Pois é, a confusão me encontra."
"E eu não sei o que estava fazendo perto de mim em nenhuma das duas vezes." Eu digo dando de ombros.
"Eu fui atrás de você depois que me viu com Rafaela." Ele me olha e eu paro o que estou fazendo.
"Por que?"
"Sei lá, apenas achei que deveria ir." E é por isso que sei que ele não é um idiota completo, ele tem migalhas de sentimentalismo.
"E na outra vez?" Ergo a sobrancelha enquanto limpo o sangue de seu queixo.
"O que tem?"
"Vai me contar por que brigou?" Eu o encaro dessa vez.
"Não."
"Tudo bem, eu faço os curativos e não sei nem o que estou acobertando." Eu dou de ombros e o provoco, mas no fundo sei que é a verdade, foi uma briga feia pelos seus ferimentos, e boa coisa não pode ser, mas sei também que ele não vai me contar.
"Desculpa, senhora Bennet." Ele diz e ri.
Eu fico entender. Quer dizer, entendo sua referência, é obvio, mas não entendo como um garoto como ele conhece um livro tão clássico, a maioria dos garotos que conheço odeiam esses livros "velhos", é o que eles dizem.
"Está me chamando de reclamona, senhor Darcy? Porque é assim que gostam de chamar a senhora Bennet, de reclamona, não é?" Eu o olho incrédula.
"É exatamente assim que a chamam, e você é a mais reclamona delas."
"Não acredito que estou ouvindo isso." Rio bastante.
"Você vai acordar toda a casa desse jeito." Ele me repreende.
"Desculpe" Digo ainda rindo.
"Mas eu acho que ela era uma baita mulher que fez o melhor que pode para educar suas filhas em uma sociedade tão machista." Digo dando de ombros.
"É a sua cara defender a Senhora Bennet, sabia?" Ele diz rindo e me olhando nos olhos.
"Bom, então acho que não devemos estereotipar mais um ao outro, porque defenderei a Senhora Bennet até a morte." Eu digo rindo, fico surpresa por ele saber do que estou falando, e no fundo amei isso.
"Contanto que você não me chame mais de Darcy, porque eu também defenderei ele até a morte, senhora Sarah." Ele diz e sorri de canto, ainda me olhando nos olhos.
Estou amando essa referência à Orgulho e Preconceito.
"Talvez eu te chame de Bentinho, já que você faz o tipo surtado." Eu digo e sei que assinei minha sentença de morte, é típico dos homens defender um personagem literário que os represente tão bem. Ele é a junção perfeita de Darcy e Bentinho. Nunca vi alguém comparando as duas obras, Orgulho e Preconceito e Dom Casmurro, mas agora que fiz, acho que Pedro, Darcy e Bentinho seriam grandes amigos levando em consideração suas personalidades.
"Acho melhor não entrarmos nessa discussão interminável." Ele diz virando os olhos. Nunca tinha reparado tanto no sorriso de alguém, o dele é tão bonito e profundo, como tudo o que há nele, profundidade.
"Obrigada por cuidar da minha mão. E desculpa pela grosseria quando entrou no quarto do Enrico, nem sempre é a minha intenção ser grosso."
"Acontece"
"E obrigado pelo outro dia também, não te agradeci direito por aquilo."
Apenas sorrio, sei que ele não está à fim de falar sobre o beijo, então não vou forçar a barra, provavelmente há coisas das quais não sei. A única coisa que sei é que Pedro não está acostumado a receber carinho, e estou aqui para ele. Não ligo que ele me ache boba, só quero estar aqui para ele.
"E eu também não tenho muitos motivos para ser legal com vocês homens, mas cá estou eu." Digo dando de ombros.
"Depois de hoje não tem mesmo, você não deveria andar por aí sozinha assim." Ele me encara. "E se eu não estivesse lá?" Ele pressiona o balcão da pia.
"E, eu sei." Fiquei realmente chateada com tudo isso.
Levanto a cabeça tirando minha atenção de sua mão e dou de cara com seus olhos fixos nos meus, são olhares de incerteza, dúvida e me cerram fortemente. Estamos tão próximos que sinto sua respiração calma, como ele consegue ser tão calmo perto de mim e eu não? É como no outro dia quando a mesma coisa aconteceu, é tão intenso que parece irreal.
Meu coração está quase saindo pela boca quando ficamos cada vez mais próximos e Enrico abre a porta.
Me afasto rapidamente me recuperando e digo desesperada: "Bom, acho que meu trabalho já está feito."
Saio do banheiro sem nem olhar para trás, sinto um arrepio na espinha de vergonha e constrangimento, sei que Enrico não é bobo.
Chego em meu quarto, coloco um pijama e me deito desejando esquecer o desastre dessa noite, eu já não tinha muita vontade de ir em festas e depois dessa, prefiro morrer de tédio em casa.
Adormeço pensando nos olhos de ressaca de Pedro, eles me atraem mesmo à metros de distância. Será que ele sabe que assim como Machado de Assis descreve firmemente os olhos de Capitu, eu também poderia ficar horas descrevendo os seus?

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