Ouço um choro, minha mãe está chorando no canto do quarto, tento me levantar da cama mas não consigo, não posso, ela chora sem parar, um choro angustiante, duro de ouvir, quero ajudá-la, mas não posso. E eu acordo.
Olho no celular e são sete da manhã, uma semana se passou e eu não dormi uma noite completa e bem dormida.
Uma semana. Uma semana sem Pedro. Uma semana enfrentando o monstro que ele me deixou.
No primeiro dia eu e minha mãe chegamos em casa e eu não fui capaz de reconhecer mais esta casa como meu lar, foi tudo estranho, frio e dolorido. No segundo dia não fui capaz de sair da minha cama, reassisti o mesmo vídeo umas cinquenta vezes e meu coração doeu mais cem. Nada nesta casa me fez sentir acolhida, e minha mãe continuou fria. No terceiro dia não abri nem a janela do quarto.
No quarto dia em diante foram os piores. Minha avó sofreu um infarto no quarto dia, o que me tirou de meu quarto e me fez ir ao hospital com minha mãe, trocamos poucas palavras desde que cheguei. No hospital ela já estava muito debilitada, já nos preparamos para a despedida e eu ouvi dela suas últimas palavras e um conselho muito sábio.
"As pessoas sempre tiveram medo de mulheres que voam, sejam elas livres, sejam elas bruxas, sejam elas normais. Não deixe que o medo das pessoas te impeça de voar."
Era da minha mãe que ela estava falando, minha vó sempre teve os melhores conselhos à serem ditos, e em seus último momento ao meu lado não foi diferente.
No sétimo dia tanta coisa dói que ao mesmo tempo não dói, é difícil descrever, acho que quando seu emocional percebe que há tantas dores emocionais à serem sentidas, ficamos inertes, anestesiados, não sentimos nada. Só permitimos que a correnteza nos leve e seguimos até chegarmos a algum destino.
Foram sete dias estranhos, nunca me senti dessa forma, em um mês senti tantas coisas diferentes e vivenciei tantas experiências diferentes, e todas me lembram ele.
Se alguém me pedisse para descrever esses sete dias em uma imagem eu descreveria o quadro "O grito."
Me lembro exatamente da primeira vez que vi a obra de Edvard Munch em uma exposição na escola, expressa uma sensação de angústia, desespero, solidão e confusão, tudo ao mesmo tempo. É assim que me sinto agora, angustiada e perdida. Mais do que nunca.
Sentada na cama em que dormi por longos anos da minha vida que parecem ser tão distantes de quem sou hoje, ligo para Mari e Liz, não falo com elas já fazem dias, e não tem ninguém nesse mundo que me entenda melhor do que minhas melhores amigas, passamos um bom tempo falando sobre Pedro, mas não conto para elas do nosso momento, não resolve meu problema e só vai me doer mais. Falamos sobre quando éramos pequenas e minha vó fazia bolinho de chuva para nós assistirmos filme, sobre como ela sempre foi muito amorosa e tinha os melhores conselhos para dar sem julgamentos, bem diferente da minha mãe. Se ela estivesse aqui agora eu com certeza pediria um conselho para ela sobre minha vida.
Coloco minha playlist e a primeira música a tocar é Elephant Gun, e como muitas coisas em minha vida, só há uma lembrança que passe por minha mente. Ele.
É estranho como a adolescência é uma constante mudança e confusão de sentimentos, não sabemos lidar com nada e tudo é tão, tão difícil, vivi dezesseis anos da minha vida extremamente bem organizada e planejada sem Pedro, mas depois que o conheci tudo ficou diferente, depois que senti o que é o amor, o que é me sentir completa, tudo mudou, eu mudei, e em sete dias sem sua presença a tristeza tomou parte do meu corpo, é extremamente angustiante a forma como ele me afeta em todos os sentidos, tudo envolve ele, meu corpo responde a ele. É um sentimento tão intenso e avassalador, como pode um pequeno coração que habita em um corpo de um metro e sessenta sentir tamanha intensidade, tamanha grandeza e profundidade.
A imagem de Pedro bêbado naquele vídeo não me sai da mente. O que ele pensava? Ele ao menos sabia desse vídeo? Eles conversaram sobre esse vídeo? Ele sabia e não quis me contar?
Essa é a questão, a insegurança, a desconfiança, a dúvida. O medo de que ele tenha ficado comigo apenas para que Hugo não chegasse primeiro, para alimentar o próprio ego. Se talvez eu soubesse da existência desse vídeo, ou se talvez de alguma maneira eu me sentisse mais segura de que ele ficou comigo não para chegar primeiro a uma disputa, mas porque queria de verdade. Acho que no geral, esse é o maior problema da grande maioria dos relacionamentos, a falta de comunicação, se ambas as partes souberem exatamente o que está acontecendo, não há o que temer, não há o que arrepie a espinha, não há o que cause maus entendidos e separações. Uma simples conversa muda tudo.
Acabo pegando no sono, foi um dia longo e cansativo, mas acordo assustada e com a respiração acelerada, acho que tive um pesadelo de novo. Sento na cama e encosto minha cabeça na cabeceira, se tivesse um lugar o qual eu pudesse sumir por um tempo sem ninguém me encontrar eu com certeza iria.
Levanto e vou em direção ao banheiro, já estava me acostumando com meu próprio banheiro na casa do meu pai.
Lavo meu rosto e me olho no espelho, não reconheço mais essa Sarah que vejo, não sei mais o que ela está ou não disposta a fazer, não sei mais do seu futuro, mas eu não ligo, prefiro viver uma vida de incertezas do que passar a vida toda planejando meus passos sendo alienada a esse estereótipo de vida perfeita que as pessoas têm. A vida não é um alecrim dourado todos os dias, o que seria das nossas batalhas sem uns tropeços no caminho, o que seria das Grandes Navegações se não tivessem desviado a rota.
Já é dia de novo, tudo parece um ciclo, noite, dia, noite, dia, noite, dia, onde eu apenas existo.
Vou até a cozinha e sinto cheiro de hambúrguer, se tem uma coisa que ninguém faz melhor que minha mãe é seu lanche com hambúrguer artesanal.
"Finalmente, se demorasse mais uns minutos eu ia te chamar." Ela diz.
Apenas sorrio de canto como uma tentativa de concordar sem ter que responder.
"O Guilherme ligou, desejou forças à você e eu disse que ele poderia nos visitar amanhã depois do enterro." Já estava demorando para minha mãe tentar me empurrar seu estereótipo de namorado perfeito, ela tenta forçar a barra entre mim e Guilherme desde sempre. Eu até cogitei uma possibilidade antes de ir para o Rio, mas agora é impossível, meu coração está preenchido até o última célula por Pedro. Me sinto mal só de pensar em algo entre mim e Guilherme, ele é uma boa pessoa, mas sou eu que cansei dessa vida perfeita. Ele é gentil e legal, não é o problema, é que não rola mesmo.
"Da um tempo, mãe." Reviro os olhos.
"Eu não sei qual é o problema, ele é gentil, vem de família boa e seria um namorado perfeito para você." Essa é a parte que tinha me esquecido, Guilherme é rico e minha mãe ama essa característica dele.
"O problema é que eu não gosto dele dessa forma, mãe. Não rola." Explico pela milésima vez, mas agora com mais certeza que nunca.
Me sento no balcão da cozinha e mordo meu sanduíche.
"E quem faz seu tipo? Aquele zé ninguém que mentiu pra você? Se são esses tipos de garotos que fazem o seu tipo pode esquecer, não vou deixar você cometer esse erro." Ela joga na minha cara mais uma vez sua tentativa de moldar minha vida, já ouvi esse discurso mil vezes e não vou mais ouvi-lo.
"Da mesma forma que você cometeu esse erro?"
"Não sei onde você quer chegar com isso mas não vai conseguir."
"Não quero chegar a lugar nenhum, são só os fatos, você não é capaz de lidar com as escolhas que fez na vida e agora não me deixa viver a minha."
"Sarah eu realmente não estou entendendo."
"Agora você não entende? Dezesseis anos escolhendo até a cor dos meus sapatos para que eu não escolhesse errado e agora você não entende?"
"Eu só quis te proteger, sua ingrata."
"Você quis me controlar a vida toda, você me controlou e ainda tenta me controlar. Está me sufocando, mãe."
Eu choro agora, as lágrimas escorrem pelo meu rosto e nem sinto, coloco tudo o que preciso para fora.
"Sufocando? Passei a vida tentando te manter longe de decisões que te trouxesse arrependimento e você está se sentindo sufocada?" Ela ri, e grita, ri e grita.
"Você não me deixa viver, mãe. Eu não escolhi uma roupa de todas que estão no meu armário nesse momento, não escolhi a cor do laço que prendo meu cabelo, não escolhi o meu celular e nem a cor da minha roupa. Você faz escolhas por mim, você acha e faz, você gosta e faz, você aprova e faz, você acha feio e não me deixa usar, acha inadequado e não me deixa fazer, é sempre você, nunca eu!"
Coloco para fora tudo o que um dia já esteve preso aqui dentro, tudo o que tive vontade de falar e me faltou coragem.
Ela me encara agora, inexpressiva, não sei descrever seu olhar, é de espanto, incerteza e dor.
"Só preciso que me deixe viver, mãe. Preciso fazer minhas próprias escolhas, eu preciso viver a minha vida."
Meu coração se alivia, não sei se ela compreendeu, não sei se ela está irritada, ela não diz nada, nenhuma palavra, me deixando no escuro.
Coloco meu sanduíche no prato e levanto do balcão. Ela ignorou por todos esses dias o que eu passei, trocamos apenas algumas palavras, me senti sozinha, prestes a cair do abismo.
Não tenho ideia de como aguentei conviver com isso durante dezesseis anos sem ficar louca. Eu estava tão alienada ao seu pensamento de vida perfeita que nem sequer percebi o quão ridículo isso é.
Subo para meu quarto e me deito, passando a mão pelo peito sinto o colar que ganhei de Pedro, meu corpo deseja tanto seu toque, seu abraço, é como se eu não pudesse mais ficar longe dele. Mas o que ele fez foi cruel, não sei se o culpo ou não, não sei muita coisa no momento. O que eu fiz para merecer isso?
Pego meu velho exemplar de Dom Casmurro e me lembro das inúmeras vezes que discutimos sobre o adultério de Capitu, e eu poderia ouvi-lo falar por horas sobre como Capitu era sim adúltera sem nem me importar, desde que eu pudesse ouvir sua voz.
Entro em minhas redes sociais só para passar o tempo, tenho uma relação de amor e ódio com o Instagram e o Twitter, as pessoas passam o tempo todo postando suas vidas perfeitas e sua hipocrisia, ninguém gosta tanto assim de fazer academia quanto dizem gostar em seus posts, e ninguém acorda tão arrumado como nas fotos postadas de "bom dia." As redes sociais mostram a vida perfeita que todos gostariam de ter, mas por trás das câmeras existem dias ruins, problemas com a família, namorado ou com si mesmo.
Olho o Instagram de Pedro e ele continua sem nenhuma foto recém postada, sua última foto foi de um livro e uma xícara de café no nosso lugar preferido. Ele não tem nenhum twitte postado, então bloqueio meu celular e me encolho em meus cobertores, está tudo tão sem sentido e dolorido, se é assim que passamos pela adolescência eu não vejo a hora que acabe. Adormeço pensando nele, em como não entendo tudo o que está acontecendo, me entreguei à ele de corpo e alma, confiei nele meus medos e receios. O sentimento de traição dói. Dói saber que eu passaria por todas aquelas coisas novamente só para sentir seu toque, mas não sei se ele mudaria algo por mim, não sei mais nada, não sei nem se o conheço de verdade, se tudo o que ele me disse foi verdade. Ou foi tudo uma completa mentira? A dúvida é o pior dos sentimentos que se pode sentir em um relacionamento.
Acordo com a voz estridente da minha mãe me chamando, parece que estou tendo um pesadelo daqueles que nunca acabam, mas é a minha vida, é a vida real. Pedro me magoou, depois minha vó morreu, tudo isso em longos e intermináveis dias.
As pessoas subestimam a adolescência porque depois que passam por ela os problemas se tornam maiores perto dos que já tiveram, mas é um saco não saber o que fazer ou como agir.
Levanto da cama e coloco meu chinelo, vou ao banheiro tomar um banho em uma tentativa de esfriar a cabeça, acabei de acordar mas é como se tivesse ficado a noite toda em claro, minha cabeça vai explodir uma hora dessas. Lavo meu cabelo e a cada vez que passo a mão por eles lembro dele fazendo carinho em mim, tudo me lembra ele, todos os pequenos detalhes, até os mais fúteis me lembram dele. Ele é um amontoado de lembranças em minha mente e meu coração quer saltar e correr em sua direção, é como se houvesse uma atração magnética, por mais que eu queira estar longe, uma parte de mim sempre quer estar perto, e isso dói.
Saio do banho e vou até meu quarto, o enterro é daqui duas horas e eu sinceramente não estou nem um pouco à fim, eu sei que não é o que minha vó gostaria se tivesse a oportunidade de escolher, metade dessas pessoas que vão nem faziam parte de sua vida, nem sequer perguntavam por ela quando estava viva. As pessoas são assim, os velórios são mais lotados do que um quarto de hospital quando se está doente, as pessoas não estão realmente preocupadas, mas depois que se morre a culpa fala mais alto, eu acho.
Coloco um vestido preto básico que vai até o joelho e uma sapatilha preta de ponta fina. Minha mãe deixou em cima da cômoda para que eu colocasse.
E parece que agora tudo em relação à minha mãe me faz mais sentido, eu nunca entendi porque ela sempre foi tão preocupada com o que eu visto ou como pareço, mas agora que vivi fora e conheci outra realidade, é como se a antiga Sarah tivesse alienada a essa vida, e ela realmente estava por não perceber nada disso. Mas a atual Sarah enxerga que ela só quer que eu me vista bem para causar "boas impressões", ela quer que eu fique com o Guilherme porque ele vem de boa família, e todas as outras coisas que ela faz em função da vida perfeita que ela planeja para mim. Precisou que eu saísse dessa realidade e enxergasse as coisas por outro ângulo para perceber tais coisas. É assim em muitas situações em nossas vidas, as vezes ficamos cegos à tais situações e precisamos enxergar as coisas por outros ângulos para ter noção do que passamos, para conseguir sair disso. Agora eu tenho noção, e também sei que não quero que ela imponha mais nada sobre minha vida, eu sou capaz de moldar minha própria vida.
"Pronta?" Ela diz me olhando de cima a baixo conferindo se estou arrumada o suficiente.
"Aham."
Vejo a boca do padre abrir e fechar mas não presto atenção em uma palavra que ele fala, sempre achei curiosa a forma com que as pessoas lidam com a morte, minha vó nunca foi religiosa e agora estão fazendo uma missa em seu nome, nunca nem falou com metade dessas pessoas aqui presente e muito menos eles se importaram com ela. Uns fazem fofoca, outros fingem consolar minha mãe, e assim mantemos essa situação esquisita e dolorosa, minha vó sempre odiou pessoas falsas, e se estivesse aqui agora, estaria fazendo cara feira para todo mundo.
A única coisa em que presto atenção é em minha vó, com o semblante pálido e em paz, não tenho muito bem certeza de que nesse momento ela está em paz, mas acredito que é o nosso coração que determina nosso destino, e ela sempre teve um coração incrível.
No momento em que colocam o caixão no túmulo é que começo a ter noção de que nunca mais vou ver minha vó, nem ouvir seus conselhos, provar da sua comida ou deitar em seu colo, choro em silêncio, sei que ela está ao meu lado agora, sinto seu amor e isso me conforta.
Quando tudo termina olho para minha mãe e ela está falando sobre seu vestido para suas amigas, e eu sinto repulsa, é a mãe dela que morreu e tudo o que importa para ela é manter as boas aparências, incrível.
Meu pai e Esther estão aqui, por um momento meus olhos procuram por ele, mas preciso me lembrar constantemente que não posso mais querê-lo.
Fico feliz por estarem aqui, vou até eles e Esther me abraça confortavelmente, me sinto amada nesse momento, sua gentileza é sempre impressionante. Ela é carinhosa nos mínimos detalhes.
O enterro da minha vó me fez pensar muito sobre a vida que eu quero viver, minha avó foi mãe solteira porque não permitiu que meu avô vivesse controlando sua vida, ela sempre disse que é melhor viver só, do que mal acompanhada. Viveu tudo o que teve vontade e não se privou de nada por medo do que os outros iriam pensar. Não quero viver uma vida de aparências e nem uma vida moldada por alguém, é a minha vida e eu preciso vivê-la, errar e aprender com meus próprios erros.
"Sinto muito pela sua perda, Sarah." Esther me olha com compaixão e carinho. Sinto pena por ela sofrer com Enrico dando tantos problemas, espero que ele reconheça a mãe incrível que tem e lhe dê um pouco de paz no coração.
Eu assinto e sorrio de canto, a única coisa que quero é me isolar em meu quarto e não ver mais ninguém pelo resto do dia.
Sinto uma mão gélida em meu ombro. Sei quem é, senti essa mesma toda a minha vida. "Vamos tomar um café em casa, vocês podem vir se quiserem." Minha mãe se dirige ao meu pai e sua esposa.
Me despeço uma última vez da minha vó e embarco no carro com minha mãe, ela ignorou completamente nossa conversa de ontem, não falou uma palavra sobre, sou obrigada a ouvi-la falar de como ela se esforça para se manter sem rugas. Sinto muito em te dizer, mãe, mas as rugas são inevitáveis assim como as quedas da vida, todos temos problemas e defeitos, e não aceitar isso é um grande problema.
Chegamos em casa e tem um bando de mulheres chegando os quarenta falando sobre rugas e celulite, nada mais chato.
"Filha, me ajuda com os biscoitos."
Nem me dou ao trabalho de responder e vou ajudar, não tenho forças para uma discussão, sobretudo hoje. Sento no sofá da sala e respiro fundo, ainda tenho umas horas de tortura ao lado da minha mãe. Está tudo tão difícil.
Escuto a campainha tocar e vou atender a porta, é Guilherme com um buquê de flores, são rosas vermelhas.
Olho para cima, seja quem for que esteja lá, espero que me ajude, não sei mais para quem apelar a essa altura do campeonato.
"Oi, eu..." Ele não sabe nem o que dizer e minha mãe vai a seu encontro, nesse momento sei que isso é obra dela. Coitado, é tão manipulado pela minha mãe que tenho certeza que nem as flores foi ele quem escolheu.
"Obrigada, Guilherme, mas acho que chegou um pouco atrasado, já colocamos as flores no túmulo." Ele fica pálido e mudo, coitado.
"É brinca..." Mas nem isso consigo dizer porque minha mãe não perde tempo.
"Oi, querido, estávamos esperando por você." Ela o abraça e sorri de orelha a orelha.
Na verdade não estávamos não.
Minha mãe me fuzila com o olhar e eu volto a sentar no sofá, o dia hoje vai ser longo.
Sinto a poltrona se afundar do meu lado e Guilherme me olhando, ele não cansa, coitado. Fico imaginando por qual motivo as pessoas se permitem passar por certas coisas, e o motivo de Guilherme escutar as bobagens que minha mãe diz eu nunca vou entender.
"Sinto muito por sua perda, Sarah." Ele tenta me confortar, pelo menos ele é fofo e jamais me magoaria como Pedro. Mas essa é a questão, ele não é Pedro.
"Muito obrigada, Gui. Foi muito gentil da sua parte trazer flores." Eu digo porque não é o momento de ser grossa, ele não tem culpa de eu ter uma mãe doida.
"Que bom que você gostou, sua mãe disse que gostaria." Ele sorri.
"Claro que disse." Rio, chega a ser irônica a forma que minha mãe acha que pode moldar minha vida.
Ficamos em um silêncio ensurdecedor, tem tanto barulho ao redor e ao mesmo tempo estou tão anestesiada a tudo, que chega a ser contraditório, tudo em minha vida na atual conjuntura é contraditório.
"Sabe, Sarah....Eu..." Ele se aproxima e coloca suas mãos sobre as minhas. Ai Meu Deus, seja lá qual for a atitude que ele vá tomar, espero de coração que ele não tome. Minha mãe está bem do nosso lado agora sorrindo de orelha a orelha, ela olha para ele e o incentiva. Quando eu acho que não dá para ficar pior, fica péssimo.
"Sarah, eu..." Ele vai dizendo e minha mãe pigarreia.
"Você aceita ser minha namorada?"
Deus, seja lá qual forem os planos que você tenha para minha vida, cancele. Pode vir me buscar agora.
Estou paralisada, sempre imaginei o dia em que eu seria pedida em namoro, se seria de uma forma fofa e romântica, qual seria a minha reação, pensei em várias coisas a esse respeito, mas nunca pensei em como rejeitar um pedido de namoro, não dá pra fazer isso sendo gentil, nunca é legal ser dispensado.
Todos estão olhando para nós agora. Minha vida é um eterno eita atrás de eita.
Pigarreio.
"Pe..." Ai Deus, quase chamo o garoto de Pedro para piorar a situação.
"Gui...Olha, podemos conversar um instante?" É a única maneira que encontro de recusar um pedido de namoro gentilmente sem ser na frente de todo mundo. Nem olho para minha mãe, mas sei que ela está vermelha de raiva nesse momento, o momento mais esperado de sua vida chegou e estou prestes a acabar com isso.
Caminhamos até o quintal e percebo seu nervosismo, ele está suando mais que eu quando corro. Meu coração dói em fazê-lo passar por isso, mas pior seria se eu aceitasse para satisfazer um desejo que não é meu.
"Pedro, olha...Eu não sinto por você o mesmo que você sente por mim, entende? Não é você o problema, sou eu." E eu começo com o discurso mais clichê do mundo, mas nem sempre os clichês são falsos, acho que essa frase de tornou clichê pelo simples fato de que as pessoas realmente não estão preparadas para certas coisas no momento, às vezes até tomam tais decisões por impulso, mas esse erro eu não vou cometer, não com o Guilherme, ele não merece isso, merece alguém que o ame de verdade. E eu nunca serei essa pessoa.
"Eu entendo." É só o que ele diz.
Ouço o salto da minha mãe batendo no chão e sinto raiva, Guilherme jamais teria coragem de fazer isso se não fosse incentivado pela minha mãe, tenho certeza que ela faz parte disso.
"Filha, o que você está fazendo?" Ela ergue a sobrancelha como se estivesse na razão, ela sempre se sente na razão.
"Estou consertando seus erros, mãe. Como você tem coragem de expor ele a esse tipo de situação? Você não tem um pingo de noção." Falo mais alto do que devia ao julgar pela sua expressão de surpresa.
"Eu não tenho noção? Você sai de férias com seu paizinho que agora está se passando de pai do ano e quando volta eu fico sabendo que se envolveu com um garoto qualquer e ainda está me respondendo dessa forma." Ela está gritando agora, raramente a vi desse jeito.
"Eu não vou permitir que você jogue fora anos de esforço dizendo que quer viver sua própria vida e fazer suas escolhas, vivi em sua função, para que você fosse uma menina educada e tivesse um bom futuro." Ela só pode estar de brincadeira.
"Você me obrigou a passar o verão com meu pai, você! E sabe de uma coisa, mãe? Meu pai pelo menos admitiu seus erros e pediu perdão pelo que ele fez, e você fica alienada à essa vida perfeita que não passa de uma fachada." Eu grito e parece que trinta quilos saem de mim, eu precisava ter dito.
As pessoas estão todas olhando, estamos bem na frente da janela da cozinha e provavelmente até quem estava passando do outro lado da rua ouviu nossa discussão.
Ela percebe o escândalo que fizemos e o quanto de fofoca isso pode gerar no bairro e se recompõe. Coloca seu sorriso de volta e vai para a cozinha. "Quem quer mais biscoitos?" Ela diz na tentativa de abafar o caso. Essa mulher só pode estar de brincadeira.
Não demora vinte minutos e todos já foram embora, depois do escândalo vão ter fofoca até a semana que vem, e eu não estou nem aí. Pedi desculpas ao Guilherme e ele se foi, espero que eu não tenha causado nenhum trauma à ele. Agora só sobram eu, minha mãe, meu pai e Esther.
Assim que minha mãe fecha a porta seu sorriso some e ela volta a ser a mulher imperfeita que tanto se esforça para esconder.
"Você pensa que é quem para arranjar um escândalo desses? Guilherme é perfeito pra você, com sorte amanhã nós podemos conversar e resolver esse mal entendido." Ela realmente não tem noção.
"Você não entende, não é? Eu não quero viver a vida que você molda para mim, o Guilherme é perfeito para a vida que você planeja para mim, não a que eu quero viver."
Meu pai e Esther estão assistindo do sofá.
"Você não sabe o que está falando, amanhã vamos pessoalmente à casa do Guilherme e você vai dizer que só teve um dia ruim."
"Elisa, você não acha que está exagerando um pouco?" Meu pai se intromete.
"Você não ouse me dizer como educar minha filha, fiz isso sozinha a vida toda e agora não vai ser diferente." Ela diz e olha para mim. "Você vai agora para o seu quarto ligar para ele e se desculpar." Sua loucura não tem fim.
"Não vou não." Tomo coragem para contrariar suas decisões, não vou aceitar viver um teatro como ela.
"Você o que?" Ela ri.
"Você precisa me deixar viver a minha vida, mãe. Eu sinto muito que você não tenha sido feliz com a sua, mas essa é a minha vida e você precisa me deixar vivê-la. Vou voltar para casa com meu pai, cansei disso. Estou exausta." Eu digo subindo as escadas, estou decidindo isso agora, não quero passar mais um minuto aqui. Talvez seja uma decisão completamente equivocada, mas não me sinto em casa nesta casa, não me sinto mais confortável aqui.
Arrumo todas as minhas coisas e desço com a mala, não me imagino passando um dia mais nessa casa.
Mas minha consciência, meu lado racional, está a cada segundo me dizendo: "Minha filha, que merda você está fazendo?"
Consciência, querida, eu não faço ideia.
"Você tem certeza, filha? Eu entendo se quiser tomar essa decisão amanhã, foi um dia cansativo para todo mundo." Meu pai diz.
"Tenho, vamos." Digo e dou as costas para minha mãe que está me olhando com muita raiva nesse momento.
Quando a porta vai se fechar, ouço:
"Sarah?" Eu me viro e ela se aproxima. "Antes de voltar, se lembre do motivo pelo qual você foi embora." E fecha a porta na minha cara.
Não é só a minha raiva que cresce, o meu coração também sente, sei que no fundo ela não está errada sobre isso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Inefável
Romance"Dizem que as cartas de amor, se há amor, são ridículas. Mas eu escreveria centenas delas para que você se sinta amada." Ele me tira o ar, provoca em mim sentimentos e sensações das quais nunca senti na vida. Ele me traga como as ondas do mar traga...