Caquinhos

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PEDRO

Meu coração para de bater no momento em que vejo o professor Danilo vindo em minha direção, eu não estava preparado para receber essa notícia na frente de todos, para que todos soubessem também, não preparei uma explicação e nem uma justificativa, não preparei nada, estou completamente perdido.
Para organizar minha mente, eu precisaria voltar ao dia em que toda essa confusão começou, mas não sei, minha vida está completamente fodida desde o dia em que me lembro, a única coisa que tenho certeza, é de que a presença dela iluminou minha vida de todas as formas possíveis, ela é a minha luz no fim do túnel, mas eu a levei para um caminho sombrio, um caminho que a machucou, pensar nela sofrendo e sentindo dor por culpa minha, por pessoas que estavam na minha vida e não deveriam estar na dela, em situações que ela jamais passaria se não fosse por minha causa, minha Sarah, o meu anjo e sanidade foi parar no hospital, machucada e quase lhe acontece algo pior, eu jamais me perdoaria se algo tivesse acontecido, jamais teria me perdoado se aquele filho da mãe não tivesse a tirado de lá, ele estava lá por ela, não eu, eu deveria estar lá, é a minha vida, minha confusão. Meu anjinho, passou situações das quais nunca desejei que ela passasse, ela não reclamou um segundo de toda a confusão que eu a causei, de toda a lama que eu arrastei para ela, e é por isso que decidi fazer isso. Estar ao lado dela, vê-la lutando por mim me fez querer ser uma pessoa melhor para ela, e eu realmente tentei, mas não foi o suficiente, não para ela, mas para mim, eu não suportaria mais ver meu anjinho afundada nas poças de lama que eu criei, fruto das minhas escolhas, eu decidi que ainda não sou o suficiente para ela, não sei se algum dia serei, mas preciso tentar, preciso porque jamais me perdoarei se por um segundo pensar que eu poderia ter tentado e não tentei, que eu poderia ter tentado ser melhor para ela e não tentei. Ela merece a melhor versão de mim porque foi ela quem me deu esperanças para viver, foi ela quem fez com que eu me sentisse amado, ela é toda e qualquer esperança que há nesse mundo para mim, e se não for ela, tudo já valeu a pena, se ela resolver cair na realidade e enxergar o grande merda que eu fui durante toda a minha vida, e partir para outra, tudo terá valido a pena, um milésimo de segundo ao lado dela fez toda a minha vida fazer sentido.
Nunca fui um bom aluno mesmo, faltava a maioria das aulas depois que meu pai morreu porque as pessoas faziam muitas perguntas e eu odiava responde-las, ficava lendo em casa, era muito melhor do que ir à aulas chatas e responder à perguntas inconvenientes de pessoas que fingiam se importar. A leitura me levava para os lugares que eu quisesse ir, nesses lugares meu pai podia estar, eu não respondia nenhuma pergunta e fazia o que quisesse, era o meu mundo, o mudo o qual só eu existia, e nesse momento começou minha solidão. Era bom estar sozinho porque as pessoas eram chatas e falavam do meu pai, eu não queria falar do meu pai, minha mãe estava com um cara que quase não falava comigo, se meu pai estivesse lá, isso jamais teria acontecido, era o que eu pensava, eu não gostava da presença daquele cara na minha casa, me sentia incomodado, como se um estranho estivesse na minha casa, a minha casa não era mais meu porto seguro, o lugar em que eu me sentia protegido, eu via como ele falava com minha mãe, a forma como ele tratava ela, e não gostava disso, meu pai não deixaria isso acontecer se ele estivesse lá, o meu porto seguro passou a ser eu mesmo, minha própria companhia, minha solidão. As pessoas não entendiam o que eu tinha a dizer, então eu escrevia, escrevia em meu diário tudo o que eu sentia, tudo o que gostaria de falar para as pessoas mas nunca disse.
E aí começou todo o período fodido da minha vida, um período do qual não me orgulho, mas que foi o que a vida separou para mim. No entanto, depois de tantas coisas ruins, a vida teve piedade da minha alma perdida e me trouxe ela, minha menina forte e corajosa, que lutou por mim mesmo quando eu a recusei, ela me envolveu com seu brilho e seu carinho, e sou muito grato à vida por isso.
E porque sou grato à vida, lutarei para ser uma pessoa melhor, e decidi me inscrever em Cambridge depois que o professor Danilo me deu essa ideia, no começo nem dei bola, nunca fui muito próximo dos meus professores que só me davam notas baixas, mas eu gostava um pouquinho mais dele, ou desgostava menos, ele sempre queria saber por que, como ela, não gosto de por quês pois exigem explicações, e eu não gosto de explicações. Mas para ele era menos chato dizer que eu apenas não quis estudar, e ele não me julgava, nunca me julgou, apenas dizia que tudo bem. Ele me disse que eu poderia tentar me inscrever e que ele poderia me ajudar, que essa universidade tinha outros critérios ao analisar o currículo acadêmico dos alunos. Durante vários dias o ignorei, era algo fora de cogitação para mim, mas um dia ele me parou e me disse que eu não teria nada a perder, e pensando assim ele me convenceu a fazer essa tal inscrição, eu realmente não tinha mais nada à perder.
Ele me pediu para contar um pouco da minha história, me expressando da melhor forma que eu conseguia, e me pediu também para falar dos meus livros preferidos, falei sobre Dom Casmurro e o que eu penso sobre, sobre a minha perspectiva dessa obra de Machado, falei sobre Capitães da Areia o livro que ela me apresentou, e disse sobre ela, sobre todas as coisas boas que os livros e ela trouxeram para minha vida. Não sei se um dia direi isso à ela, mas ela está lá, ela é o motivo de todas as coisas boas estarem acontecendo, ela sempre está lá.
A questão é que com tudo o que aconteceu com ela e com a minha vida, e com o fato de eu saber que ela iria embora, me preocupei com outras coisas mais importantes que isso, o fato de ela ir embora e eu não ter contado sobre meus planos para ela me corroeu, porque parecia que eu estava fazendo algo errado, algo que eu sabia que ela não gostaria que eu fizesse. Eu sabia que ela iria se preocupar com a possibilidade de eu ir, então decidi não contar para que nossos últimos dias juntos por um bom tempo fossem bons, como deveriam ser, sem preocupações e brigas, queria que fossemos só eu e ela, sem os problemas que a vida nos prepara. Mas agora, mesmo que eu diga tudo isso à ela, que tudo foi e é por ela, tudo é sobre ela, ainda sim ela ficará chateada, escondi essa importante informação dela e não dei à ela um tempo para processar, há grandes chances de que minha Sarah desista de mim, e nesse caso, as coisas serão o dobro de difíceis e os problemas terão o dobro do tamanho que teriam, porque é ela quem deixa as coisas mais fáceis, é ela quem me dá forças, e agora, não sei se a minha maior força me perdoará pelas escolhas que fiz justamente para ela.
Cada detalhe dela me rende por completo, ela acha que eu não a admiro como ela me admira, mas está completamente errada, ela só não vê, todas as vezes em que ela teve pesadelos com a mãe dela eu estava lá para abraça-la e dizer que estava tudo bem, e ela mesmo sem acordar, entendia que estava segura, todas as vezes em que perdi o sono durante a madrugada e a observei dormir, sei que ela sorri quando dorme, não sei com o que sonha, mas a faz sorrir, sei que ela gosta de dormir com um travesseiro enganchado nas pernas, e quando o travesseiro caía no chão eu o colocava novamente entre suas pernas, eu cuidei dela com todo o carinho que senti quando ela precisou, dei banho em sua pele angelical quando ela precisou, e daria quantas vezes precisasse, ela acha que não me importo com ela como ela se importa comigo, mas está longe de ser assim, eu só não sou bom em me expressar. Gosto de quando o sol da manhã que entra pela sua janela bate em seus cabelos e os deixa brilhante, como seu cabelo a cobre como um véu, um longo véu, como sua boca é bem desenhada e suas sobrancelhas tem o arqueamento perfeito. De tantas garotas que já passaram por minha vida, ela ficou e me tragou como as ondas do mar tragam a areia, sou dela, inteiro e por completo, admiro cada mínimo detalhe seu. Só não sei se estou pronto para me expressar como deveria, e não sei se à essa altura ela entenderia.
Tentei de todas as formas que consegui explicar a situação, mas não acho que ela escutou, estava perdida em seus pensamentos, e é esse o lugar que eu mais temo que ela se perca, pois não sou capaz de resgata-la quando ela vai parar lá, só ela entra e só ela sai, por conta própria e sozinha. Ela não me olhou e nem me tocou e nesse momento o medo de perde-la bate na porta como um imobiliário bate na porta de um inquilino para receber seu aluguel, com força e segurança, me deixando inseguro.
Chegamos em casa e ela ainda sequer olha em minha direção, ela tem seus motivos e não está destinada a entender os meus nesse momento, ela sobe direto para o quarto.
''Ela vai superar, fique tranquilo.'' Miguel me aconselha.
''Estaremos na casa da Laura se precisarem de nós, vamos dar um tempo à você.'' Esther diz com calma sorrindo para mim. Ela me trata melhor do que mereço, é uma mulher extraordinária.
''Você podia ter contado para mim, cara.'' Enrico, meu irmão, me diz, mas ele também é irmão dela, e isso abalaria a relação dos dois também, e não quero causar mais estragos.
''Ela não iria te perdoar se soubesse que você tinha escondido dela, você é o irmão dela antes de ser meu amigo, e eu respeito isso.''
''Mesmo assim, você é meu irmão, independente de tudo, estou aqui do seu lado.''
Ele me abraça, fico até meio sem jeito, fomos irmãos a vida toda mas sem muitas demonstrações de carinho, mas agora é tudo diferente, Laura abriu seu coração também.
Laura não olha em minha cara e eu entendo, ela é uma das melhores amigas da Sarah, me surpreendo de ela não ter me batido, é obvio que ela ficará do lado dela, ela deve apoia-la.
Ficamos só nós dois nesta enorme casa enquanto todos comemoram a formatura que não merece comemorações. Ela em seu quarto e eu aqui, sentado no chão da sala, sem ter a mínima ideia do que fazer.
''Uma simples conversa muda tudo, diga à ela o que precisa dizer, e a vida decide o que acontece.'' Miguel me da um conselho precioso, agradeço com o coração, feliz em saber que posso contar com ele, Miguel também é um grande homem, que aprende todos os dias com seus erros, como eu aprendo e tenho muito a aprender.
''Sarah?'' Digo do outro lado de sua porta, que está fechada e que nos separa, acredito que ela não vá abrir, mas não me importo, o fato de estar próximo dela, nem que seja atrás de uma porta já me conforta.
Não obtenho resposta, mas continuo aqui por ela. Então pego meu exemplar de Capitães da Areia na estante e me sento no chão de volta. Colei alguns post its indicando minhas partes preferidas do livro, eu pretendia ler em sua presença, juntos, como fizemos com Dom Casmurro, mas já que a ocasião é essa e não tenho uma ideia melhor, é isso que vou fazer.
''A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é a sua mãe que voltou." Eu leio em voz alta, um dos trechos marcados com post it e continuo falando o que eu penso, ela gostava de me ouvir dizer o que eu tinha entendido, minhas perspectivas.
''Dora é a única menina a entrar no grupo, e ainda mal recebida, aqueles garotos tinham outras visões de uma menina como aquela, principalmente Pedro Bala, ele não a via como uma igual, a via como uma menina qualquer, no entanto, nesse trecho fica claro a forma que Dora faz Pedro se sentir, os sentimentos que ela causa nele, sentimento de carinho, compaixão, quando ela o toca, transmite tanto carinho que Pedro recebe como um carinho maternal, se lembrando de sua mãe, Dora é a mulher que apresentou-lhe o amor, que mostrou-lhe outras perspectivas, que o tragou. É assim que me sinto com você, Sarah.''
Sei que ela está me ouvindo, e mesmo sem que ela diga nada, continuo, sei que ela gosta de me ouvir falar sobre os livros, mesmo que o que eu diga não faça tanto sentido as vezes, porque é a minha perspectiva, mas continuo tentando.
''Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão dele, leva ao seu peito. Arde de febre. A mão de Pedro está sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
  – Tu sabe que já sou moça?
A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela:
  – Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado: – Não, que tu tá doente...
– Antes de eu morrer. Vem...
 – Tu não vai morrer.
– Se tu vier, não.
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
 – Tu é minha agora – fala ele com voz agitada.
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem. Dora murmura:
– É bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
 – Agora vou dormir – diz.''
''Nesse trecho, é como se o amor deles fosse consolidado, é algo carnal, físico e envolto de amor, não há outro sentimento a não ser o amor, o primeiro amor de Pedro Bala, Dora, uma menina não tão arrumada devido à suas condições, mas com um carinho maternal para cuidar, essa é a questão, estar ali, se importar, ficar e fazer acontecer, sem pensar nas consequências, é o sentimento, é o que ele sente por ela, o sentimento mais grandioso, aquele que aproxima e muda, que transforma e acalma, o amor. Pedro Bala conheceu o amor, que tornou tudo em sua volta quase que irrelevante, mas assim como o amor veio para ele, o amor também se foi, como um bom sonho, desses que nos envolve e nos prende, mas somos acordados pelo despertador, interrompendo tudo. A história de Pedro e Dora foi interrompida e eu, estou lutando para que a nossa não seja interrompida também. Você é minha Dora, Sarah, aquela que diante de todas as outras fez eu me importar, fez eu querer me envolver, fez eu querer ficar, e você ficou comigo, ficou e lidou com todos os outros problemas que vieram na bagagem, sem se importar, você é minha, Sarah, como Dora será para sempre de Pedro Bala.''
E assim ouço a porta ser destrancada, em um único estalo que ecoa pelo corredor, me levanto e fico esperando ela abrir, mas ela não abre.
''Só vou entrar se você quiser que eu entre.''
Um silêncio paira, um dolorido silêncio.
''Por favor, Sarah.'' Encosto minha testa na porta, ouço sua respiração.
Ela abre, a sensação é de que estou em Ítaca, meu lugar, o lugar em que eu devo estar.
Seus olhos estão vazios, mas cobertos de lágrimas, ela não sabe o que dizer, tudo bem, porque eu também não sei, o repleto silêncio ao seu lado, torna-se a música mais bonita.
''Você vai?'' É o que ela me pergunta.
Tudo é tão difícil e tão dolorido, exatamente do jeito que não deveria ser. 
Faço que sim com a cabeça e mais uma lágrima escorre de seus olhos.
''Por quê? Sou eu? É porque vou embora?''
E depois de tudo ela acha que a culpa é dela, se existe algum culpado, sou eu, mas não consigo falar nada agora, a dor de vê-la chorando, de novo, por minha lama, é maior.
Eu a abraço o mais forte que posso e a aconchego em meu colo enquanto ela chora, com todo o seu coração, expressando o quanto está magoada, o quanto eu a magoei e a fiz pensar que a estou deixando, que a estou abandonando como seu pai a abandonou dez anos atrás. E aqui, sentados nessa cama, onde já nos conectamos de forma amorosa centenas de vezes, nos envolvemos em nossos monstros, que nos assombram e nos machucam, nossas escolhas, que nos fazem arcar com as consequências, mesmo sendo diferente do que ela acredita que seja, não posso explica-la nada agora, ela não está disposta a entender, só a sentir raiva e tristeza, ambos por mim, e estarei aqui, sendo seu porto seguro para que ela expresse toda a sua dor. O tanto que me dói acho que nunca vou conseguir expressar, ver quem eu mais amo no mundo machucada, um machucado que não dá pra por curativo, um machucado que eu mesmo causei e não tive a intenção, minha Sarah, meu anjo sendo devastada por minha lama novamente, é por isso que preciso ir, minha Sarah, não para te deixar, isso nunca, essa nunca foi a questão, a questão é você, é para você sempre, mas você não será capaz de entender agora, então eu a aconchego em meu colo enquanto ela se despedaça em mim, cada pedacinho estilhaça como um caco de vidro em meu corpo, que me corta tão profundo que dói, não uma dor física, uma dor na alma, em um lugar que não cicatriza, minha Sarah se despedaça em meu colo e eu a acolho porque é isso que seu pai deveria ter feito ao invés de deixa-la sem explicações, acolhido essa menina linda e carinhosa e juntado seus caquinhos. Eu a ajudarei a juntar todos os seus caquinhos, mesmo que não seja agora, mesmo que não seja da forma que eu imaginei, da forma que planejamos, eu juntarei seus caquinhos, Sarah, assim como você juntou todos os meus caquinhos quebrados, você me recompôs, e nós faremos o mesmo juntos, eu prometo.

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