No jantar daquela noite, consegui contar triunfante que tinha um emprego de salário mínimo de verdade. Nell riu, mas engoliu rapidamente a risada ao perceber o olhar de Asher. River me deu um sorriso solidário e Solis pareceu satisfeito. Senti uma explosão boba de orgulho por ter feito uma coisa certa. Para variar.
— Ei, querida, manda pra cá — disse Brynne, e passei para ela o prato de peixe.
Eu estava praticamente engolindo minha comida sem mastigar, tentando satisfazer meu apetite cada vez maior. Quando peixe e arroz tinham sido tão gostosos? Digo, tirando as vezes em que eu não estava no meio de uma temporada passando fome.
Um relâmpago piscou nas janelas escuras, iluminando a sala de jantar por um instante e refletindo no grande espelho sobre a lareira. Um momento depois, um trovão soou a distância.
— É bastante incomum termos uma tempestade em novembro — comentou Asher, e River concordou.
— É uma pena — disse River. — Íamos fazer uma caminhada para observar as estrelas hoje.
Agradeci em silêncio por não haver caminhada para observar as estrelas em meu futuro imediato e me servi de mais chá quente. As primeiras gotas frias bateram nas janelas, e me senti estranhamente confortável ali, cercada por aquelas pessoas que eu não conhecia muito bem.
— Esta noite teríamos uma ótima vista de Zeru-zakur, por volta das 11 horas — prosseguiu River e, veja só, todo mundo olhou para o alto e concordou com interesse.
Fiz uma pausa, o garfo a caminho da boca, enquanto meu cérebro procurava aquela palavra. Parecia ligeiramente familiar. Que diabos, eu ia perguntar. Como dizem, não existem perguntas burras. Só pessoas burras.
— O que é Zeru-zakur?
Algumas pessoas ergueram a cabeça para me olhar.
Por fim, Solis disse:
— Canis Major.
Certo, eu já tinha ouvido falar disso. Uma constelação, o "cão maior". Como o Grande Carro. Mas qual era sua importância? Não consegui pensar em nada.
— Canis Major é uma das nossas constelações mais interessantes, então? — perguntei, colocando três cubos de açúcar no meu chá.
Nesse momento, todas as 12 cabeças se viraram para olhar para mim, e tive a impressão de que a novata ignorante tinha acabado de cometer algum tipo de gafe adorável. Só que de adorável não tinha nada.
— Vou interpretar isso como um sim — murmurei, bebericando meu chá quente demais.
Até River estava olhando para mim com surpresa. Conseguir surpreender alguém com quase 1.300 anos não era pouca coisa, então parei de beber e me ajeitei na cadeira.
— O que você quer dizer? — A gargalhada de Nell soou meio frágil.
— Sei que é uma constelação — falei, começando a me sentir irritada. Olhei para a frente e vi Reyn me observando, os olhos levemente apertados, mas não com maldade. Mais com... consideração.
— É... Canis Major. Zeru-zakur. — Até Daisuke, que era sempre educado e gentil, parecia incapaz de acreditar que eu não soubesse nada sobre isso.
— Tá, já entendi isso. Mas o que tem ela? — perguntei, colocando o chá sobre a mesa. — Só me contem e depois podem rir de mim.
Depois de uma pausa, River disse com calma:
— Zeru-zakur é o nome antigo para a constelação que muitas pessoas atualmente conhecem como Canis Major. A estrela principal é Sirius, a Estrela do Cão, que é a estrela mais brilhante no céu noturno.
— Certo — falei. A mesa estava em silêncio, exceto por Nell bufando, mas River lançou-lhe um olhar e ela parou.
— Não temos certeza do motivo, há muitos mitos e lendas, e é algo que muitos filósofos imortais estudaram, mas há cerca de quinhentos anos, um astrônomo imortal descobriu que, por alguma razão, as estrelas da constelação Canis Major correspondem quase exatamente às oito fontes. Ou, pelo menos, supõe-se que elas correspondessem, há vários milhares de anos. — River partiu um pedaço de pão, parecendo deliberadamente casual. Ela sorriu. — Eu não estava lá, entãonão sei.
— Fontes? — repeti. Fonte significava origem, princípio. Também significava um tipo de letra, em digitação.
— Ah, gente, você deve saber... — exclamou Nell, e dessa vez o olhar que River lançou na direção dela foi penetrante. Nell inspirou e olhou para as mãos, exibindo um sorrisinho falso no rosto.
— As oito fontes, ou casas, dos imortais — prosseguiu River. — Da nossa magick. Elas estão em um padrão no planeta que corresponde às posições das estrelas em Canis Major. — Ela estava observando meu rosto em busca de sinais de reconhecimento.
— Existem... oito casas? — perguntei. A sala estava silenciosa como uma tumba.
— Você não estudou isso? — perguntou River. — Nunca? Mas deve ter ouvido outros aefrelyffen falarem sobre isso, mesmo que casualmente.
Pensei.
— Você está falando das capitais imortais? Como a do Brasil ou a da Austrália?
— Sim, então você sabe — disse Solis, com gentileza. — Essas são duas delas. Há, ou melhor, houve, seis outras. Essas oito capitais, ou casas, correspondem às oito estrelas na constelação Zeru-zakur. Ninguém nunca conversou com você sobre a história dos imortais?
Pensei em Helgar, com a teoria de Adão e Eva.
— Não. Só que... ninguém sabe de onde surgimos nem por quê.
— Conheci pessoas que nunca tinham ouvido falar das oito fontes — comentou Jess com a voz rouca. — Pessoas que, por alguma razão, nunca tiveram isso como parte de suas vidas. Eu mesmo não sabia quase nada quando vim pra cá.
— Na verdade, também conheci pessoas assim — disse Anne. — É um assunto que muitos imortais conhecem bem, mas entendo como alguém pode não ter se dado conta da importância.
Obrigada, Jess e Anne, pensei. Ocorreu-me que talvez meus pais tivessem me ensinado sobre isso, sobre nossa história, nosso poder. Talvez houvesse um rito ou algo do tipo, com uma grande revelação no final. Talvez meu irmão e minha irmã mais velhos tivessem passado por ele antes... daquela noite. Eu jamais saberia.
— Tudo bem, Nastasya — disse River. — Eu não quis deixar você constrangida. As pessoas passam por diferentes círculos sociais, e os diferentes círculos têm tradições diferentes e focos diferentes. Às vezes me esqueço disso. — Ela sorriu para mim, e pensei, essa é a mulher mais sincera que já conheci.
— E isso significa que terei o prazer de ensinar a você — disse ela, parecendo satisfeita com a ideia. — Tradicionalmente, essas oito fontes foram os principais... lugares de força imortal. Os imortais parecem ter se originado lá ou, pelo menos, certamente obtiveram grandes poderes, grande magick desses lugares. O lugar principal, com a magick mais forte, fica na África do Sul, um lugar chamado Mogalakwena Rural. Corresponde à Estrela do Cão. Depois, a cada lado da África, seguindo a linha do Trópico de Capricórnio, tem os dois que você conhece, Coral Bay, na Austrália, a leste, e a oeste, Campinas, no Brasil.
Eu estivera naqueles dois lugares ao longo dos anos. Porque os imortais costumavam ir muito para lá. Nunca tinha pensado no motivo. Senti um rubor subir ao meu rosto. Era irritante, espantoso me dar conta do quanto eu não sabia, do quanto havia para ser descoberto, bem na minha frente, e, de alguma forma, eu tinha conseguido não perceber, ignorar, deixando de lado todos aqueles anos. Eu vivia em preto e branco, e agora River estava me mostrando que todas as outras cores estavam lá o tempo todo, mas eu fora burra demais para vê-las.
— Depois, indo para o nordeste de Mogalakwena, tem Awaynat, na Líbia, ao lado do Egito — continuou River casualmente, jantando ao mesmo tempo, como se aquilo não fosse nada demais. — Aquela linhagem desapareceu há uns dois mil anos. Dois mil e trezentos anos. Não existe mais.
— Dois mil e trezentos anos? — perguntei. — O que aconteceu com o poder de lá?
— Ninguém sabe — disse River. — Duvido que um dia saibamos. E, continuando para o nordeste partindo de Awaynat, chega-se a Gênova, na Itália.
Ouvi a palavra Gênova e meus olhos se arregalaram. River sorriu.
— Sou dessa casa — confirmou ela. — Em parte, é por isso que sou tão forte. Meus quatro irmãos e eu ainda estamos vivos, e meu irmão mais velho ainda é... bem, rei daquela casa.
— Rei? — Um reconhecimento gélido se insinuava dentro de mim. Meu estômago se contraiu e afastei meu prato.
— Por falta de palavra melhor — disse River. — Se você algum dia encontrá-lo, pelo amor de Deus, não o chame de rei Ottavio. Ele acredita piamente.
Solis e Asher sorriram. Concluí que já o tinham encontrado. Tentei me concentrar nas palavras dela.
— Continuando numa espécie de Y, partindo de Gênova há Tarko-Sale, no norte da Rússia, mas aquela linhagem também morreu, em 1550. Usurpadores invadiram a capital e cortaram a cabeça de todos da família.
Senti o sangue fugir do meu rosto.
Odin, o Odioso, ficou de pé de repente, afastando o banco com várias pessoas ainda sentadas nele.
— Acho que deixei o forno aceso — disse ele, empurrando as portas de vaivém para entrar na cozinha. Não importava. Acho que ele já tinha ouvido aquela história milhares de vezes.Tentei encontrar minha voz.
— E o que aconteceu com o poder deles? — perguntei.
— Os usurpadores nunca encontraram o tarak-sin daquela casa, a ferramenta, o foco de sua força. Mataram todas aquelas pessoas por nada, e então a magick, a força, sumiu para sempre. Então seguiram para o oeste, procurando o poder de outra casa para tomar.
Ah, Deus. Minha mão apertou a caneca de chá com força.
— O que é um tarak-sin? — Minha voz soou fraca e tensa.
River suspirou com tristeza, e me dei conta de que ela estava viva quando aconteceu. Fiquei na dúvida se ela tinha ouvido sobre o acontecido na época ou se só descobrira depois.
— Cada casa tem um, bem, digamos uma ferramenta mágicka, por falta de palavra melhor. Um nome bem antigo para isso é tarak-sin. Normalmente é segredo, embora lendas contem sobre a faca cerimonial de Awaynat. Outra casa pode ter um livro especial, um globo de cristal ou mesmo uma varinha ou anel ou alguma outra joia como seu tarak-sin. E esse objeto antigo é carregado de muito poder mágicko, específico daquela casa. O chefe da casa pode usá-lo paraexecutar grandes feitiços.
Ah, Deus. Podia até ser um amuleto. Um amuleto feito de ouro antigo e entalhado com símbolos mágickos. Por exemplo. Minha cabeça começou a girar.
— Vi o tarak-sin da casa de Coral Bay — disse Charles.
— É mesmo? — Brynne parecia impressionada.
— É. — Charles estava muito sério. — Era uma Barbie. Colocaram camarões mágickos nela.
Por um momento houve silêncio, então Jess gargalhou. Asher caiu na risada e jogou um pedaço de pão em Charles. O rosto de River relaxou um pouco, e ela colocou a mão sobre a boca e balançou a cabeça.
— Sempre provocamos meu irmão dizendo que o tarak-sin da nossa casa é o Oscar, que ele ganhou como roteirista, usando outro nome — admitiu River. — Ele o guarda no banheiro.
Mais risadas, mas por dentro eu estava gritando.
River limpou a garganta e ficou séria de novo.
— Mas voltemos à nossa história. A oeste, seguindo a mesma linha, ficava a casa da Islândia, em Heolfdavik. Ou melhor, em um pequeno vilarejo perto de Heolfdavik. Aquela linhagem, infelizmente, também foi destruída, em 1561, por invasores. E mais uma vez, o poder de uma casa inteira foi perdido.
Eu não conseguia dizer nada, só olhar para o prato e me perguntar se meu rosto estava tão branco quanto ele.
— Perdido mesmo? — perguntou Rachel. — Nunca entendi isso.
— Sim — disse River. — Os invasores mataram todo mundo da família, depois encontraram o tarak-sin da casa e tentaram usá-lo. Mas não eram fortes o bastante, ou algo deu errado. A história é que foram engolfados em uma torre de relâmpagos, não deixando nada para trás além de cinzas. E ninguém sabe o que era o tarak-sin.
Era um amuleto. Por algum motivo, eu nunca tinha percebido sua importância. Eu sabia que era mágicko, sabia que era o bem mais valioso da minha mãe e o mantive sempre escondido porque era a única coisa que restava da minha antiga vida. Mas ele era um taraksin. Eu tinha metade, então os invasores deviam ter pegado a outra parte. Não era de surpreender que a magick tivesse explodido.
Senti como se fosse desmaiar. Eu continuava tentando respirar normalmente, mas meus olhos estavam arregalados, concentrados no rosto de River. Ela percebeu minha expressão, e pensei ter visto um brilho em seus olhos.
Reyn voltou e se sentou sem dizer uma palavra.
Agora eu olhava para baixo, tentando engolir o que parecia ser uma bola de golfe. Eu tinha perguntas, mas não podia fazê-las naquele momento.
— Brynne — disse River, abruptamente mudando de assunto —, temos alguma sobremesa?
Brynne deu um pulo, mas respondeu:
— Se tem sobremesa? Fui eu que fiz o jantar? Eu alguma vez faço o jantar sem sobremesa? Acho que não. — Ela foi até a cozinha e voltou um minuto depois com duas tortas de maçã em uma bandeja.
— Tem sorvete? — perguntou River, e Brynne concordou, como se dissesse sim, é claro que temos sorvete, pois temos torta, certo? Em um minuto ela trouxe um pote de sorvete orgânico feito em uma fábrica de laticínios a alguns quilômetros dali.
Tive a sensação de que River estava me dando tempo para recuperar o controle, e por dentro eu estava desesperadamente implorando à minha cabeça que se acalmasse, que parecesse normal, tentando afastar a atenção de mim.
— Então ninguém daquelas casas ainda existe? — perguntou Rachel.
— Não que se saiba — disse River. — Awaynat é um mistério total. E ninguém jamais ouviu falar de sobreviventes de Tarko-Sale e nem de Heolfdavik. E, de alguma forma, os respectivos tarak-sins se perderam.
River falava baixo, colocando sorvete sobre sua torta.
— Podemos falar mais sobre isso outra hora — disse Asher, olhando para River. — E posso contar para vocês sobre a última casa, que corresponde à última estrela na Canis Major. Fica em Salem,Massachusetts.
— Você está de brincadeira. — Empurrei um pedaço de torta para dentro da boca. — Do julgamento das bruxas de Salem? — Minha voz parecia um coaxar, e a torta ficou entalada na garganta, me deixando engasgada.
— Exatamente. Adivinhe quantas dessas "bruxas" não morreram depois de colocadas nas fogueiras? — Solis parecia irritado.
— Solis é da casa de Salem — disse River com delicadeza, e minha mente voou para a imagem dele sendo queimado em uma delas. Por muito tempo. Sem a benção da morte.
— Mas não havia ninguém na América há vários milhares de anos atrás — disse Charles. — Exceto índios americanos. Certo?
— É uma longa história — disse Solis, olhando nos olhos de River. — De qualquer forma, não vamos fazer a caminhada para observar estrelas esta noite.
Como se para pontuar aquelas palavras, um trovão alto explodiu, parecendo soar bem do lado de fora da casa. Tentei engolir outro pedaço de sobremesa enquanto ouvia a chuva batendo friamente contra as janelas.
Eu tinha muita coisa em que pensar.
Mais tarde, quando estava saindo de um banho longo e quente, River estava me esperando do lado de fora, no corredor. A expressão no rosto dela era séria, porém gentil.
— Você está bem? — perguntou ela.
— Claro — falei, esfregando uma toalha no cabelo. — Por que não estaria?
River ficou em silêncio por um momento enquanto andava ao meu lado até o quarto.
— Foi muita informação para ser absorvida — disse ela.
— Foi. — Abri minha porta e estendi a toalha nas costas de uma cadeira, perto do aquecedor. — É impressionante que haja falhas tão grandes na minha formação. Por outro lado, sei falar palavrão em oito línguas diferentes. No mínimo.
— Nastasya... — hesitou River. — Você nasceu em 1551. Onde?
Meu coração saltou e quase parou. Falei a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Japão.
Ela cerrou os lábios.
— Você vai ter que falar sobre isso algum dia, querida.
— Falar sobre o quê? — Olhei para ela sem expressão, algo que aprimorei até tornar uma arte.
Ela gesticulou com a cabeça, depois me abraçou e acariciou meu cabelo molhado.
— Durma um pouco. Você tem que trabalhar amanhã.
Fui pega de surpresa. Eu realmente tinha esquecido. River sorriu por causa da minha expressão e depois saiu. Eu tinha que pensar. Ela não ia tentar me interrogar, ia? O que eu faria nesse caso? Eu estava impressionada por existirem oito casas diferentes, oito linhagens de histórias diferentes. Supus que aquelas eram apenas as principais, as que conseguiram reunir bastante poder. Devia haver milhares de outras. Mas só oito tarak-sins originais? De onde eles tinham vindo? Enfiei meus dedos por baixo do cachecol fino de algodão. O que River pensaria se soubesse que tenho o tarak-sin da Islândia em uma queimadura na minha nuca?
Sem conseguir me controlar, prestei atenção ao som de passos e, quando não ouvi nada, me arrastei para debaixo da cama. Um pequeno pedaço do rodapé atrás da minha cama estava rachado, e enfiei as unhas curtas na rachadura para puxá-lo. Enfiei a mão no buraco e senti, mais uma vez, o pesado ornamento de ouro que sempre parecia quente, independentemente de onde estivesse. Confirmei que estava mesmo lá e coloquei a madeira no lugar, acomodando-a com firmeza e jogando um pouco de poeira em cima para parecer natural. Então me arrastei para fora e me sentei na cama.
Se meu amuleto fosse o verdadeiro tarak-sin da minha casa, então ele era ainda mais poderoso, mais valioso do que eu jamais soube. Era o que tinha levado minha família inteira à morte. Era o que os invasores tinham ido buscar. Era por ele que tinham morrido.
Será que alguém suspeitava de que aquela metade ainda existia? Será que ainda valia a pena matar por ela?

VOCÊ ESTÁ LENDO
Amada Imortal
Teen FictionQuando se vive por mais de quatrocentos anos , não é fácil se emocionar. Tudo é embotado, visto através de uma lente suja pelo tempo. Pelos erros. Pelas perdas... Nastasya passou as últimas décadas vivendo no limite. A próxima festa, o próximo gole...