Capítulo XIII - Hyldren

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  O barco já se aproximava, à remo, dos imensos portões da Cidade do Rio, a Jóia do Relâmpago. Uma coisinha pequena de madeira movida à um remo movido pelo humilde homem de Hyldren. Havia uma vela de um tecido branco, provavelmente uma cortina ou algo do tipo em dias passados, tingida com alguma tintura porca lilás e inútil por causa da falta de vento naquele dia.

  Hyldren se encontrava quente, percebera Darkus enquanto atravessavam da margem sul para a a margem norte. Passava pouquíssimo vento e o calor era palpável, mas mesmo assim via-se o Rio Relâmpago atulhado de barcos passando por mercadorias. Saíram do caminho bem à tempo de uma coca fluvial passar com homens de armas sob os conveses, seguindo lentamente o curso do rio com sua vela parada.
   " Soldados hyldreanos...será que o rei está convocando tropas?" Não saberia dizer, a capital estava fechada e pouco se atrevia à ser dito sobre as intenções do monarca. Um homem covarde que fechara a própria cidade para o comércio, com medo de monstros há milhas de distância.
    As muralhas da cidade se erguiam por cima do rio e por cima da terra, uma maravilha da engenharia conhecida. Era abaixo do nível da água em sua boa parte, mas canais e pontes ajudavam à fazer passagens e compor a travessia. Seu pequeno barco entrou pelo portão do rio, erguido e vigiado por guardas com tabardos brancos e cabeças de dragões negras bordados.
    - Hyldren, que normalmente seria guarnecida por não mais que seiscentos homens, tem oito mil homens dentro de suas muralhas ou patrulhando as redondezas.- Disse Gerald, depois de atravessarem o portão externo e começaram à navegar pelo canal principal pela área mais pobre. Algum comércio florescia vindo do rio, aparentemente aquele isolamento para com outros reinos estimulara o comércio interno.
     As casas ali eram de madeira e pedra, algumas poucas eram as de alvenaria. Bordéis eram vistas às margens dos canais e canais cruzavam uns aos outros. Diziam que também haviam aquedutos subterrâneos na parte totalmente terrestre da cidade que levavam água para lá, sem a necessidade de cruzar de um ponta à outra de Hyldren. Água, água era o sangue da cidade, oque a tornava viva e oque a formava. Água era oque ela era.
    - Hyldren é uma cidade incrível....e se o exército deles for tão bom quanto sua capital....- Anya começou à dizer, bastante impressionada. A garota tinha que ficar o tempo todo com um capuz e uma máscara de raposa. A pele vermelha não passaria despercebida.
     - Você ainda não viu nada..- Respondeu Gerald, com um meio sorriso. E logo uma lufada de vento veio quando estavam diantes das muralhas internas de Hyldren, as mais antigas e construídas sob as velhas pelo Rei Vhagar I Draegys.
     Metros de espessura e alvenaria forte, provavelmente com vigas para sustentação. Gárgulas em forma de dragões marinhos com espadas na boca ladeavam os portões levadiços do rio, e dizia-se que as gárgulas do portão principal terrestre eram ainda maiores e gloriosas. Ameias e seteiras formavam o topo e o interior da construção, para lançar flechas, pedras e óleo.
    Entraram pelos portões erguidos e tiveram a visão gloriosa do centro de Hyldren. Mais canais passavam de um lado para o outro, compondo tráfego pela cidade, com cocas, barcos de pesca e jangadas atravessando calmamente. As pessoas conversavam e riam pelas ruas, muito peixe era vendido com a falta de frutas e carne que deveriam vir de reinos vizinhos. Muitos soldados faziam rondas, com mantos negros sob os ombros e alabardas ao lado, com espadas curtas na cintura.
    Adentraram pelo canal adentro, e Darkus já conseguia ver o final daquele caminho todo. Havia um pequeno ancoradouro no mercado onde as mercadorias fluviais eram descarregadas, era onde o movimento era mais intenso. Barcos à remo passavam por eles com pressa de chegarem com a mercadoria antes da concorrência, e nisso um remo descera e subira erroneamente e água foi jogada contra eles.
   - Nossa....- Darkus viu Anya levar as mãos aos olhos para secar eles, o próprio garoto estava quase encharcado. Não teria ligado para isso, se a garota demônio não tivesse soltado um gemido, um gemido de terror. Os dedos de Aranya tocaram apenas a pele, a máscara havia caído em seu colo.
   O mundo pareceu entrar em câmera lenta, seus olhos correram pela multidão e viram ao todo alguns guardas olhando diretamente para eles. Os soldados ainda não acreditavam no que vinham, afinal monstros realmente não eram comuns, com certeza nenhum deles tivesse visto um deles na vida, assim como o jovem antes da amiga. Os passos começaram à soar na direção da muralha, onde soariam o berrante para avisar a guarnição, em menos de dez minutos estariam perdidos.
   - Vamos...vamos...- Gerald o tirou do transe ao segurar com firmeza os braços de Anya e Darkus, os puxando com velocidade para fora do barco. Deixaram tudo ali, não tinham como carregar os suprimentos. Levavam apenas as bolsas que eram possíveis ser carregadas sem se atrapalhar, e Darkus tinha Trono de Ossos e Anya o seu grimório.
    Seus passos foram rápidos, Anya recolocara a máscara e seguia atrapalhada os dois. Os transeuntes se afastavam e alguns reclamavam com os encontrões, mas logo foram de encontro às ruas mais estreitas, tentando chegar à um lugar seguro.
    - Deveríamos tentar chegar à algum lugar mais isolado e esperarmos a poeira baixar. Depois tentaremos voltar pelo canal, não temos como prosseguir com...- O berrante soou três vezes, uma convocatória e aviso que significava a presença de um monstro na cidade.  - ...isso..- Completou Gerald, preocupado.
     Já Darkus estava alarmado, não conheciam nada sobre Hyldren o suficiente para conseguirem se guiar pela cidade. Se perderam rapidamente, e logo mantos foram ouvidos roçando pelo chão, o tintilar de cota de malha e de aço. Sete guardas os cercavam rapidamente, com meio elmos para proteger suas cabeças, suas espadas à mão. Nenhum deles trazia escudo, não haviam tido tempo de os carregar até ali.
  
  Darkus e Gerald se olharam por um momento, e então ambos se colocaram de frente para os homens, protegendo Anya que estava desarmada. Trono de Ossos saiu da bainha do garoto, seria a primeira vez em que a espada seria usada para matar, e ela parecia notar isso. O fio brilhava escurecido, o material sombrio da lâmina parecia não ser daquele mundo, Darkus tinha a impressão de que a arma quase se impulsionava para a frente desejosa para morder carne.
    O primeiro guarda avançou na direção de Darkus, que tinha ao todo três homens para enfrentar. O soldado tentou um golpe horizontal com a espada, que teria arrancado vísceras se não fosse bloqueado por Trono de Ossos. Um tintilar de aço e logo o jovem já tinha deslizado os calcanhares para o lado e lançado uma estocada mal sucedida, que por pouco não lhe custou equilíbrio. 
   Defendeu o segundo golpe do oponente e forçou a espada para a frente, fazendo o guarda vacilar por um momento. Deslizou Trono de Ossos pelo aço e estocou com velocidade, furando o flanco do guerreiro e o derrubando no chão com sangue empoçando os tijolos.
    Darkus tirou Trono de Ossos com dificuldade, e esse momento foi o suficiente para que os guardas se aproximassem. Conseguiu aparar a lâmina de um, mas o outro acertou sua boca com o guarda mão, sentiu o gosto de sangue nos lábios. Afastou o homem com um golpe em arco, mas não pôde impedir que um dos soldados se lançasse contra a guarda aberta.
    - Darkus, cuidado!- Anya estendeu o braço, e gritou palavras em uma língua que fez os cabelos de seus braços ficarem em pé. Viu os olhos da garota demônio se tornando luminosos, as íris douradas queimando como brasas. À partir dos dedos estendidos, o garoto sentiu o ar esquentar à níveis anti-naturais, e logo fogo torrencial engolia aquele que tentava atacar o bastardo.
  O guarda se debatia, com sua carne e roupas queimando e liberando fumaça e um cheiro forte no ar. A visão era terrível, a menina jogara a máscara para o lado para se ajoelhar e vomitar. Darkus não podia dar o mesmo vacilo, logo se atirou contra o último oponente que sobrara, o finalizando em alguns segundos.
  Logo o campo de batalha se transformara em cadáveres e fumaça vinda do homem que morria mais à cada instante, Gerald havia terminado com os seus sem auxílio de magia, embora tivesse ficado marcado com um corte até que fundo na testa. O cheiro acre atraía mais homens, e logo escutavam passos para todos os lados.
     - Anya, você aprendeu à usar magia...- Comentou Darkus, bastante surpreso. A menina havia achado o grimório há apenas um dia, aquilo era impressionanente.
    - Magia?!- Exclamou Gerald, surpreso. O homem não tinha uma boa relação com coisas mágicas. Ele não sabia do grimório.
    - É...mas acho que foi no momento de necessidade, não sei se conseguiria fazer em uma situação normal...- Murmurou Aranya, virando o rosto para o lado.
    Logo estariam perdidos, cada vez mais o som da cota de malha se aproximava. Eram apenas três, dois quais só dois podiam combater fisicamente e a outra dependia de um poder recém-descoberto.
    Ouviram um barulho e se viraram para ver oque era, Darkus e Gerald colocaram as espadas à frente de seus corpos, mas aquele que saiu da parede de pedra tinha um sorriso no rosto. Era um homem jovem, menos de trinta anos, não possuía barba e sua pele era clara como a maioria dos humanos do Norte. Seus cabelos tinham um cor rara, que era o loiro-platinado, e seus olhos detinham um profundo tom azul da cor de safiras.
    - Senhores causadores de tumulto....poderiam me seguir?- O homem deu uma risada, se colocando para o lado e dando caminho para dentro da passagem.

  O pinga-pinga era constante naqueles túneis, aparentemente estavam abaixo da cidade e abaixo do rio. A umidade e o frio marcavam o ar das passagens feitas de pedra, tijolos de pedra que logo começariam à se soltar, a corrente do Rio Relâmpago iria os desgastar em algum tempo.
     - Por ser uma cidade sob o rio, cheias sempre foram um problema, por isso temos túneis para servir de abrigo ou locomoção. Atualmente são muito pouco usados, e por isso é onde está a resistência ao governo de meu primo.- Disse o homem de cabelos platinados.
    O homem usava uma cota de malha de boa qualidade sob couro fervido, não tinha nenhum elmo sob a cabeça. Uma espada longa estava à anca direita, para que fosse sacada pela mão esquerda. Guiava o grupo pelo túnel, com a displicência da juventude.
     - Quem é você?- Questionou Gerald, o corte em sua testa havia deixado um lado de seu rosto em sangue, deveria ser lavado logo.
     - Sou o Príncipe Raeron Draegys, primo do Rei Daenos Draegys, que ao assumir o trono foi inicialmente um rei apenas incompetente. Depois de adoecer profundamente, ficou completamente louco. Ao invés de preparar ajuda para nossos irmãos asgaetinos, tem convocando um número absurdo de exércitos para defender Hyldren de uma ameaça longínqua...enquanto desguarnece outras cidades.- Respondeu Raeron, oque deixou Darkus surpreso. "Príncipe?"
     - Por que você estaria nos ajudando mesmo com as tropas de seu primo nos caçando pela cidade inteira?- Questionou Anya, caminhando à passos rápidos.
     - Está brincando? Por causa do tumulto que vocês estão criando já conseguirmos contrabandear diversas armas e até alguns soldados de Exaldrys. Sem contar uma boa quantidade de suprimentos, vocês distrairam toda a guarnição com uma mera garota demônio, o mínimo que eu posso fazer é ajudar vocês. Além de que, ouvi muitas histórias sobre um garoto com olhos vermelhos.-  
     Darkus ficou quieto, desviou o olhar. Sabia qual tipo de histórias eram, histórias que envolviam os acontecimentos em Passo Verde e Engarth. Por Passo Verde ele e Gerald eram culpados pela morte de um conde, mas por Engarth eram exaltados por terem tido o feito de matar um terrível dragão.
    " Não fora bem assim..." pensou o garoto. Não tinha certeza do que havia acontecido naquele dia na montanha, mas sabia que o dragão não havia realmente morrido. Algo mágico tinha ocorrido, mas Darkus não era um especialista em magia.
     - Pretendo reivindicar a coroa de Hyldren logo, Daenos não pode continuar destruindo nosso reino. Temos de lutar, Vhagar Draegys não ergueu nosso povo para o topo ficando escondido atrás de muralhas ao invés de liderar seus exércitos. Nova Asgaet é nosso reino irmão, seus reis possuem o mesmo sobrenome que o meu, deixá-los em um momento de dificuldade é vil. Os exércitos de nosso reino marcharão, não para proteger um covarde, mas sim para defender nossos irmãos e nosso povo.- Disse Raeron, com determinação.
    - Estamos indo para Aledrac, queremos tentar acabar com essa guerra lá. Talvez se a Última Cidadela prevalecer....ainda reste esperança e a moral dos exércitos monstrios despenque...- Falou Anya, animada com as palavras do príncipe.
    - Aledrac vai ser atacada? No momento não tenho como ajudar, Hyldren precisa de nós, e creio que a ajuda de nossa pátria possa ajudar à virar a mesa. Mas quem sabe nos encontremos? Caminhos diferentes podem levar ao mesmo objetivo. Darei um barco para vocês atravessarem pelo rio até a margem sul, lá poderão chegar em Nova Asgaet. - Foram suas palavras antes de desembocarem no fim do túnel, onde já havia luz. Estavam em frente à portões de ferro que davam uma saída fluvial.
    - É um bom negócio, podemos tentar algum pedido aos Cromwell, não temos condições de atravessar o mar para tratar com o Rei Loren, os exércitos de Westexys podem enviar um apoio bom.- Ponderou Gerald, enquanto o portão era aberto pelo príncipe.
     Encontraram com um pequeno cais que devia ficar engolido por água durante as épocas de cheias no Outono, mas que agora tinha alguns pequenos barcos com velas púrpuras. Um anão ajeitava o tecido e preparava o barco, esse anão era barbudo e usava um meio elmo grande demais para sua cabeça.
     - O resto é com vocês. Aemurd, o anão, irá levar vocês até o ponto final, e de lá vocês seguirão sozinhos o seu próprio caminho. Desejo boa sorte para vocês...e vistam os disfarce...- Raeron se curvou e voltou para dentro do túnel, a cota de malha tinindo.
      Colocaram roupas de religiosos, e Anya somou ao disfarce bandagens na face para fingir ter alguma doença de pele. Entraram no barco guiado pelo anão Aemurd, e em pouco tempo deslizavam pelas águas do Rio Relâmpago.
      Não fora realmente um caso perdido, assim esperava Darkus, pelo menos tinham a possibilidade de um futuro aliado na Cidade das Águas.
   

O Trono de Ossos - Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora