Fazia quatorze anos...Darkus se ergueu da cama da estalagem ainda bocejando, e então pensou nisso. O garoto acabara de completar quatorze dias de seu nome, quatorze anos desde que havia nascido em uma vila murada e sido acolhido por um membro da baixa nobreza em Nova Asgaet.
Quatorze anos...
Olhou para trás e viu o manto de linho branco jogado de qualquer jeito em cima do catre de palha em que estava dormindo. O quarto era pequeno e separado do de Gerald, que havia pedido por mais privacidade para os donos da estalagem. O quarto do menino também não tinha muita mobília, apenas um armário, seu catre e duas cadeiras.
Darkus andou pelo chão coberto por painéis de madeira, os pés ainda descalços, e abriu a janela de modo à sentir a brisa da manhã. Da estalagem, ele podia ver a rua abaixo, com comerciantes à vender frutas e legumes na calçada e carroças passando puxadas por cavalos. O castelo, o poderoso castelo, se erguia imponente em sua pedra fria que representava os corações dos homens que viviam lá, uma fortaleza impenetrável na visão de um menino que não conhecia a guerra.
O Passo Verde era bastante interessante, por ser uma parada obrigatória na estrada pelo território continental de Nova Asgaet, havia se desenvolvido economicamente para o comércio com os viajantes e tributos pela passagem.
Mas o menino não esquecera a natureza dos nobres naquele lugar, o encontro com o herdeiro de Greengrass ainda reverberava na sua mente. O barão em Vila Primavera não fazia isso, nunca havia oprimido alguém, nunca. Aqueles nobres serviam para proteger os habitantes e não bater neles como se fossem animais, Darkus não entendia isso.
Deu meia volta ainda com isso na cabeça, indo tirar o pijama para vestir algo mais indicado para passar o dia. Pegou uma túnica simples com as cores da Casa Springate, que havia trazido até lá. Amarrou na cintura com um pedaço de corda após vestir os calções brancos e os sapatos de couro desgastados. Antes de sair, decidiu voltar para pegar a adaga em meio às suas coisas, a prendeu embainhada no cinto e pensou "Nunca se sabe".
Abriu a porta do quarto e andou um pouco pelo corredor até as escadas que levavam até o andar de baixo, onde achou Gerald comendo bolinhos com sua cerveja. O garoto saldou com a cabeça e se sentou à frente do cavaleiro, que se alimentava com bastante voracidade.
A estalagem não recebia clientes além de Gerald e Darkus, já que todos aparentavam não querer contrariar o Lorde Greengrass. Aquilo o deixava bastante irritado, os donos do estabelecimento precisavam de dinheiro para pagar aquela estúpida dívida.
- Parabéns pelos quatorze..- Disse Gerald, em seu habitual tom rude. Darkus arqueou as sombracelhas com bastante surpresa, qualquer demonstração de sentimento vinda do homem era bastante rara.
- Obrigado..- Respondeu o menino.
- Acho que hoje vou sair para pegar um presente para você, o que acha? Em Engarth tentarei te dar algo melhor..- Falou para o garoto, dando a sombra de um sorriso.
A moça da estalagem deixou a bandeja à frente de Darkus, com um copo de suco com biscoitos de grãos. Comeu em total silêncio enquanto Gerald saía às suas costas.
" Acho que também vou fazer algo hoje..."
Pensou e deixou a bandeja de lado ao terminar de comer. A estalajadeira lavava os pratos quando Darkus soltou um pigarro.
- Sim?- Indagou a mulher, já com os cabelos começando à ficar brancos e rugas espreitando no rosto.
- Como é viver sobre o domínio dos Greengrass? É sempre assim tão ruim?- Perguntou Darkus com curiosidade. Desejava ter o poder de mudar isso, porém era apenas um garoto de nascimento duvidoso.
- É bastante ruim. O Lorde Greengrass é tão ruim quanto o filho, talvez um pouco pior porque tem o poder de erguer exércitos..- Disse a estalajadeira com um tom segredado, como se algum dos nobres pudesse os ouvir ali. - Se eu fosse o Rei Loren, não confiaria à esse homem o poder de reunir homens..-
- Mas vocês não podem fazer nada em relação à isso? Quer dizer...será que todo o povo não sente raiva disso?-
A mulher deu um sorriso triste, e nisso Darkus sentiu um assomo de raiva.
- O nascimento, Darkus, os nobres mandam por aqui. Infelizmente, se ele mandasse todo o povo pagar tributos exorbitantes, teríamos que obedecer...-
O menino ficou boquiaberto, ainda furioso, mas com as engrenagens de seu cérebro funcionando lentamente.
- Mas ainda sim podem lutar..caso vocês se juntem ainda podem lutar. Se todos pegassem em armas, os Greengrass podem cair, o rei pode os ouvir. Quero dizer, se um conde for ruim, o povo não vai querer lutar por um homem que detestam..e em época de guerra o Reino de Nova Asgaet precisaria do máximo de soldados possíveis.- A estalajadeira ergueu as sombracelhas, após algum momento abriu a boca para responder, mas logo a porta foi aberta por um soldado vestido de tabardo da Casa Greengrass e de cota de malha.
- À Darkus, o Conde Belford Greengrass, Senhor de Passo Verde e Protetor de Greengrass convida vossa presença à ruína do Templo de Rh'Lakka, para que ele próprio possa pedir à você desculpas pelos atos de seu filho. Queira me acompanhar...- Contou solenemente. O garoto se assustou e pensou pouco, talvez assim ele pudesse conversar com o Conde Greengrass sobre oque ele queria conscientizar.
Saíram da estalagem e caminharam pelas ruas com um pouco de pressa. O céu havia se fechado, ficado nublado e cinzento, parecendo que iria chover.
Distraído com o céu, o garoto sequer percebeu que já haviam entrado na mata, a abóboda verde ocultando parte de sua visão assim como o nervosismo, que não o deixava entender muito bem oque esperava por ele.
- É aqui...-
A voz do soldado o despertou, e Darkus se viu em uma clareira pequena, com restos de uma construção de pedra se erguendo sob a grama. Duas estátuas de um tigre feroz estavam postadas à entrada do "templo", destruídas e...
- Menino bastardo...finalmente chegou...- Chamou uma voz grave, e o menino virou a cabeça com tanta velocidade que seu pescoço doeu.
O Conde Belford era um homem alto, de porte forte e usuário de vestes ricas. Estranhamente, portava uma armadura de couro fervido por baixo de sua túnica amarela e de uma longa capa de seda verde. O cabelo era loiro e passava por pouco do pescoço, se unindo à barba bem aparada abaixo da orelha.
- Ah, Conde Greengrass...eu aceitei sua convocatória porque..- Foi interrompido pela voz forte do nobre, que sequer olhava para o menino, preferindo mirar o templo em seu lugar.
- Você fez uma séria violação ao questionar meu filho, e ainda por cima impediu-o de executar a justiça do condado. Meus conselheiros sugeriram cortar vossa língua, mas eu serei mais honrado...- Uma longa espada de duas mãos saíra da bainha com um agourento som de morte.
Darkus alarmado, olhou para trás e viu o soldado que havia o trazido até ali jogar sua própria espada para o menino. -...lhe darei uma chance de sobrevivência.- Completou o Conde Greengrass, se virando para o garoto e atacando com força total.
Darkus cambaleou para a esquerda e apenas por isso conseguiu escapar da espada que desceu próxima de seu rosto. O tempo que o conde demorou para se recuperar da falha foi o suficiente para que o menino conseguisse pegar a espada arremessada para ele e se posicionar.
A próxima investida do conde veio logo em seguida, o aço se unindo ao aço quando o garoto bloqueou mesmo com a diferença de pesos entre os combatentes, e sabendo dessa diferença Darkus separou sua lâmina e rolou para o lado.
Se ergueu e não previu o corte vertical que atingiu o espaço entre seu pescoço e seu ombro quando se levantou, o fio penetrou por sua roupa fina e fez um belo estrago sangrento em sua pele. Recuou alguns passos para trás e tentou um contra ataque, uma estocada mal planejada contra o peito do nobre.
O conde com a frieza de uma nevasca, desviou a rota da lâmina e bateu no queixo de Darkus com o guarda mão, fazendo o menino morder a própria língua e o gosto de ferro inundar a sua boca, sangue quente e recente. O golpe fizera Darkus cair no chão com a espada pendendo de lado, o nobre aproveitou disso para pisar com força no pulso do garoto, deixando ele indefeso e derrotado.
- Não é nada pessoal, bastardo, apenas não gosto que gente da sua laia fale daquele jeito com meu sangue..- Disse Belford, preparado para dar fim à vida do estúpido menino que tentara ver bondade em um homem como ele.
Enquanto falava, Darkus já havia, com esforço, conseguido tirar a adaga de dentro da bainha e enterrar o máximo que podia no pé que apertava seu pulso. A lâmina entrou repetidas vezes e novamente sangue inundou sob as mãos do menino, que agora aprendera à lutar por sua vida.
O homem o soltou e cambaleou para o chão, caído na terra assim como o menino bastardo que tentara humilhar.
- Acabe com ele, seu imprestável, acabe com esse imundo!- Berrou Belford Greengrass, a voz altiva feroz em sua raiva vermelha. O soldado correu para auxiliar seu senhor e Darkus virou o rosto, iria morrer, mas não tinha medo..pelo menos havia lutado...
E de repente, estava salvo...
O soldado que caminhava até Darkus com a adaga em mãos, caiu ao lado do menino ao receber um golpe furioso em suas costas pelo cavaleiro de Elizaen. O cavaleiro era Gerald de Elizaen, seus olhos vibrantes em raiva descarnada, por terem tido a audácia de trazer seu protegido para uma armadilha em meio às árvores.
- GREENGRASS!- Foi o grito de guerra furioso do homem quando a espada subiu em arco, de baixo para cima, contra as costas cobertas por uma cota de malha barata. A lâmina rasgara o homem de uma ponta à outra na diagonal, do pescoço até a cintura, e o deixado morrer em seu leito lamacento.
O Conde Greengrass abriu a boca para falar algo, mas Gerald não fez distinção entre soldado e lorde, apenas ergueu a espada novamente e decapitou Belford com um único golpe. A cabeça rolou e o corpo caiu imóvel imediatamente.
- Darkus, vamos embora, teremos que seguir por dentro da mata e abandonarmos nossos cavalos até chegarmos em alguma aldeia. Já peguei nossas posses, sua espada e todo o resto...- Gerald parecia nervoso, tremia ao erguer o menino pelo colarinho da túnica com sua força imensa.
- Mas..e os estalajadeiros?! Se descobrirem que fizemos isso...o que farão à eles?- Perguntou Darkus, imensamente preocupado e agoniado, mas mesmo assim seguiu o cavaleiro com a força que lhe era permitida.
- O que acontecerá conosco, deveria perguntar. Depois que saberem que matei um conde...- Resmungou Gerald, guiando um garoto desorientado por dentro da mata.
Definitivamente aquele havia sido seu pior aniversário...
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O Trono de Ossos - Livro Um
FantasyVestroya, que impedia a passagem dos monstros aos Reinos dos Homens, caiu. O reino outrora poderoso, caiu perante as criaturas das trevas que se banquetearam sob as ruínas da cidade-estado e seus cadáveres. Nova Asgaet, Hyldren e os Estados Pontífic...