Capítulo XXI - Pela primeira vez

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  O plano já estava formado.
 
    Os cavaleiros de Santigar iriam se reunir no Portão dos Vinhos, à nordeste de Aledrac, preparados e com a hoste logo atrás. Enquanto o acampamento de cerco dormia, os homens de Cromwell estacionados em Vau Thyr cairiam por sobre o ponto mais frágil das linhas sitiantes.
    Logo depois, toda a Cavalaria de Santigar liderada por Adelard desceria passando todos à fio de espada enquanto os arqueiros nas muralhas soltavam chuvas de setas e pedregulhos. Visariam queimar as armas de cerco e devastar o acampamento, forçando um fim de cerco e uma batalha campal em que a cavalaria teria vantagem absurda naquele terreno.
     Para isso a infantaria sairia pelo Portão Principal, com Gerald, oficiais do exército aledraco e uns líderes tribais vagnos no comando. O Rei da Montanha lideraria a vanguarda, não era alguém de ficar para trás.
     Os preparativos estavam sendo feitos e as esperanças foram renovadas, tinham uma chance, uma única chance de aquilo dar certo. O povo ainda não saía de casa, mas Darkus às vezes ouvia algumas conversas animadas às portas.

  O Duque de Lerna lançou mais um ataque, e Darkus pode ver de uma torre na sede de governo o porquê de tanto medo. Parecia que trovões de grande magnitude tinham surgido quando vários pedregulhos do tamanho de elefantes se chocaram contra as muralhas de Aledrac com um estrondo, o chão parecia estar ruindo. 
    Pedaços de algumas das pedras voaram para dentro, caindo à orla e destruindo o telhado de algumas casas. Duas rochas inteiras vieram para dentro e causaram a destruição de quase uma mansão inteira e também das ameias de uma torre de guarda.
    Uma troca de flechas se iniciou em seguida, e mais uma batalha sem resultados se iniciou. Nenhum aríete foi utilizado, mas uma escada de cerco foi danificada e uma das balistas aledracas ceifou a vida de um nobre dos monstros, pelo que os vigias diriam.
  
   O dia que se seguiu lhe mostrou porque tanta falta de esperança.
    - Entrem! Entrem para dentro! Não fiquem do lado de fora!- Gritou um dos vigias aledracos, e rapidamente Darkus entrou em seu quarto. Por via das dúvidas, o trancou também.
    - Que diabos?- Questionou o rapaz, quando viu o céu escurecer completamente, como se tivesse anoitecido do nada.
    Se aventurou à olhar pelas janelas guardadas por grades, e viu do que se tratava. Diversas gárgulas do tamanho de mastins voavam sob o céu da cidade, criaturas grotescas com peles cinzentas, chifres curtos, dentes projetados para fora da boca e corpos semelhantes aos de macacos, porém alados. As criaturas carregavam pedras de grande tamanho, além de sacos cheios de bolas de chumbo, explosivos e incendiários.
    Os estrondos foram ouvidos pelo rapaz, e cortinas de poeira se ergueram do chão e das construções. Pelo que diriam depois, havia sido o quarto bombardeio do tipo que Aledrac sofrera desde o início do cerco, o Duque de Lerna os realizava duas vezes por semana. Quando terminou, gárgulas haviam sido abatidas por arqueiros nas torres e altas construções, mas a desolação era palpável.
   Haveriam de se esforçar muito.

  Darkus ainda estava trancado em seu aposento, sentado sob sua cama, quando alguém bateu em sua porta. Viu o olho do homem pela fresta e ergueu uma sombracelha, se levantou para abrir para ele.
     - Darkus...deve saber que iremos dar ordem de ataque daqui há dois dias, quero que você se prepare.- Disse Gerald após entrar no aposento e olhar ao redor. Tinha um olhar cansado, havia assumido a responsabilidade de cuidar e proteger Aledrac com o rei preso.
    As palavras lhe foram como um tapa na face, um tapa que mais irrita do que machuca.
    - É isso? Vim até aqui com você e Anya para ser deixado de último plano? Depois de ter atravessado Monterygon, Hyldren, Radriel e Sallor para salvar essa merda de cidade, você só me avisa dos planos quando literalmente as tropas estão quase se arremetendo contra as linhas de cerco!- Quanto mais falava, mais raiva sentia. - E sim! Dunceon me contou o plano, eu soube do plano pela boca de um homem de armas de nosso exército de aleijados e mercenários ao invés da boca do homem que é meu rei e que acompanhei.-
    Gerald mudou sua expressão de preocupação para uma de espanto. Nunca Darkus havia ido com tanta rebeldia assim, seu esgar se transformou em dentes cerrados.
    - Você não é um conselheiro de guerra, não é um comandante mili...- Foi interrompido pelo bastardo.
    - Você me proclamou como seu herdeiro! E antes disso como o seu escudeiro, para o acompanhar por toda parte e o auxiliar. Viajei por metade do Continente com você.- Martelou novamente. Gerald parecia à beira de gritar, mas o garoto novamente tomou à frente.
     - Não sou mais um garotinho que você pode intimidar com gritos, Gerald, eu vi o mundo ao seu lado. Matei homens, os goblins nos arredores de Passo Verde foram o começo disso.-
     O homem suspirou fortemente e se sentou na cama do garoto, controlando a sua raiva. Após muitos segundos de um desconfortável e sufocante silêncio, Gerald abriu a boca.
     - Quando você se tornou um moleque tão atrevido? Céus, espero que não tenha sido comigo.- Ele deu uma pequena risada amarga, um tanto confusa. Isso fez Darkus se arrepender do que havia dito.
    - Foi com o tempo, não sei à partir de quando. Vila Primaveril está longe, o garoto assustado também, não sei se desde o dragão ou desde Sallor.- Murmurou, estava envergonhado.
    Gerald deu uma risada e olhou para o garoto com a sabedoria rústica que apenas ele poderia ter.
    - Acho que mais ou menos os dois. Você evoluiu e mudou durante esse caminho todo, você viu essa merda de mundo e mudou. Se não continuar à falar comigo assim, posso considerar que para a melhor.- O cavaleiro riu mais uma vez, e Darkus riu junto dele.
    Os dois se olharam, a ficha caiu. Poderiam estar mortos em poucos dias, aquela poderia ser sua última conversa levando em conta a loucura da batalha.
    - Você quer um motivo para sobreviver à essa carnificina, Darkus?- Perguntou Gerald de Elizaet, se erguendo da cama e rumando para a porta.
    - Você tem Anya para ajudar, mesmo se vencermos esse não vai ser o fim da guerra, e ela não quer realmente proteger Aledrac. Ela quer acabar com a carnificina, aquela garota deve ter visto muita morte de seu próprio povo, e na cabeça dela uma derrota dos monstros na Última Cidadela poderia acabar com isso.- Comentou Gerald quando o rapaz não respondeu.
     " Ela já deve ter percebido o contrário, mas não quer falar para que não pareça uma viagem perdida. Ainda há tropas invadindo Westexia, os Estados Pontíficies e mais tropas ainda não convocadas. A guerra não acabará aqui, e é por isso que você deve a apoiar."
      - Ela ainda vai ter você, você que é um comandante militar. Eu sou apenas um...- Darkus balbuciou, mas novamente o cavaleiro o interrompeu.
      - Você é o bastardo de Edmund que eu acolhi e enfiei na cabeça o máximo possível de tudo e um pouco, além do que você já sabia pelo Barão Springate. Eu posso morrer nessa luta, já estou velho, mas você ainda tem um caminho longo.-
      " Edmund morreu cedo, e você é a cara dele. Olho para você e vejo meu irmão de amizade, o homem que amei para além de qualquer laço de sangue, que morreu por mim." O rosto do cavaleiro não era visível, mas sua voz se tornava mais tênue. " Você é filho dele, trate de superar o seu velho. Supere aquele maldito fantasma."
     O homem abria a porta quando Darkus decidiu tomar a frente mais uma vez, mesmo que não o quisesse. Podia ser a última vez, não teria a chance de dizer de novo.
      - Você aceitou marchar até Aledrac para se livrar da memória de meu pai, não? Para se vingar dos monstros e talvez usar Anya como refém, mas acabou se afeiçoando por ela?- Perguntou.
    Gerald parou surpreso, primeiro ergueu a sombracelha e depois sacudiu a cabeça.
    - Sim, ao invés de encontrar uma troca para acabar com a guerra eu encontrei uma pessoa por quem me afeiçoei tanto quanto por você.-
    O homem finalmente saiu do quarto, em direção ao descanso que antecedia a preparação para a batalha.

  " Pela primeira vez...eu espero que você seja mágica" pensou Darkus, tomando Trono de Ossos à mão "Me ajude, abata o Duque de Lerna e nos deixe marchar com Gerald liderando".
    Virou a espada e viu seu rosto como reflexo no material escurecido, nem aço nem ferro, parecia forjado de escuridão refinada.
     Aquilo poderia ser uma resposta que não compreendeu.
    

O Trono de Ossos - Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora