Capítulo VII - Sob rocha e fogo

67 9 11
                                    

      A besta ergueu sua grande cabeça, quase do tamanho do corpo do menino inteiro. Suas escamas eram vermelhas e brilhantes como fogo, seus chifres dourados e curvados para cima como a coroa de um rei. As asas eram imponentes capas protegendo as costas da magnífica criatura, cujo rabo e patas estavam pousados firmemente no chão de pedra.

     Darkus poderia ter deixado a espada negra cair, mas conseguiu se conter na presença da magnífica criatura. O dragão vermelho abriu os olhos e encarou o menino com seus olhos laranjas que nem brasas, vivos como o inferno mais quente, agora pousados sobre o jovem bastardo.
     - Finalmente chegou em meu salão, filhote de humano, e vejo que foi atraído pela espada da morte..- Falou o dragão, com sua voz altiva e grave, um trovão ribombante que parecia ecoar pelas paredes mesmo tempos depois de proferido.
     - Espada da morte? Então isso é...- Começou Darkus, mas não terminou. A criatura compreendeu, e assentiu com a imensa cabeça, e assim fez-se silêncio total naquele lugar magnífico.
      A câmara era colossal, muito mais que o suficiente para abrigar o grande dragão que ali residia. Sobretudo pedra, mas haviam marcas de que um salão arcaico existira ali, como redutos de pilares de mármore com figuras de criaturas aladas e reptilianas, rampantes e ameaçadoras.
      Seguravam um teto que já não mais existia, embora redutos de uma abóbada sobrassem pelo chão pedregoso, chão esse coberto por inúmeras riquezas que enchiam os olhos do menino pseudo-plebeu.
      Ora, era um fato que aquilo era o equivalente ao tesouro de um rei, talvez até mais do que um monarca merecia. O olhar de Darkus reluziu ao percorrer por tudo aquilo, ouro e prata como jamais vira, duas montanhas altas como os muros de um castelo, permeadas de metais e pedras preciosa, além de pedaços de mármore e armas antigas.
    Moedas, espadas, barras, ídolos e estátuas, o dourado em sua forma mais áurea, mais grandiosa e humana. A cobiça surgiria sob a face de qualquer homem que olhasse para as maravilhas da câmara.
   Mas não era oque Darkus pensava quando encarou toda aquela opulência, o desejo de qualquer homem com coroa na cabeça ou arado nas mãos. Era puro em relação ao pecado da ganância, ignorante à busca pela riqueza eterna e sem apreciação algum para com o vil metal.
   - Uma visão impressionante, não? Pena que não me serve, todo esse ouro...- Disse o dragão com sua voz potente, potente como as labaredas que era capaz de soltar segundo as lendas. - Darkus, garoto de origem desconhecida, criado por barão fronteiriço em uma vila importante, o escudo entre o Reino da Nova Asgaet e o Reino dos Monstros....
     " Ora, apesar de não sair dessa humilde caverna, não sou um ser ignorante aos problemas do mundo.." comentou a besta ao ver Darkus aparentar estar confuso.
    " Pouco disso foi o ouro dado por vagnos, vestroyanos e outros povos para que eu os deixasse em paz. Grande parte já estava aqui antes dos vestroyanos, vagnos e à mim, é ouro de algum povo extinto há séculos...daria toda essa riqueza para saber como era sua cultura."
     - Você não viveu mil anos como os outros dragões? Assim você poderia ter alguma ideia quanto à isso.- Tentou opinar, o menino de cabelos negros, fascinado pela imponência da magnífica criatura.
    - Tenho pouco mais de cem anos, filhote de humano, sou um dragão extremamente jovem. Meu pai foi o dragão que habitou na montanha onde hoje está erguida a cidade de Téris, a maior criatura que este mundo já viu, e uma das criaturas mais velhas do mundo. Morreu com seus mil e novecentos anos, mas ainda uma fera indomável e poderosa, sua magia ultrapassava os sonhos de qualquer mago da atualidade.- Disse o dragão com sabedoria, não desprezando Darkus, mas sim o ensinando com a paciência de um bom mestre.
     - Magia....então ela realmente existe?- O menino à cada palavra ganhava mais respeito pela besta grandiosa, o monstro que deveria ter medo mas agora acolhia como um possível amigo.
    - Ainda possui dúvidas quanto à magia, pequeno companheiro?! Acabou de conhecer o ser mais mágico que você guarda esperanças de ver. Você mesmo possui magia em si, seus olhos vermelhos não significam azar ou maldição....significam magia, são o sangue do mago! O sangue divino que corre em suas veias! Não sei como chegou à um pobre bastardo, mas...é um fato que podemos esperar grandes feitos de si.- Explicou com um tom de voz visivelmente interessado, era certo de que seria um dos que mais esperava feitos daquele filhote de humano.
    " E claro que com essa lâmina que porta em suas mãos...."
    - O que tem essa espada? Achei ela próximo à queda d' água que dá acesso à esse lugar, ela parecia estar me atirando...e eu não sei o porquê...- Começou à explicar, mas o dragão o interrompeu com uma risada retumbante, que ecoou pelas paredes da câmara.
    - Isso é a lâmina da morte, forjada em Trigendolf cem anos antes de vosso nascimento. Um poder imenso, geralmente escolhe um novo mestre à quem serve depois que o anterior morre, e essa espada tem muitas ligações com a morte. É a única espada que eu conheça que a deseja, ela quer a morte, quer deleitar-se com o quente líquido que corre pelas veias dos homens. Ela te escolheu, Darkus, só resta você aceitar...e domá-la.-
     Darkus ficou surpreso, e assustado também, segurava algo fora de sua compressão e temia isso. Olhou para a lâmina negra ligada ao cabo que segurava, um fugaz reflexo dos olhos vermelhos do menino amaldiçoado percorreram o espelho negro. A aura emitia o desconhecido, a má energia era palpável e causava mal estar ao pobre garoto.
    - É tão ruim...é quase a mesma sensação de ter matado alguém...eu não sei se quero portar essa coisa..- Contou o menino, incomodado com tudo aquilo, era quase como se...
    - Como se estivesse carregando o peso de todas as mortes que essa lâmina causou. Foram várias ao longo desses mais de cem anos de existência, já passou das mãos de Erlokyn de Lerna e Anactuk II dos Darlos, homens que deixaram um rastro de sangue na história. Você já foi escolhido por essa espada, use-a para os objetivos que acredita e domine seu poder, e o nome dela será importante para vós....-
    " Trono de Ossos..."
     As palavras arrepiaram os pelos da nuca de Darkus, soando como um mal agouro. Suspirou e disse à si mesmo que deveria aprender à controlar a fera terrível em suas mãos.
    - Vou fazer o meu melhor, senhor dragão, me esforçarei para transformar esse objeto de morte em algo que trata justiça.-  Aceitou com determinação, apertando o cabo com a mão já suada.   
     A espada não pesava em sua mão, era como se fosse perfeita para si, servia-lhe como parte de seu corpo, como se estivesse realmente destinado à usar uma arma de destruição como aquela.
   O dragão pareceu querer sorrir, mas então desviou-se para o teto. Darkus acompanhou seu olhar, mas foi surpreendido quando rapidamente a enorme cabeça escamosa se virara para o garoto ali em baixo, parecia ter sentido algo que o menino não compreendia.
   - Ouça-me, Darkus, logo seu amigo vira até aqui com a tola intenção de me assassinar. Não pretendo permanecer muito tempo em Engarth, irei deixá-lo com esses tesouros e procurar novos horizontes. Passei tantos anos aqui apenas para guardar essa espada e impedir que alguém mal intencionado à tomasse, mas agora vejo que ela tem alguém digno de sua grandiosidade. Você, menino, carrega o sangue antigo!-  Falou o dragão em uma voz retumbante, não admitindo contestações, apesar de que o garoto foi teimoso e confuso o suficiente para contradizer aquilo.
  - O Gerald não faria isso, ele é uma pessoa boa, você pode convencer ele à não tentar fazer algo burro...- Foi interrompido por uma chicoteada de cauda violenta no chão, que gelou o jovem da cabeça aos pés.
   - Não se preocupe, Darkus! Irei poupar seu amigo, apesar de toda a tolice que ele carrega, irei deixá-lo vivo pois você é alguém com quem simpatizei. Deixarei esse castelo e esse tesouro para ele e você, apesar de eu achar que o destino lhe reserva mais que uma pilha de ouro e torres frias.- Disse o enorme dragão. - Não se esqueça, meu nome é Ternorum, lembre-se do Rei de Engarth! Um dia saberá porque Gerald de Elizaen foi atrás de mim!
   Ouvira passos ecoando pelos corredores, passos que Darkus sabia pertencerem de Gerald de Elizaen. O homem viera lhe salvar após vê-lo sumir, mas saber que tudo aquilo acabaria sem sangue lhe deixava mais tranquilo. Se ajoelhou no chão de pedra com as pernas rígidas pelo tempo que passara de pé, passando à esperar a hora em que o cavaleiro chegasse.
   Não demorou muito, tão logo quanto o amanhecer, Gerald de Elizaen irrompeu pelas portas acessadas pela cachoeira, água escorria-lhe pelas vestes e cabelos.
   O homem não dirigiu palavra à Darkus, mesmo com sua expressão demostrando imensa surpresa ao descobrir o garoto ajoelhado de frente para a imensa besta que cobria o salão.  
   Comparando o homem alto com o dragão, finalmente o menino conseguiu fazer uma medida básica do tamanho da criatura, com uma estimativa de vinte metros de comprimento e dez metros de envergadura nas asas colossais, apoiadas no chão atulhado de ouro como pernas através das pontas superiores.
   - Dragão! Irei tirá-lo desse castelo!- Berrou Gerald, espada erguida nas duas mãos e determinação em seus olhos no cenho franzido. Correu quase que estupidamente contra a besta, mas o dragão nada fez, permitindo que fosse atingido com um golpe de lâmina. A espada rachou como uma raiz se estendendo pela superfície cinzenta, separando aquilo que havia sido resistente em uma fragmentação inútil, as dezenas de cacos saltaram pelo ar e chão.
     Ternorum urrou, liberando labaredas pela boca, atingindo o alto sem encostar no teto abobadado pela coroa de estalactites. Morcegos alçaram vôo com o rugido monstruoso do dragão, que fez a montanha estremecer por completo, tremendo como seria feito por um abalo sísmico.
     - Gerald, não faça isso!- Teve de berrar para fazer ser ouvido em meio ao feroz grito de guerra da besta arcana, mas mesmo assim Gerald pareceu não se importar, apenas tomou para si uma das lanças do tesouro e correu contra o dragão. A cauda do dragão circundou a criatura como uma serpente e chicoteou o cavaleiro com sua ponta, atingindo seu peito e o fazendo voar metros longe. Darkus não pôde fazer nada, à não ser observar toda a confusão.
      O dragão parou de rugir e ergueu as asas do chão, se apoiando sob as patas traseiras. Virou sua grande cabeça para Darkus, a expressão penetrante em sua íris cor de fogo.
     - Darkus, o futuro o espera!- Disse em um tom retumbante, e o fogo o consumiu. As chamas cobriram o dragão por interior, engolindo a criatura da ponta da cauda ao focinho. Gerald e Darkus apenas observaram sem entender nada, mas maravilhados com aquela demonstração de magia.
    A silhueta de fogo permaneceu mesmo que por segundos, até se dissipar junto do dragão, aparentemente fugido para longe dali.
    - Você achou essa espada?- Perguntou Gerald casualmente após um longo silêncio angustiante. Tinha sangue escorrendo por sua testa e lábio, mas parecia não estar com nenhum ferimento sério.
    - Sim, encontrei perto daquela cachoeira na entrada.- Respondeu um pouco abalado, sem muita noção do lugar.
   - Então é sua. Creio que agora finalmente arranjamos uma casa, ou pelo menos eu achei o castelo que tanto quis, se quiser pode retornar para Vila Primaveril, acho que já fiz exigências demais para você...- A voz de Gerald saiu um pouco triste, não parecia querer ser alguém solitário novamente.
    Darkus mordeu os lábios, apesar de tantos traumas e feridas ocorridas naqueles dois meses de viagem, Gerald havia se tornado o mais próximo que tivera de um pai, pois mesmo que o barão fosse um bom homem, o garoto não era realmente tratado como um membro da família.
    - Por que eu não ficaria com você, Gerald? Vamos, acho que você vai ter que colocar o castelo em uma forma habitável novamente...e eu vou ter que ajudar nisso, suponho..- Falou, seguindo para a saída daquela câmara, ainda carregando Trono de Ossos na mão direita.
     Ao olhar por cima do ombro, pôde ver Gerald sorrir.

O Trono de Ossos - Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora