Capítulo VIII - A Princesa

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   Dois anos haviam se passado, Darkus agora atravessava as falésias rumo ao pequeno porto na vila que crescera aos arredores da montanha de Engarth. O barco era humilde, estreito e longo com uma vela triangular, cuja corda era firmemente controlada pelo menino. O vento estava forte naquele dia e poderia ser traiçoeiro, mas Darkus havia navegado o suficiente nos últimos anos para saber controlar o navio sem fazê-lo ir contra as rochas.

    Prosseguiram próximos da costa, eram apenas cinco tripulantes que viajaram um pouco para fazer a pesca do dia, e felizmente havia sido farta. Os peixes já não se debatiam dentro das redes de corda trançada, o garoto estimou que deviam ser umas dezenas. Semicerrou os olhos quando a luz do sol bateu contra seu rosto, olhos esses que tinham uma íris vermelha.
     Ao se aproximarem do ancoradouro de madeira, Darkus saltou junto de seus companheiros e ajudou à amarrar o barco de pesca. Enquanto o peixe era descarregado, o jovem correu acenando para todos os seus conhecidos naquela aldeia. Era sua casa, como Vila Primaveril havia sido antigamente, Engarth e sua aldeia se tornaram seu lar.
     O Reino de Engarth crescera muito ao longo desses dois anos, Gerald havia usado o ouro do dragão para contratar mercenários e os usar para conquistar as terras vagnas. Apesar disso, diplomacia também fora usada, Gerald ganhou apoio de algumas tribos que o auxiliaram na conquista das rivais.  
    Logo, o Reino de Engarth já estava em processo de expansão e talvez em dez anos se tornaria uma nação consolidada naque região. Darkus havia sido nomeado como herdeiro de Gerald até que o mesmo tivesse filhos, oque deveria ser feito rápido antes que o rei ficasse velho demais. A maioria dos vagnos tinham acolhido bem um unificador, principalmente por ele ser o homem que expulsara e supostamente matara o dragão de Engarth, assim dando segurança à todos ali.
    Darkus não tinha certeza se um dia Gerald pretendia revelar a verdade, de que ele apanhara do dragão e a besta fugiu dele. O garoto ainda não esquecera desse dia, a memória das palavras da criatura ainda ecoavam em sua mente. Desde então andara com Trono de Ossos sempre presa em uma bainha, a espada era seu maior tesouro e sua maior maldição, pois ela significava que o jovem era portador de uma relíquia terrível e que maculara a história em sangue de homens.
   " Mas é um mal necessário, um mal necessário que eu acabei tendo que carregar ao pegar essa coisa na cachoeira." pensou enquanto caminhava pelo vilarejo. Foi tirado de seus pensamentos ao esbarrar com força em alguém que usava um manto castanho e puído, feito com algum tecido grosseiro.
   Caiu com o joelho esquerdo na terra, mas conseguiu aparar a queda com a mão. Se ergueu depois do susto e olhou para a figura atrapalhada que tentava se erguer.
   -Está machuc....?- Começou à falar, mas viu que com a queda, o capuz da figura havia caído e revelado um rosto totalmente diferente do que Darkus conhecia até então. A pele era vermelha, realmente vermelha, e não como se fosse causado por uma queimadura ou alergia. Os olhos eram de um tom dourado que prendia a atenção do jovem, e o cabelo negro caia ao redor das orelhas pontudas e dos chifres da cor da pele que se erguiam acima da testa. Era um demônio, um demônio que parecia feminino.
   Darkus estava prestes à gritar, mas a menina demônio rapidamente segurou o seu braço com firmeza e o puxou para a parte de trás de uma casa. O aperto era forte e os dedos comprimiam a pele do garoto, e a força da jovem era surpreendente ao pressioná-lo contra a parede.
- Eu preciso de ajuda, por favor, não grite. Eu quero apenas falar com o seu rei, é algo urgente!- A garota tinha uma voz ansiosa, como alguém tímido se expressando.
   - Eu...não sei. Você é um demônio, o que um demônio está fazendo aqui tão longe de suas terras?! Veio destruir essa vila?!- Seu rosto se torceu de raiva, os demônios eram os principais monstros. Eram os mais inteligentes e por isso os dominantes, formavam a elite dentro de seu reino.
    Os monstros viviam ao Sul, divididos dos humanos pelas Montanhas da Noite, uma imensa cordilheira que percorria do leste ao oeste. Uma das únicas passagens para cada lado do Continente, o chamado Reino de Vestroya, caiu perante os monstros e desde então batalhas e invasões eram comuns na região. Darkus já havia presenciado duas batalhas entre humanos e monstros em Vila Primaveril, combates cruéis que sempre deixavam o exército asgaetino quase que totalmente derrotado.
    - Calma, eu juro que eu não faria isso...só me dê uma chance de explicar...- A menina perdeu toda a postura decisiva, e seus joelhos cederam, a demônio caiu ajoelhada e se pôs em lágrimas, deixando Darkus assustado.
  " Eu vim até aqui para ajudar vocês! Eu não posso deixar que Aledrac seja destruída!" as lágrimas rolavam pelo rosto vermelho, as mãos da menina se agarraram às pernas do jovem à sua frente.
  - Aledrac? O que é isso?- Perguntou curioso, não fazia ideia do que era Aledrac e sentia que aquela menina não podia ser má pessoa.
  - Aledrac é chamada de A Última Cidadela, é o último reino humano no Sul, o único que resistiu aos ataques dos monstros na região. Mesmo com mais de mil anos de ataques, Aledrac continua de pé...mas...isso pode acabar.- A menina apertou as pernas de Darkus com maior força. - Os monstros, cujo meu pai é rei, estão planejando um ataque em massa contra o Reino de Aledrac, que irá destruir tudo! Por isso eu vim aqui, para pedir exércitos, porque...eu não quero que isso aconteça!-
    Darkus segurou as mãos da jovem demônio com leveza e a fez soltar suas pernas. Depois a ajudou à se levantar do chão e a encarou com uma expressão séria, o menino agora era homem e não deixaria de ajudar alguém que precisasse, mesmo que fosse um demônio.
   - Vista o capuz, coloque o lenço no rosto. Vou te levar para conversar com o rei, assim poderemos saber melhor do que você está falando.- Disse Darkus com firmeza, e a menina sussurrou um agradecimento. Os dois prosseguiram para fora do local onde estavam e receberam novamente a luz total do sol quando retornaram para a rua.
   A dupla foi lado à lado, a menina demônio próxima do jovem ao ponto em que os braços dos dois quase se tocavam. Iniciaram a subida pelos degraus de pedra que havia sido escavados na rocha há séculos atrás, um pouco reformados pelo domínio de Gerald.
   - Qual é o seu nome?- Perguntou timidamente a garota, o rosto oculto pelas sombras do capuz e do lenço que cobria a boca. Era alguns centímetros menor do que Darkus, mas o jovem se lembrava na força que ela demonstrara ao agarrá-lo.
   - Sou Darkus, o Bastardo de Primavera. E você? Presumo que tenha um nome, afinal você disse algo sobre ser filha de um rei...-
  - Me chamou Aranya...Aranya de Tregon. Sou filha do Rei dos Monstros, Raegard de Tregon.- Respondeu Aranya, com os olhos dourados mirados para baixo.
  - Ah, então você é uma princesa? A princesa dos monstros?- Ergueu a sombracelha, surpreso com aquele fato. Era perigoso para a menina caso descobrissem que ela estava ali, poderia ser usada facilmente como refém.
   Passaram pelos guardas facilmente, pois eles provavelmente acreditaram que Aranya era apenas um companheiro esfarrapado do herdeiro  de seu senhor. Eram ex-mercenários que encontraram em Engarth um lugar próspero para se viver, se mudando definitivamente para aquele lugar.
   Darkus atravessou os salões ao lado da menina demônio, que pelo visto não parecia surpresa com toda a elegância daquele castelo, ao contrário do jovem que assim que chegara ficou maravilhado com aquela glória. Passaram por portas e lances de escada, por pontes cobertas e corredores longos, para enfim chegar no escritório de Gerald de Elizaen.
  - Gerald, tenho alguém que precisa falar com você....- Falou antes de entrar, e recebeu um resmungo cansado como resposta, oque significava que seria bem vindo. Empurrou a porta e entrou acompanhado de Aranya, que parecia ansiosa para se aproximar perante o Rei de Engarth.
   O curioso, era que Gerald não parecia nada com um rei. Sua coroa se encontrava pousada sob a mesa de trabalho à sua frente, e era de algum metal menor e com poucos adornos. As roupas do monarca também não eram grandes coisas, sendo apenas pouco melhores do que as de qualquer plebeu. Assim era Gerald de Elizaen, mas pelo menos sua barba se encontrava mais controlada, e consequentemente menos hisurta. 
   - Fale, Darkus, acho que deve ser importante para você trazer alguém escondido dos pés à cabeça com um manto.- Mandou em um tom pouco amigável, a voz controlada mas ainda sim elevada, era assim como um rei deveria falar.
   - Meio que...eu preciso que você não surte.- Começou com temor, mas logo levantou o capuz de Aranya, e a menina quase gritou de tanta surpresa. Darkus pôde ver o homem se erguer da cadeira, o olhar atemorizado e a boca aberta em um esgar. O jovem se adiantou e colocou-se na frente da garota demônio.
  " Gerald, ela não vai fazer mal algum, sei que não gosta de monstros...mas...eu acho que devo confiar nela. Ela precisa de ajuda para ir à Aledrac, ela quer salvar o lugar da destruição, e para isso ela precisa de exércitos.."
    Gerald deu a volta na mesa, seus pés pisando o chão de madeira enquanto caminhava em direção aos dois, a face sombria. Puxou Darkus para o lado, e o jovem só pôde assistir quando o rei a encarou com seu olhar penetrante.
    - Por que um monstro estaria tentando salvar Aledrac? Quando sua própria raça está tentando conquistar aquela cidade?- Seu questionamento não pegou o jovem de surpresa, mas o fez notar que ele mesmo deveria ter feito essa pergunta tão crucial.
    As lágrimas pareciam querer rolar novamente pelo rosto de Aranya e caírem como uma torrente. Ela detestava chorar, Darkus havia notado, mas ela não conseguia se recompôr o suficiente para impedir que a voz saísse embargada.
    - Aledrac é a Última Cidadela, e sua queda vai gerar mais atrito entre os humanos e os monstros. Eu quero paz entre as raças, eu não quero mais mortes, já cansei de ouvir sobre batalhas....já vi combates demais...eu só quero.....- Fungou e caiu no choro de vez, se debulhando em lágrimas. - Meu irmão morreu nessa guerra, morreu lutando nesse combate sem sentido entre dois povos. Eu não quero mais mortos, e a derrota de meu povo...o povo que meu pai governa...pode significar que com o tempo humanos e monstros podem conviver em harmonia!
    O homem deu meia volta e andou em direção à sua escrivaninha, onde pegou uma adaga que estava pousada em cima da superfície de madeira branca. Girou-a entre os dedos por alguns segundos, silencioso em sua análise sobre os fatos. Os olhos percorriam livremente a faca, que andava em sua mão como um inseto de aço frio, a luz que entrava traiçoeira pela janela semiaberta se refletia levemente na lâmina cinzenta.
    O aposento era quadrado, não muito grande mas digno de um nobre. Haviam duas tapeçarias que tinham sido retiradas dos andares mais baixos e sido colocadas nas paredes do escritório. A primeira ficava atrás de Gerald e ela longa, retratando uma cena de caça em que cinco cavaleiros com o emblema dos Cromwell iam atrás de um javali, cores escurecidas e faces idênticas.
    A segunda tapeçaria estava localizada na parede onde se localizava a porta, a mesma estava na esquerda de Darkus e de Aranya, e a pintura mostrava um torneio ocorrido com uma variedade de nobres, com duas figuras combatendo usando lanças e escudos. Um dos escudos carregava o brasão dos Cromwell, o outro carregava o brasão dos Draegys, a dinastia que governa Hyldren e também Nova Asgaet. Era estranho um embate desses, já que os Cromwell foram os governantes de Vestroya e atualmente são os senhores do Ducado de Cromwell.
   - Você é princesa?-
   - Sou...filha do Rei dos Monstros, me perdoe...- Gaguejou em algumas palavras, digna de pena por sua aparência destruída. Aranya chorara ao contar seu sonho pela paz, Darkus ficaria furioso se Gerald se recusasse à ajudá-la depois disso.
   - Não peça desculpas por isso, Princesa de Tregon, sei como é não ter culpa por ter nascido em uma família degenerada. Embora meus pais não sejam demônios que governam um reino sombrio, eu...tenho um pouco de experiência com famílias desestruturadas.- O homem respondeu em um tom taciturno, e sem olhar nos olhos de Aranya.
   - Está dizendo...que vai ajudar?- O rosto da menina demônio se iluminou de felicidade, e Darkus não pôde evitar de sorrir também. Gerald percebeu e pareceu que iria começar à gritar, mas deu um sorriso também, mesmo com anos o jovem ainda não aprendera o quanto aquele homem poderia esconder por baixo de sua carranca.
     - Vou ajudar, serão dois mil homens reunidos e enviados em direção à Aledrac. Irão naturalmente atravessar por Sallor, que é a única passagem terrestre que nos resta. No entanto, isso nem de longe seria páreo para os números dos monstros, foram noventa mil monstros aqueles que deram fim ao reinado dos Cromwell. Precisamos de apoio de outras Coroas, de todos os reinos que estiverem dispostos à ajudar.- Olhou para Darkus, oque o assustou, o homem estava pedindo a opinião do garoto sobre esse assunto.
    - Bem...Hyldren está fora da guerra desde a queda de Vestroya, algo que foi influenciado pela chegada de um rei louco ao poder e que fechou a capital completamente, quebrando a cidade por causa da falta do comércio. Os Estados Pontífices estão em guerra santa contra os darlos...e não podemos esperar ajuda dos valquírios. A primeira parada que podemos fazer é...Monterygon, onde estão os Cavaleiros de Santigar e que seriam de grande ajuda.- Decidiu e olhou para o homem, que pareceu um pouco desgostoso com a sugestão.
   - Está bem, vamos para Monterygon assim que as tropas forem enviadas para Sallor com ordens de esperar que os últimos reforços cheguem por lá. Depois de falar com os Cavaleiros de Santigar, iremos decidir qual será a próxima parada, e creio que será Ardenccia ou Hyldren. Garota, qual é o seu nome?- O homem perguntou por fim à garota, que estivera em silêncio até o momento.
    A menina sorriu, mostrando caninos um pouco mais afiados que os de um ser humano.
  - Sou Aranya de Tregon, mas podem me chamar de Anya!- Suas palavras fizeram Darkus decidir que gostava da menina demônio.
 

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