Capítulo XVII - O Demônio da Travessia

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    As montanhas começaram à aparecer pouco depois de levantarem acampamento, coisas imensas de pedra escura. Cinza-fumaça ou preto como carvão, e se tornaram mais numerosas conforme avançavam.

   O terreno também ficava mais e mais difícil, a estrada de terra batida também se transformava em uma trilha de terra. O espaço entre as montanhas ficava mais e mais estreito, e logo estavam no meio da maior cordilheira de montanhas de Continente e com certeza do mundo também.
     Ali o céu era sempre cinzento, e tudo oque conheciam era rochas e pedregulhos. Encontravam vestígios da passagem do exército maior, algumas marcas de passo que já sumiam e também pedras tiradas do meio do caminho. Eles também haviam deixado marcações propositais, como inscrições nas encostas.
     Acampavam no vale que se estreitava mais à cada metro percorrido, e ficavam ao redor de diversas fogueiras. Alguns soldados eram designados para ficar de vigia enquanto o resto do pessoal descansava.
    Em um desses momentos, Darkus estava ceando carneiro salgado e duro na companhia de Gerald, do manco Dunceon, do antigo sacerdote Philip e do bêbado Brandon. Anya naturalmente estava em sua tenda separada, e as duas guardas do garoto ceavam do lado de fora das portas de tecido.
     - Eu costumava ser como você, garoto, um verdadeiro aventureiro. Até que me mandaram para a merda da cavalaria e um monstro esmagou o meu joelho com uma maça.- O velho apontava para Darkus enquanto falava, e seus amigos riram. 
    Dunceon era um velho oficial de ascendência nobre menor, descendia dos Draegys e dizia ser um primo bem distante do Rei Loren. Aquilo não lhe dera um bom cargo do exército, e parecia feder sempre à fumaça. Seus cabelos já eram brancos e sua barba hisurta. Tinha de usar uma muleta para andar com a perna inútil.
     - Que pena, Dunceon, sei que adoraria esmagar sua outra perna em campo de batalha.- Troçou o mais jovem entre eles, Philip de Alendor.
     Havia sido um sacerdote de Auren há alguns anos atrás, antes de quase ser castrado por estuprar uma sacerdotisa. Por fim escapou após um julgamento por combate e entrou para o exército. Era conhecido como um homem cruel, mas pelo menos era bem mais útil que Dunceon e sua perna.
     Brandon ficava quieto, afinal acabara de dormir com a bebida que tanto despejou garganta adentro. Era um homem careca com uma suja barba ruiva, manchada por cerveja. Era um bom espadachim, lutara com Cromwell na tentativa fracassada de assaltar Fortaleza Aredhel.
  
   As risadas morriam quanto mais penetravam na Ponte de Sallor. Tentaram beber água de um rio cheio que cortava o caminho, e depois atravessaram o leito com a água até a cintura. Foi difícil levar os suprimentos todos, as carroças tiveram que tomar um caminho alternativo.
    Perderam, das doze carroças que levavam, cinco das cheias de suprimentos.
     Provou-se também que a água aparentemente fresca era nociva, e logo uma doença se abateu sob a coluna. Suas fezes saíam ininterruptamente e causavam dor terrível, e febre, vômitos e alucinações acompanharam como sintomas. Os marcados pela doença foram deixados na retaguarda, mas mesmo assim ela se espalhou com dedos mórbidos.    
      Também perdiam homens pela retaguarda, aqueles que eram fracos demais para seguir à frente da coluna e tinham que ficar para trás. Nunca voltavam na hora de acampar, e na hora da ceia faziam a contagem.
    No primeiro dia foram três, no segundo foram sete, no terceiro foram doze e por fim no sexto já eram quarenta e um. Até que a peste parasse de matar, com o uso de água potável, cataplasmas de lama e bebidas quentes, cento e oitenta e seis estavam caídos em uma semana.
     Darkus não havia sido tocado, mas Brandon O Bêbado sim. Havia sobrevivido, mas parecia eternamente pálido e perturbado, como se tivesse fugido por pouco dos braços da morte.
     - Lorde Darkus, as baixas pela Morte d'Água diminuíram drasticamente, ontem foram cinco mortos e hoje apenas um. É uma melhora, meu senhor.- Disse uma das suas guardas, se reportando à ele.
     - Nossa única preocupação não é a doença, temos também que cuidar do resto da travessia. Nos atrasamos muito, é possível que os cavaleiros já até tenham chegado em Aledrac.- Disse Darkus, estava ceando sozinho em sua tenda um pedaço de carne salgada, pão duro e um odre de vinho.
     - Milorde, Sua Graça diz que chegaremos em um penhasco em poucas horas depois de prosseguimos, batedores confirmam.- A guarda usava uma armadura cinzenta e meio enferrujada, com um elmo sob a cabeça, com uma mera fenda estreita para a visão.
     - E lá se vão mais algumas carroças...- Suspirou, esperava que Gerald soubesse os guiar. - Qual é o vosso nome, minha senhora?-
    Ela devia ter ficado surpresa, pois paralisou. Darkus deu um sorriso, a voz dela era de uma moça e ela às vezes tirava o elmo quando conversava com sua companheira atrás da coluna, achando que ninguém estava vendo. Não fora muito difícil descobrir que haviam duas mulheres disfarçadas de homens para ir à guerra.
     - Meu senhor...meu nome é Aella, sou Aella de Iacester, meu pai é o Barão de Iacester, sou filha natural dele. Caso não conheças, Iacester é uma vila murada há dois dias de viagem ao sul de Baltair.- Sua voz ecoava por dentro do elmo. - Vi as Terras de meu pai serem saqueadas e meus irmãos morreram para ajudar Drey Springate. Levei os velhos, as mulheres, as crianças e os aleijados para Radriel, pedindo ajuda.-
     O garoto se surpreendeu, e terminou de comer o pão que já deixava o maxilar dolorido para mastigar, teve que dar um bom gole no vinho para colocar para dentro.
      - E por qual motivo decidiu levar uma amiga para se disfarçarem entre os homens de Cromwell? Suponho que não para me espionar para Aeron Cromwell e depois me apunhalar, não?- Darkus encarava a situação com diversão.
    - Não, meu lorde, eu queria...eu queria lutar na guerra. Vi meus irmãos e o senhor meu pai, homens, morrerem para dar esperança ao reino que servem. Quero fazer o mesmo. Quero marchar convosco até a Última Cidadela, vencer ou morrer, ser como eles.- Ela disse com a solenidade que Darkus sabia ele mesmo ter antes de ver o mundo pelos próprios olhos.
    Ela retirou o elmo e o jogou aos pés de Darkus. Era uma jovem razoavelmente bonita, e teria a achado atraente em outros tempos, quando ainda não conhecia a Princesa de Vestroya. Seus cabelos castanhos haviam sido cortados curtos, mal chegavam ao ombro e emolduravam seu rosto pálido e olhos cinzentos.
      - O que tem à oferecer, senhora? Como uma moça poderia ser útil para a defesa de Aledrac? Para ajudar o maior povoado humano no Sul do continente que agora está ameaçado por aqueles que destruíram sua vila e mataram seu pai?- Se aprumou, suas provocações tinham um motivo. - O que tem para oferecer à mim e à Gerald?-
     Aella corou, mas não se quebrou com as provocações, apenas tirou a espada da bainha. Ela caiu sob um joelho, a ponta da lâmina virada para si e o cabo para Darkus. Ela segurava pelo guarda mão, como se oferecesse a arma.
    - Eu lhe dou minha espada, meu senhor, lhe servirei tão bem quanto qualquer cavaleiro. O guardarei e lutarei ao seu lado, e se assim desejar morrerei sob suas ordens. Marcharei para Aledrac ao seu lado, serei seu escudo juramentado.- Ela entoou, decidida.
     Darkus a recebeu com um sorriso.

  Foram tirados daquele momento quando barulhos foram ouvidos do lado de fora da tenda, e Darkus e Aella se entreolharam antes de saírem juntos. Darkus sacou Trono de Ossos ao ouvir gritos fortes, e começou à caminhar com rapidez por entre o acampamento.
     - Darkus!- Gritara uma voz, e o jovem se virara com tanta rapidez que lhe doera o pescoço. Era Anya, que corria agora com as faixas soltas, revelando sua pele vermelha. Aella fez menção para avançar, mas o bastardo ergueu a mão para impedir.
     - Pelo visto descobriram oque causou a morte dos homens da retaguarda, Darkus...- Disse a menina demônio, ofegante. Por fim apontou para as rochas ao longe.
     - O que diab....?- Darkus estava preparado para questionar, quando viu o demônio com as garras presas na pedra e a cabeçorra mirando todos.
     Parecia um cão negro, mas com os as patas semelhantes às de macacos. Se agarrava na pedra escura com as garras de uma prata brilhante.
      E seus olhos vermelhos miravam o acampamento, enquanto homens gritavam e fugiam.
    
     
    

O Trono de Ossos - Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora