64. (Amanda)

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É como um balde de água com gelo que caí sobre a minha cabeça, como pedras penduradas na minha costa, dói como chamas na pele. Sem reação, sem remorso, ou até mesmo sem um adeus, ele se vai sem nem dizer se vai voltar, ou se é só uma despedida temporária, um até breve, tinha que ser um até logo, a dor não seria tão grande.

Minha mente vagueia por todos os lados, sem levar meu corpo, a cada sala, a cada quarto vazio, onde mais um se vai deixando sua família com essa dor terrível, a cada mente perturbada, a cada lagrima derramada, já não sei onde estou na real, se estou ou não aqui, já não é mais nada real.

A única coisa que não se responde na minha mente, é como eu acharia que isto acabaria, ou como realmente acabaria, se seria assim, se eu não tivesse ido embora, ou se eu não tivesse brigado com ele, mas, seria justo, eu não fazer isso? Eu não tentar me salvar? Seria justo eu aceitar enquanto meu corpo pesava a cada dor nova? Isso não seria justo.

Minha vida já não era a mesma desde a minha saída da casa dos meus pais, desde o adeus que disse pela última vez à minha mãe, e o último abraço que dei a meu pai, desde então, minha vida foi se tornando cada vez pior, com dores e mais sofrimentos.

Quando entrei pela primeira vez nesse morro, não imaginava que tantas coisas iriam acontecer, mas quem imagina a realidade do seu futuro? Imaginamos uma maquiagem que queremos botar em cima da realidade, da realidade de cada um, aos que se matam de trabalhar para receber apenas um salário que pague um prato de comida para seus filhos, até uma mãe de família que apanha todos os dias do seu marido para proteger seus filhos. Não imaginamos nossa realidade, imaginamos uma maquiagem, e só com algunas escolhas, transformamos a maquiagem em realidade, com a escolha de não ir naquela festa, de não beber, de não ir naquele baile, são escolhas que mudam nosso destino, não é a imaginação.

-Amanda... -me assusto ao sentir um toque no meu braço, seu rosto brilha na luz, e clareia até aparecer uma mulher loira, uma enfermeira, ela senta ao meu lado e segura minha mão. -Você precisa ser forte agora, sabemos que era seu marido...

-Ele não era meu marido -a interrompo e ela se assusta. -Não éramos casados.

-Entendo, mas eram um casal certo? -nego com a cabeça e ela acaricia minha mão. -Entendi, Vinicius me pediu para vir até você, ele disse que seria responsável por tudo por enquanto, assuntos como a assinatura da papelada do necrotério e tudo sobre o enterro, a irmã dele foi levada, não está em condições, quem à levou foi o próprio Vinicius, o senhor Pedro não está mais no hospital, preciso que assuma essa responsabilidade por favor!

-Eu vou assumir, tudo que precisar pode vir até a mim, ele me assumiu como sua mulher, e na verdade não éramos um casal convencional, mas vou fazer o papel de sua mulher hoje, e até quando precisar, conta comigo! -ela sorrir e aperta minha mão, encosto minha cabeça fechando meus olhos.

-Venha comigo!

A sigo, caminho por aqueles corredores como se estivesse flutuando, é como se tudo ali estivesse passando em câmera lenta diante dos meus olhos, sinto minha costa pesada, e meus braços parecen que vão cair a qualquer momento.

Entramos em um quarto, e assim que passo pela porta, meu corpo gela, e por um momento sinto uma grande falta de ar, sinto um formigamento por toda minha perna, e quase não me aguento em pé. Olho para ele, ali deitado naquela cama, ligado a tantos aparelhos, seu corpo ali, parado, como uma estátua, seus olhos fechados e fundos, não consigo desviar meus olhos dos seus.

-Seu corpo está ligado a uma máquina chamada de "ventilador", que fica bem aqui ao lado do leito, está conectada à ele por meio de um tubo na traqueia, que mantém a respiração. Tanto a medicação quanto o ventilador permanecem ativos até que se confirme o diagnóstico de morte cerebral. Assim, a morte cerebral só poderá ocorrer após sete horas, que são seis horas de observação mais uma hora de exames.

-Então ele ainda é considerado vivo? -pergunto ainda olhando para ele.

-De certa forma sim, mas peço que não crie expetativas, são poucos os casos que o paciente volta a ativa depois da morte cerebral. -ela passa toda a papela para mim, me assusto com tanto papel, minha cabeça não estava funcionando tão bem naquele momento. -Precisamos falar sobre doação de órgãos, sei que é muito por agora, mais é um assunto que precisará ser dito. A partir dos exames veremos se seus órgãos estão aptos à doação.

-Eu não sei... -digo me sentando à poltrona ao lado do leito, ainda o encarando, estava muito desgastada para tanta informação.

-Senhora, devo lhe informar, que muitos dependem de órgãos saudáveis, para sair de uma cama de hospital, ou só para continuar vivo, e talvez, tenha alguém por aí, que precisa mais dos órgão dele, do que ele. -ela segura minha mão, me trazendo segurança e conforto.

-Está bem! Se os exames disserem que ele pode doar, ele será doador! Só me explica como funcionará o processo!

-Se ele realmente for doador de órgãos, a medicação usada para controlar pressão arterial, temperatura do corpo e a oxigenação com ajuda do ventilador é ministrada até o momento em que os órgãos sejam retirados. Após a remoção do órgão, reconstitui-se o corpo e iniciam-se os trâmites legais de sepultamento.

-Entendi! Muito obrigado, eu só preciso de um momento para respirar e assinar tudo isso, será que eu posso ficar sozinha um pouco? -me levanto e ponho toda a papelada em cima da poltrona.

-Claro que sim, vou lhe deixar sozinha, vou mandar preparar os exames, para que tudo seja feito o quanto antes, qualquer coisa, você pode me chamar! -ela diz pegando algumas coisas e saindo fechando a porta.

A partir dali tudo seria diferente, nossas vidas iriam mudar completamente, Lukas era tudo no morro, ele cuidava de tudo, e deixava as pessoas seguras, por mais que ele tenha me feito muito mal, ele já fez muito bem a muita gente, cuidou de muitas pessoas com necessidade, e já deu segurança a muitos que precisavam, ele fazia as coisas no caminho errado, mas trazia o bem à sua gente.

Talvez sinta sua falta, de algumas piadas sem graça, algumas conversas, apenas as lembranças boas que tive com ele, apesar de tudo, de todas as quedas, todo o sofrimento, não irei guardar mágoa dele, ao contrário, tudo que aconteceu, ja passou, e nada que eu fizer, irá mudar o passado, seguirei meu caminho, apenas com as lembranças boas que tivemos, o perdão é uma dádiva, e não faço isso só por ele, faço por mim, não iria continuar vivendo com rancor no peito, viverei apenas com as coisas que vinheram boas para mim.














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Continua...

A Menina Do MorroOnde histórias criam vida. Descubra agora