🍷 Capítulo 4.2

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Apesar de eu já estar mais do que acostumada a beber, os efeitos da vodca, tomada depressa enquanto eu era interrogada por um insistente Leocaster, começavam a surgir. Talvez fosse apenas o cansaço da viagem misturado ao tédio da espera; ou, quem sabe, fosse meu próprio subconsciente me anestesiando, em preparação às memórias dolorosas que, inevitavelmente, acabariam vindo à tona ao longo daquela conversa. Fosse como fosse, nada seria pior que os recorrentes pesadelos do passado, que, para o meu alívio, há muito já não me atormentavam. "Encerramento de ciclos", era isso que aquele terapeuta enfadonho que o Leocaster visitava havia dito sobre o meu caso, não era? Havia uma chance de o tal Edgar não estar tão enganado assim, no fim das contas.

A névoa de gelo seco que preenchia o interior do bar naquele instante não era muito diferente da neblina que muitas vezes eu encontrei em Donetsk. Foi assim, embalada por aquela memória, que eu comecei o meu relato ao impaciente príncipe dos vampiros, sentado diante de mim.

— A densa neblina era apenas um em meio aos muitos encantos da misteriosa cidade às margens do rio Kalmius, no sudoeste da Ucrânia — comentei. — Na época em que tudo aconteceu, porém, Donetsk era conhecida pelo nome de Stalino e o seu território integrava a antiga União Soviética. Stalino e sua população foram completamente devastadas durante a Segunda Guerra Mundial. Isso ocorreu mais ou menos entre os anos de 1941 e 1943, um período em que não tivemos qualquer contato com Babushka ou com qualquer outro de nossos associados naquela região.

— Os vampiros europeus não puderam fazer nada, mesmo com toda a organização e poderes sobrenaturais que possuíam? — Leocaster questionou, interessado.

— O vampiro rei da Europa não julgou seguro agirmos no local, já que todo o território havia sido controlado pelas tropas alemãs e italianas, que ali se instalaram — expliquei. — Foi só no ano de 1945, na iminência do fim do conflito, que todos os jovens e adultos sobreviventes das redondezas foram convocados para trabalhar na reconstrução da cidade e que o controle das fronteiras se tornou um pouco menos rígido.

— E essas pobres almas foram até lá de bom grado? — Leocaster quis saber.

— Não era como se tivessem muita escolha. Ou eles iam, ou perdiam a vida — relatei. — O trabalho era basicamente análogo à escravidão e, tão logo a cidade foi mais ou menos reconstruída, essa mão de obra foi imediatamente redirecionada para operar as minas de carvão que existiam por ali. A maioria dos trabalhadores acabou morrendo de desnutrição ou doenças, já que as condições eram precárias e o clima também não era muito favorável — revelei, com pesar. — Mas foi apenas quando essa movimentação de mão de obra se intensificou um pouco mais que o rei dos vampiros julgou ser o momento oportuno para enviar um espião de nossa espécie e tentar obter notícias do orfanato.

— E devo presumir que o tal espião era você, estou certo? — questionou o vampiro diante de mim.

— Sim, você está — confirmei.

Naquele momento, tal qual num filme, as memórias do distante dia me retornaram com nitidez.


***


O vento frio balançava minha longa saia, mas não o suficiente para atrapalhar a minha caminhada pelo chão salpicado de neve. Os soldados a postos na entrada de Stalino não demonstraram grande interesse ao meu respeito; eu ainda não possuía tatuagem alguma naquela época e havia feito questão de me trajar discretamente, tal qual as mulheres da região, podendo ser facilmente confundida com uma camponesa qualquer. Após eu mentir, inventando que estava ali para visitar minha tia, a governanta do orfanato, eles liberaram minha passagem sem me importunar. Fosse eu um homem e a história seria outra, no entanto; certamente iam me conduzir direto para as minas de carvão, onde eu seria forçada a trabalhar até o fim dos meus dias.

O Clube da Lua: Laços Antigos (Contos / Livro 1.5 ✓)Onde histórias criam vida. Descubra agora