Nunca fui do tipo de pessoa que se surpreende fácil; porém, de todas as coisas que minha prima pudesse ter dito, possivelmente não existiria qualquer outro conjunto de palavras que fosse capaz de causar em mim o sentimento de incredulidade que eu agora experimentava. Ela sinceramente esperava que eu fosse ficar alegre? Agradecida? Ela não percebia o quanto aquilo poderia soar ofensivo? Afinal, somente eu e os deuses sabíamos o quanto eu já havia tentado, de todas as maneiras imagináveis e inimagináveis, despertar o meu lado sobrenatural. E, agora, Lia, a pobre e ingênua Lia, simplesmente soltava aquilo, numa conversa informal durante um almoço, a suposta solução para todos os meus problemas. Quem ela pensava ser para declarar tal coisa? Quem tinha dado a ela o direito de brincar com algo tão doloroso para mim?
— Acho melhor você parar por aí, Lia — eu avisei, em tom sério.
— Por favor, prima, deixa ao menos eu me explicar! — ela me pediu, aflita.
Não é que eu duvidasse da boa vontade da garota sentada diante de mim. Apenas achava irônico ela julgar ser capaz de resolver toda aquela complexa situação. Longe de mim querer menosprezar as qualidades de minha prima, mas, apesar de sermos da mesma família, a condição dela perante o mundo sobrenatural não era assim tão diferente da minha. Lia era uma híbrida, filha de um bruxo, irmão de meu pai, com uma humana sem poderes. Por consequência, assim como eu, também não podia fazer parte do círculo, sobrando para ela se contentar em estudar ervas medicinais, banhos aromáticos e simpatias de amor e prosperidade. Não que aquilo não tivesse lá o seu valor, mas apenas quem era versado na magia, na real e poderosa magia, sabia o quanto aquelas práticas eram basicamente brincadeira de criança perto do poder de um bruxo de verdade.
— Não sei se estou interessada em ouvir o que você tem a dizer — admiti, finalmente. — Coloque-se no meu lugar, Lia! Você gostaria que alguém brincasse com esse assunto se você estivesse na minha pele?
— Não, prima, de maneira alguma — ela respondeu, em tom sério. — E é justamente por te respeitar e admirar tanto que eu estou me arriscando ao te falar tudo isso. Porque eu te conheço desde pequena e sei do tamanho da tua dor — completou.
— Você tem cinco minutos — declarei, dando-me por vencida. — Assim que esse tempo terminar, eu vou me levantar dessa mesa e vou para a minha casa. Dependendo do que você me disser, eu vou fingir que essa conversa nunca aconteceu, e espero que você faça o mesmo — fiz questão de frisar.
— Não preciso de mais do que isso — ela concordou. — Apenas peço que me ouça.
Preciso admitir que estava admirada com a determinação de Lia. Mesmo depois de eu ter a advertido, ela continuava obstinada com o que quer que tivesse em mente. Decidi dar a ela o benefício da dúvida e esperei para ouvir o que ela tanto queria dizer.
— Você sabe que às vezes o meu pai viaja por conta do trabalho, não sabe? — ela começou, meio sem jeito. Apenas concordei com a cabeça. — Pois bem, ele tem um escritório em nossa casa, onde ele deixa seus livros e os materiais que ele utiliza nas atividades do círculo de bruxos. Como você pode adivinhar, eu não sou autorizada a entrar nesse cômodo, por mais que eu tenha vontade...
— E qual o motivo disso? — perguntei.
— É que eu sempre fui muito curiosa, e não foram poucas as vezes que papai me pegou brincando com as coisas dele — ela admitiu, envergonhada. — Ele sempre me repreendia, dizendo que aquilo era perigoso para uma híbrida como eu. Até que um dia se fartou das minhas traquinagens e passou a deixar tudo trancado a chave nesse escritório, garantindo, assim, que eu não tocaria em mais nada.
— E o que isso tem a ver com as viagens do seu pai? — perguntei, já prevendo o rumo daquela conversa.
— Bem... — ela continuou, fazendo suspense. — Digamos que, durante uma faxina, eu tenha encontrado o lugar onde ele deixa as cópias reservas de todas as chaves da casa... Todas elas, inclusive a do escritório.
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O Clube da Lua: Laços Antigos (Contos / Livro 1.5 ✓)
FantasíaExistem datas simbólicas que carregam consigo uma série de significados ocultos e que são muito mais do que meras celebrações ou festividades. Nessa coletânea de contos, acompanhamos personagens marcantes de "O Clube da Lua e a Flor Cadáver" revisi...