Capítulo I

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Afrodite

A primeira coisa da qual me dei conta foi o leve ruído das ondas atingindo a rocha e desmanchando-se em espuma. Eu conhecia aquele som. Não o escutava há muito tempo, mas também não havia esquecido. Era quase reconfortante. Abri os olhos lentamente e esperei até minha visão se ajustar aos tons de azul e violeta que se espalhavam pelo céu. Ao lado, os primeiros raios de sol se insinuavam sobre as pedras, fazendo-as brilhar.

Então, veio a dor. Como um sopro, primeiro, e depois como um vendaval. Ela tomou meu corpo por completo e eu senti todos os meus músculos se tensionando involuntariamente. Em alguns lugares era pior, como se pegassem fogo. Sentei-me com dificuldade e procurei pelas chamas, mas elas não estavam lá. Em seu lugar, entretanto, círculos deformados de carne viva, de onde gotículas de sangue brotavam pouco a pouco. Joelhos ralados como uma criança. E quadris. E braços. E mãos.

Ótimo. Para completar, Zeus ainda havia me despachado nua. A única coisa que ainda estava ali era o colar, só porque eu havia o segurado no último segundo.

— Maldito... — suspirei sob a respiração.

Olhei ao redor. Pelo menos o local eu conhecia. Pafos se parecia exatamente com a última vez que estivera lá. A diferença é que, na outra ocasião, havia dezenas de mortais maravilhados para me cobrir de flores. Aparentemente, tudo que eu ganharia dessa vez seriam algumas cicatrizes.

Cicatrizes em Afrodite!

Ele me pagaria. Todos eles me pagariam. Um por um. Nem que eu precisasse trazer todo o Olimpo abaixo. Eu era uma deusa, afinal de contas, e ninguém lá tinha o direito de tomar minha imortalidade e me banir de minha própria casa... Bom, pelo jeito, tinha. O que não significava que eu aceitaria permanecer daquela forma. Ou que eles não enfrentariam minha ira quando eu revertesse aquele pequeno contratempo.

Um ruído me despertou de meus pensamentos e demorei alguns segundos para perceber que ele vinha de mim mesma. Meu estômago roncava e meu queixo batia levemente. Para se juntar à dor, eu tinha fome e frio pela primeira vez em milênios.

Olhei ao redor mais uma vez. Estava completamente só. A vingança teria que esperar um pouco. Pelo menos até eu resolver aquela... situação inusitada.

***

Fechei a porta do quarto de hotel e suspirei, largando as bolsas no chão e o copo vazio de café sobre a mesinha de centro. Eu já tinha estado ali e inspecionado tudo horas antes, mas continuava incomodada. Era minúsculo se comparado aos meus aposentos no Olimpo. Despretensioso demais para meu gosto, observei outra vez, torcendo o nariz. Mas teria que servir por enquanto. Pelo menos estava vestida e alimentada.

A parte mais complicada desde minha chegada havia sido conseguir as primeiras roupas. Tivera que esperar, às escondidas, o primeiro banhista da manhã aparecer, largar seus pertences sobre a areia e mergulhar. Só então então pude correr até lá e pegar algumas peças. Humilhante, mas necessário. A nudez não era um problema para mim, mas eu sabia como os mortais podiam ser puritanos com as coisas mais naturais.

Depois disso, tudo correu bem. Em menos de uma hora, já havia penhorado o colar e conseguido uma quantia satisfatória para me estabelecer por alguns dias.

Fiz uma nota mental de mais uma coisa pela qual esfolaria Zeus e todos os outros – ser obrigada a me desfazer de uma joia olimpiana em troca de dinheiro mortal. Ultrajante. Ao menos os humanos permaneciam receptivos. Mesmo maltrapilha e com uma desculpa ridícula para explicar minha situação, eles continuavam acreditando em tudo que eu falava e me oferecendo seus melhores sorrisos. Certas coisas nunca mudam.

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