Eu já fui Eva. Já fui Caim.
Fui o povo que, corrompido e sem fé, não ouviu Noé.
Eu fui expulsa do Jardim e dei à luz com dores.
Uma marca foi posta em mim para que não me matassem.
E por fim o dilúvio, conforme foi reiteradamente anunciado.
Eu já fui Babel em minha confusão.
Já fui filha de Canaã. Idólatra. Pagã.
Eu já fui o urso, o leão e o gigante.
Eu já fui Dalila. Fui esposa de Oséias também.
Fui Sodoma, fui Gomorra; fui uma estátua de sal.
Babilônia que escraviza. Jonas antes do abismo. Pedro cortando a orelha.
Eu fui Judas recebendo as moedas, e também o fui dando o beijo.
Fui cada um daqueles que apedrejaram Estevão.
Eu já fui o jovem rico e tomei meu rumo triste.
Eu já fui os filhos de Eli. Já sorri como Sara, já emudeci como Zacarias.
Eu menti como Ananias e Safira.
Minhas mãos estavam cheias de sangue como as de Davi.
Eu fui os amigos de Jó. Fui até mesmo sua esposa.
Eu não queria os sete mergulhos tal qual Naamã.
Eu dormi ao invés de orar com Ele; nem mesmo uma hora pude vigiar.
Ninguém podia me livrar do corpo dessa morte!
Tu o sabes. Sabes que nem sempre fui Abel.
Poucas vezes fui Enoque. Menos ainda Elias ou Elizeu.
Deixei de ser Abraão quando mais precisava.
Eu fui Moisés antes da sarça, muito mais do que o fui depois dela.
Eu não sabia que o lugar era santo e mantive as sandálias nos pés quando não devia.
Foi tão raro te oferecer os cinco pães e os dois peixinhos.
Nunca disse "...o que tenho te dou... levanta-te e anda!"
Eu demorei demais dentro da caverna, porque já não via em mim um profeta e o medo me consumia.
Eu tentava desesperadamente ouvir tua voz e não ouvia.
Depois de orar três vezes sobre aquele assunto, tive raiva quando me disseste que tua graça me bastava.
Mas também me lembro de conversar contigo próximo ao poço.
Lembro que corri para a cidade e preguei sobre o profeta que sabia tudo quanto eu tinha feito.
Quando você me defendeu dos que alçavam pedras eu resolvi te seguir.
E quando me perdoaste e me encheste, minha última oração já foi "morra eu com os Filisteus!"
Eu fui Vasti. Fui também Ester.
Fui Miriam, antes e depois da lepra.
Na janela, fui Mical e entristeci meu marido.
Na procissão dos que te seguiam, afirmei que eu me contentaria com as migalhas que caíssem de tua mesa.
Conheço a luz e as trevas. O bem e o mal.
Vivi em pecado, depois em santidade. Em santidade, depois em pecado.
Sou íntima de cada metro entre os dois extremos.
Fui forte, fui fraca e fui forte quando fui fraca também.
Orei em mistérios, orei em minha língua natal, orei sem palavras e não orei de forma alguma.
Já vivi a comunhão de maneiras tão tremendas que as palavras não explicariam.
Sei o que é adoração num culto racional e quando não sinto meus pés no chão.
Prometi e não cumpri.
Lutei, venci, perdi, venci, perdi...
Conheço a sequidão, mas conheço também os teus rios de água viva.
Conheço o interior do peixe, a sombra da aboboreira e o cárcere à meia noite.
Fui a centésima ovelha, o filho pródigo, Davi com Bateseba e te neguei três vezes em tão pouco tempo.
Eu te tentei, e descobri que mesmo quando sou infiel, tu permaneces fiel.
Por alguma razão, não desistes do que sou, apesar de tudo que já fui.
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Erradores - pensando nossa condição
PoetryComo alguém ousa propor que sejamos perfeitos? Errar é tão natural quanto respirar. Você até consegue prender o fôlego, mas não por muito tempo e não sem angustiante esforço. As falhas estão marcadas no nosso código genético tanto quanto nossas car...