O irrecuperável em cada perda

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Há perdas irrecuperáveis? Há irrecuperáveis diante das perdas? O que é uma perda e o que caracteriza uma recuperação? Para que se possa afirmar que se perdeu, implicitamente se parte da ideia de que se tinha alguma coisa ou alguém. Mas o que realmente se tem? O que é nosso, posse, fixo? E se nosso for, o é para sempre? E se for para sempre, esse sempre é sempre igual?


Mesmo nossa própria vida e os acontecimentos que enchem nossos dias não são nossos, não exercemos poder algum sobre eles. Não escolhemos nosso sexo, nome, pátria, voz, aparência, época ou dia de nascimento, tampouco nossa classe social. Não escolhemos as coisas que virão a nós, no máximo parte daquelas às quais iremos, e há controvérsias. Em algum momento não escolheremos também a hora de partir.


Se não temos a nós mesmos, quanto mais ao outro. O acesso a um objeto ou pessoa não é um mérito, é uma dádiva. Não há termos de garantia de qualquer espécie. Então quando "tenho" algo, logo de início o imagino perdido, quebrado, amarelado e rasgado, que é o que muito provavelmente acontecerá. Isso se eu mesma não for protagonista dessas palavras antes dele. Quando recebo alguém em minha vida ou sou recebida na vida de outro, já me alerto que um dia não mais estaremos juntos. Voltaremos ao estágio inicial, em que existíamos em separado.


A dor da perda na verdade é nossa incapacidade de lidar com o "eu só", com o "eu sem você". Evidencia a dificuldade de voltar ao suposto equilíbrio anterior, sobretudo quando o outro já estava lá quando eu cheguei. Tem-se a impressão de não saber viver sem. Por isso tento manter-me preparada para o inevitável, como se fosse possível. Trata-se de um mecanismo de proteção do ego, de defesa de minha integridade emocional, se é que tenho uma. Nesse ponto já começamos a falar de morte, ainda que não a tenhamos mencionado pelo nome.


Minha relação com a morte sempre foi extremamente tranquila. Não tenho medo dos mortos, mas dos vivos. Paralelamente, dos vivos tem-se algum pretenso controle, é possível localizá-los, prendê-los ou esconder-nos deles; já os mortos, não posso saber onde estão e, a princípio, nada posso fazer. Recordo-me de ficar sozinha com o corpo de uma tia avó em seu velório. Cheguei perto do caixão e olhei atentamente seu rosto que sorria. Sim, sorria. Morrer é a parte mais previsível da vida. Somente uma questão de tempo e tão natural quanto a fome, o sono e o sexo. Um dia todos morrem, mais cedo ou mais tarde. Verdade é que alguns poucos morrem mais de uma vez e são ressuscitados e, segundo a Bíblia, alguns não morreram e outros tantos não morrerão. Mas isso é exceção.


Complicado é entender que não perdi, porque na verdade nunca tive. Estamos aqui emprestados uns aos outros e tudo tem um tempo determinado. Isso deveria ser o suficiente para nos estimular a aproveitar melhor cada minuto; mas fingimos que a morte nunca virá e esquecemos que o tempo e o espaço aqui são limitados. Nossa mente eterna não se acostumou com a ideia de finitude a que está atrelada nessa realidade. Queremos a liberdade de ir e vir por tempos sem fim, queremos a eternidade que faz parte de nossa natureza espiritual.


Jó disse ao perder todos os filhos em um mesmo episódio: "Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor." Essa frase faz coro com "e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu". A ideia de voltar está muito presente nas Escrituras.


Aqui cabe uma pequena reflexão, considerando a coexistência dos tempos Chronos e Kairós. Chronos seria o tempo que os relógios e calendários medem; já Kairós seria uma modalidade de tempo que o ser humano desconhece e não consegue controlar, um tempo subjetivo definido para cada conjunto de experiências a se cumprir para cada pessoa, cada nação, cada parte do universo. O macro e o microcosmo obedeceriam tanto a um quanto a outro, simultaneamente. Dentro desse contexto, a morte seria escrava do tempo, obedecendo-o quando ele diz que a hora chegou.


O maior problema de nossa relação com a morte é a forma como ela se dá. Mas isso não é sua escolha, mas de questões que fogem ao seu controle. Um ser que parte com idade avançada, cujos órgãos faliram após décadas de desgaste lento e progressivo, parece mais fácil de aceitar. Um jovem que morre de uma doença rara é mais difícil. Uma criança vítima de assassinato é indescritivelmente pior. Tudo começa com quem se foi, passando pela forma, por vezes abrupta, como foi levado e desaguando em nosso despreparo frente à cruel realidade.


Quem crê em vida após a morte pode pensar que o outro continua vivo, ativo e mais pleno que nunca em outro plano. Quem não crê pode pensar que o outro não existe mais, não está, não é; não sente, portanto, nem alegria, nem tristeza ou dor. Em qualquer das opções o processo é do outro, não nosso. Resta a saudade. Mas esse sentimento é a expressão de nossa fragilidade frente à distância e o silêncio. Novamente é um problema nosso, não de quem completou seu ciclo. É a evidência de nossa dependência emocional do outro que de alguma forma se tornou parte de nosso próprio eu e, portanto, nos sentimos mutilados, roubados, menores quando ele se vai. Raiva de Deus que permitiu, do falecido, do mundo. Reações naturais. Para alguns uma fase, para outros uma constante.


Minha avó materna não era de palavras bonitas, mas preparava "pirão ardoso" para mim quando ia à sua casa, também vitamina de banana com achocolatado e cuscuz com coco. Absolutamente ninguém foi ou será capaz de reproduzir o sabor daquelas receitas em meu paladar. Próxima de sua morte, eu me lembro de fazer suas unhas e dizer que ela estava "gata" – tinha uma pele linda mesmo após os 80 anos – e ela, que já não falava ou andava, riu gostosamente. Noutro momento cantei um hino antigo e ela chorou. Por aqueles dias uma prima teve um sonho em que ela dizia: "eu quero ir, mas minha filha não deixa". Era minha mãe, sua cuidadora com amor sacrificial, que precisava mais dela que o contrário, porque a dependência emocional é muito pior que a física. Outra pessoa poderia fazer a higiene de minha avó, mas quem seria uma mãe para minha mãe?


Tendo tomando conhecimento desse sonho, ao testemunhar longa e sofrida internação aquela filha encheu-se de uma coragem sobrenatural e lhe disse ao ouvido palavras de agradecimento pelo tempo em que estiveram juntas e por tudo que ela fez pela família inteira, lhe assegurou que ela não foi um peso para nós durante os anos de doença e, por fim, lhe disse:


- Jesus está lhe esperando. Pode ir. Vá em paz.


E ela foi. Imediatamente. O último suspiro foi instantâneo. Era essa liberação que ela esperava. O tempo Kairós se cumprira, e mesmo o Chronos, considerando inclusive sua idade. Alguns nos parecem ter ido no Chronos errado, mas na verdade todos vão no Kairós certo.


Recuperar ou recuperar-se. O quê? De quê? Em que sentido? O que há para ser recuperado de imediato não é tanto o outro, mas nós mesmos. O rei Davi, após perder um filho recém-nascido por quem orou e chorou muito, por fim levantou-se, lavou o rosto, arrumou-se e, para a surpresa dos que o viram saindo do luto externo, disse: "Eu irei a ele, mas ele não voltará para mim". Ele entendeu, em meio à sua dor, que o luto tem seu tempo. Certamente é maior o interno que o externo, mas enquanto fenômeno depressivo e incapacitante deve ter um fim. Mas, mais do que sua clareza sobre o luto, o Rei tinha uma visão de recuperação e restituição, tanto de sua saúde e do curso de sua vida, quanto do convívio com a pessoa amada. Embora o menino não pudesse voltar a ele, um dia ele iria ao seu encontro. Um momento marcado no Kairós, num Chronos desconhecido.


A Bíblia afirma que no céu que nos está sendo preparado não haverá mais morte, nem pranto, nem dor; porque tudo isso terá passado. Mesmo para os que não creem no reencontro, é possível reter o bem. Eu, por exemplo, sempre terei as memórias, os gostos, cheiros, o sorriso e a foto amarelada. Ela está comigo, lembro-me com frequência, mas não dói mais. O que ela faria se eu caísse e arranhasse o joelho? Um carinho, soprinhos e talvez as palavras:


- Calma, filhinha; já vai passar, vai passar.

Erradores - pensando nossa condiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora