Minha margarina

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Uma linda família feliz. Sorridentes, com roupas bonitas e limpas, um casal e seus dois filhos, sentados à mesa, se entreolham com carinho enquanto passam uma espátula cheia de margarina numa torrada douradinha. Fazem cara de apetite e mordem a fatia de pão, seguindo-se um sonoro: "Huuuuummmmm!". Assim começa o dia para uma família perfeita: a família do comercial de margarina, ou de leite, suco ou iogurte.


Assim também é a empresa do comercial: per-fei-ta. Ela patrocina grandes causas sociais, instituições filantrópicas, eventos esportivos e culturais, mobilizações comunitárias e atletas cheios de saúde, talento e carisma. Os funcionários, calorosamente chamados de colaboradores, vestem sua camisa e sorriem para a câmera, fazendo sinal de ok e enviando a mensagem: "como sou grato por fazer parte desse time!"


Mas é mais que isso, é a vida. A vida do comercial. Todos a queremos e a buscamos intensamente. Mas, mais do que tê-la, queremos vendê-la. Tal qual a publicidade, queremos que a margarina seja realmente gostosa, mas se não o for, faremos cara de que é, e todos vão acreditar e comprar. Lutamos para nos encaixar nesse padrão. Queremos a cozinha arrumada, os pais e filhos amorosos, a mesa lindamente posta. Queremos o título de profissionais de sucesso, cuja carreira engrenou, deslanchou e segue triunfante.


Lutamos para vender nossa melhor imagem, seja ela real ou fictícia, verdadeira ou não. Não admitimos a possibilidade de que os outros saibam que nossa roupa não é nova, que o casamento ou a vida profissional não vão bem, que o café da manhã não é farto. Como admitir que não estamos felizes com a empresa, que escolhemos a área errada, que não conseguimos viver bem com nosso salário, que o clima organizacional é ruim, que o trabalho nos deixa estressados e que a motivação fugiu em disparada? Contamos para todos que fomos promovidos porque isso é bonito e honroso. Isso vende margarina. Mas não contamos que houve uma discussão horrorosa entre colegas, cheia de comentários mesquinhos, que não conseguimos fazer nossas entregas ou que o chefe é um ditador surtado. Isso ninguém precisa saber. Isso mancha nossa imagem. E imagem é tudo, certo? Imagem vende ou deixa de vender.


Queremos que comprem a ideia de que somos irrepreensíveis, porque daí pareceremos bem-sucedidos, um projeto que deu certo, alguém que conseguiu conduzir sua vida com sabedoria e equilíbrio. Queremos que imaginem que nada dá errado em nossa vida, que nada nos falta, temos abundância em tudo. Nossa casa está sempre impecável, nossa beleza e saúde em dia, nossa vida profissional tanto mais e entre nós tudo são flores. Que acordamos dando um gostoso bom dia enquanto nos dirigimos saltitantes para o café da manhã, chegamos ao trabalho animados como chefes de torcida em filmes adolescentes norte-americanos, e no caminho distribuímos cartões de visita e apertos de mão calorosos como políticos em campanha. Se todos acreditarem nisso, nos sentiremos bem-vistos, aceitos, amados e felizes. Ainda que ao desligar do REC tudo seja desmontado, as luzes apagadas e os atores se levantem carrancudos, segurem seu cachê e, sem sequer se despedirem, sigam cada um para o seu lado.


Por que essa nossa habitual e generalizada necessidade de exibir só o nosso melhor e varrer a sujeira para debaixo do tapete? Por que temos tanto medo da rejeição se descobrirem que não somos tão bons, tão competentes, tão engomadinhos como na internet? Por que tantos se endividam para manter um padrão de vida cheio de aparências que não podem sustentar? Quantas coisas no nosso dia a dia são feitas somente para prestar contas aos outros? Se vivêssemos sozinhos, isolados numa ilha ou no meio de um deserto, não estaríamos preocupados com perfumes, penteados ou com as tendências da moda para a próxima estação. Menos que isso: bastaria que morássemos numa cidade em que ninguém nos conhecesse e a grande maioria de nós passaria semanas sem fazer as unhas, meses sem comprar roupas novas, anos sem trocar de carro. Se soubéssemos mesmo que ninguém nos notaria, quem de nós realmente se importaria? Provavelmente muito poucos. O marketing pessoal não é apenas a busca da melhor imagem ao - e para - sermos notados, mas uma prestação de contas diante do fato de que seremos notados mesmo, e muito cobrados.


A nossa vaidade se alimenta do olhar do outro. Toda a nossa ansiedade consiste em subir no conceito do outro. E não me refiro somente às coisas básicas; refiro-me a tudo aquilo que fazemos só para impressionar a plateia, para arrancar dela aquele olhar de aprovação, de admiração ou até mesmo de inveja por nos ver assim, tão maravilhosos! Graduação, pós-graduação a nível de especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado, incontáveis horas de seminários, congressos e conferências, finais de semana diante do computador escrevendo para aumentar o número de produções científicas e publicações... Pelo quê? Até que ponto fazemos isso por nós mesmos, por que verdadeiramente nos realiza?


Para a grande maioria, todo esse tempo, todo esse esforço e dinheiro, todo esse suor e a perda de qualidade de vida são o preço do olhar de encantamento do outro. O prazer de ser alvo desse olhar parece ser secretamente arrebatador e compensar todo o sacrifício. Estamos numa sociedade onde parecer é mais importante que ser. Porque se você for e ninguém notar – pensam – de que vale a sua realidade? Bom mesmo – pregam – é exibir, alardear, demonstrar. Ser discreto parece o avesso da lógica. O mundo se move por imagem e glamour. Todos querem algum nível de glória.


Meu projeto de comercial de margarina tem sido insustentável. Quero vender exatamente o ser humano e a profissional que sou. Eis a minha verdade; a verdade desse dia, desse momento. Sem maquiagem, sem figurino, sem filtro ou iluminação artificial. Você gosta do que vê? Então compre. Você não gosta? Considere-se feliz de não ter sido iludido. Não faço mais a menor questão de vender margarina.

Erradores - pensando nossa condiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora