Números e palavras

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Alguns gostam de números, outros de cores, muitos de notas, eu de palavras. Quando entro em uma livraria sinto que poderia ficar lá para sempre. Morar lá. Isso desde sempre. Antes de me entender por gente. Mesmo sem dinheiro eu entro e fico, e fico, e fico até os atendentes se perguntarem se eu quero roubar ou qualquer coisa do gênero. Eu folheio até encontrar o aviso de "não leia os livros" e agradeço a Deus pelas que permitem e até disponibilizam mesas e cadeiras. Só o cheiro de papel novo, as capas plastificadas, as folhas virgens. Milhares de mundos esperando por mim. Títulos me chamando, coleções, promoções, clássicos, modernos e mais todos os livros que um dia intentei escrever e descobri, frustrada e encantada, que já escreveram antes. Sentir que não sou original e ao mesmo tempo que não fui rápida o bastante. Mas também, sentir-me parte de uma humanidade tão íntima de si mesma, de seu outro - ainda que esteja em distante continente ou distinto século - e ser tão eu, tão o mesmo. A capacidade de rir, chorar, sentir raiva, amar. O arrepio. A testa que franze. O desafio de alcançar as prateleiras mais altas. A vontade de deitar-me no chão.


Gosto de ler sobre o autor. Esse escreveu 12 títulos, aquele mais de 30 e outro só 1, mas amei todos. Mesmo quando não é bom, é bom. As palavras me arrebatam e há tanto a fazer, se tão somente soubermos usá-las tanto quanto um músico compõe e toca suas canções. Não tenho noção de onde podem me levar, mas quero ir. Meus melhores textos nunca são escritos. Sempre se perdem porque fluem rápido demais para que meus dedos deem conta de registrá-los ou minha voz de gravá-los. Com frequência acontecem em locais e momentos em que não tenho onde escrever. Eles tomam conta de mim e me sinto perdida, alucinada e em êxtase por causa das palavras que se encontram como cores sobre uma tela ou notas sobre um piano.


Os que amam as letras ficam encantados quando elas brincam de se juntar. Alguns degustam só determinados temas, outros leem de tudo. Para os que gostam de ler, um texto nunca é grande demais. Na verdade, é sempre pequeno, acaba antes, fica faltando, deixa saudade, procura-se o volume 2 e até bula de remédio tem sua graça: "proibido para gestantes e lactantes", que interessante! Quando o texto não é bom, continuam lendo para ver onde vai parar e o quanto consegue piorar. Se é difícil, seja pelo estilo de escrita ou assunto naturalmente complexo, forçam o raciocínio para decodificar o que o autor quis dizer. Leem quando concordam e quando discordam, para rir ou chorar, para conhecer o novo ou se reconhecer no outro.


Há ainda os que não gostam de escrever. Talvez porque não saibam como. Existem pelos menos duas razões para alguém não escrever e que se aplicam à maioria dos assuntos da vida: ou a pessoa não sabe como fazer tecnicamente ou não o sabe emocionalmente. Vejamos: uma pessoa pode não ter sido alfabetizada adequadamente, assim, provavelmente escrever não será sua atividade favorita. Mas há aqueles que não sabem ler as próprias emoções, os próprios sentimentos, não sabem ler a vida ou a si mesmos e, diante disso, o que fazer diante da folha ou da tela? Quão difícil será a tarefa de encontrar palavras. Mesmo para aqueles que as conhecem muito bem, tem-se a impressão de que não será lançada sequer a primeira letra. Um dia ouvi que é só começar com maiúscula e terminar com um ponto. Achei muito espirituoso, pertinente e inteligente, até eu descobrir, toda hora h, que eu esquecia completamente o que significava maiúscula e nunca ouvira falar em ponto.


É essencial não somente ser um bom escritor. Bons escritores precisam de bons leitores. E bons leitores são feitos de muitas coisas, tais como amor às letras, curiosidade, concentração e capacidade de interpretação apropriada ao nível dos discursos que o livro trará, dentre outras. Para ser um bom intérprete de obras literárias é preciso ser um bom intérprete da existência, ou seja, saber ler as emoções que o autor, por sua vez, em teoria soube escrever. Ou seja, bons escritores precisam saber se expressar corretamente em determinada língua e conseguir por em linhas o que seu mundo interior quer comunicar.


Então chegamos àqueles que gostam de escrever. Pessoas geralmente muito observadoras, sensíveis e detalhistas, que tem uma visão ampla do mundo e da vida e sentem um desejo imenso de imortalizar emoções, pensamentos, histórias e estórias. São pessoas que escrevem em guardanapo se for preciso, papel toalha, orelha de livro, qualquer lugar. Houve momentos na história em que as pessoas escreveram com carvão e alguns com seu próprio sangue. Escrever é compor, só que será uma letra cujo arranjo e melodia serão novos a depender de quem ouve. Nesse caso, de quem lê. Cada escritor terá seu público, que nasce naturalmente e é fiel, tanto quanto é exigente em suas expectativas e escrachadamente sincero em suas críticas.


Há dois momentos básicos - intercalados ou coexistentes - na escrita: inspiração e transpiração. Tem início quando surge a indignação, a ira ou o tesão. Todas aquelas paixões, opiniões e conclusões às quais se chegou e a vontade de gritar para o mundo inteiro ouvir. É isso que se vai escrever. Isso é inspiração e tem a capacidade de acontecer em qualquer lugar, e geralmente nas horas mais impróprias em que realmente não se pode parar o que se está fazendo. É aí que entra o papel de embrulho ou a palma da mão, ao tentar guardar na memória a magia e o frescor daquele texto até poder chegar em qualquer lugar onde possa ser escrito com mais cerimônia e oficialidade. Nesse momento entra a fase da transpiração. O escritor não vai lembrar de tudo e isso o deixará louco, pensando e tentando recuperar o que perdeu. Daí ele começa a apelar. Faz a técnica do "reconstrua o momento", concentrando-se tanto quanto pode para ter de volta a emoção original, porque sabe que das emoções, evocadas de todas as formas possíveis, vêm as palavras, e das palavras as poesias, críticas, crônicas, contos e dissertações jamais imaginadas. Ele continuará tentando, mas, sinto dizer, raramente irá recapturar tudo e talvez a parte mais importante se perca no subconsciente. É por isso que ele transpira: vai tentar tratar o solo com as mãos e uma enxada, quando seria necessário um trator para fazê-lo a contento e em menos tempo.


Há também o medo com relação ao conteúdo da publicação. Como a sociedade reagirá? O que a crítica e os especialistas no tema dirão? E o pior dos temores: e se ninguém disser coisa alguma? Não opinar é ignorar e isso significa ser menos que nada, significa não ser digno sequer do benefício da dúvida, da chance de provar seu valor. O começo de cada escritor é diferente, mas normalmente é permeado por medo ou baixa autoestima – sobretudo se muito ouviu que não podia, não conseguiria ou não era bom o suficiente – além do receio de expor seus sentimento a todos, de tornar público o que é tão secreto. É exatamente nesse momento que acontece a decisão de ser ou não um escritor, disposto a se abrir, se esforçar, fazer o seu melhor e estar sujeito a ouvir críticas negativas e ser ridicularizado. Ou pior, não receber e não ouvir nada, como se seu tudo fosse pouco demais para um comentário ou algumas passadas de olhos sobre suas páginas.


Importa também descobrir se tem opiniões interessantes sobre determinados assuntos, ou mesmo escrever exatamente o quanto não se conhece e o quanto nada sabe do mundo, compartilhando a perplexidade frente a essas constatações. Não é necessário escrever sobre si, e muitas pessoas escrevem sobre algo de fora, não de dentro delas. Mas o autor estará sempre lá, afetando tudo o que escreve. É por isso que se chama ponto de vista, percebendo o que aquele local permite ver e o quanto ele influencia suas reações, sua alma e suas palavras.


Geralmente o autor amador não conhece ainda seu estilo. Não sabe ao menos quantos e quais há ou como reconhecê-los. Não conseguiria, na maioria das vezes, escolher um para si, se é que alguém tem essa opção. A ideia nesse momento é escrever tudo o que vier à mente sem censura, de forma organizada ou desordenada, levando junto um café ou chocolate, escolhendo um local e hora específicos ou, quem sabe, se jogando por todo lado horas a fio; enfim, fazendo o que for preciso para a criança nascer, por mais difícil que seja o parto.Uma parte de mim quis ser atriz, outra quis ser cantora, arquiteta, psicóloga, empreendedora, estilista, roteirista, missionária, palestrante, jornalista, relações públicas, teóloga, oradora e professora, mas cada parte em mim quer ser escritora. Meu espírito e minha carne, a velha e a nova mulher, a alma e até mesmo o corpo. Tudo que sou quer escrever. E quem escreve, geralmente quer comunicar. Mas não há comunicação se alguém não receber. Leitores apaixonam-se – ou não – espontaneamente, como se fosse uma reação química inevitável. Cada mensagem tem seu próprio destino. Que os números marquem os cantos das páginas e a quantidade de capítulos, mas são as palavras que enchem as folhas da minha mente e da minha vida.

Erradores - pensando nossa condiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora