Capítulo 02 | Vá na velocidade que preferir
O cabelo tão completamente branco da vó Marta brilha sob a lâmpada amarela da cozinha. Papai não parece muito bem humorado, o que é um tanto compreensível considerando que ele acaba de voltar de mais um turno extra da fábrica e é possível ver em suas olheiras a ansiedade, para não dizer desespero, em iniciar seu final de semana.De postura ereta, cabelos lisos e castanhos que demoraram a começar a acinzentar, as poucas marcas no rosto de meu pai são profundas, e suas mãos grossas denunciam as décadas de trabalho duro vividas por ele.
Em sua poltrona, vó Marta, como sempre, parece não ter forças nem mesmo para uma conversa. Está focada no prato de almoço, em levar sua colher com pouca comida até a boca lentamente, sem conseguir controlar o tremor das mãos.
As refeições em família acontecem apenas uma vez por semana, no sábado ou domingo, quando meu pai consegue se juntar a nós. Nestes últimos dois meses que Eva está presente nestes dias, Eva traz consigo um bate-papo agitado incomum à nossa casa silenciosa.
- Como estão as coisas em casa, Eva? – pergunta meu pai.
Eu nunca sei se ele está realmente interessado ou se apenas parte de um roteiro social automático.
- Tudo ótimo, pai. - É o que ela sempre responde.
- Pedro entregou aquele trabalho na escola? – insiste ele.
- Entregou. Ainda não sabemos a nota, mas ele adorou a sua entrevista, pai, muito obrigada.
De repente Senhor José, sempre tão introvertido, entrega um pequeno sorriso um tanto satisfeito.
- Pedro precisava conversar com alguém mais velho para um trabalho da escola e ele quis conversar comigo. – conta ele para mim.
- Isso é ótimo, pai. – digo, embora seja impossível reproduzir metade de seu excitamento.
Lanço um olhar cúmplice para Eva, com a certeza de que ela quem pediu a Pedro para que escolhesse o avô. Ela replica confirmando e adicionando uma espécie de pedido para que eu me mantenha calada quanto a este detalhe.
- Falando nisso, é hoje que você vai visitar o Leo, não é, querida? – questiona ele, embora um assunto não tivesse absolutamente nada a ver com o outro.
- Hum, é. Se der tempo. – me limito a responder.
- Se der tempo?! – ele ri, como se eu tivesse acabado de contar uma piada. – O que mais você teria para fazer?
- Não sei, pai. - me limito a responder.
Talvez seja apenas a lâmpada acesa para iluminar a cozinha escura e o calor de meio dia que vem de fora, ou talvez isso combinado com a pressão daquelas três cadeiras viradas para mim, mas um ardor exorbitante começa a subir das minhas pernas até o meu pescoço. Pego um pedaço grande de comida e o enfio na boca para que não precise – nem possa – dizer mais nada.
- Então, você pode ir ver o Leo. – insiste ele, mais contido, como se tivesse percebido o mal estar causado por suas palavras. – Sua irmã está aqui. Aposto que ela pode ficar algumas horas com a sua avó enquanto você vai até lá.
Eva concorda energeticamente com um movimento de cabeça e um olhar vibrante de apoio ao que papai está dizendo.
- Claro, sem problemas. Eu ligo para o Gustavo para avisar e tudo bem! – concorda ela, me fazendo revirar os olhos em resposta e enfiar outra garfada na boca. – Também acho que já passou da hora de você ir até lá, Anna. – diz, em um tom de voz mais baixo com ar conselheiro.
- Escute, minha filha, não é justo o que você está fazendo com o pobre garoto. - completa meu pai, desnecessariamente.
- É exatamente este o problema. O problema é saber que o que eu vou encontrar lá ainda é um garoto. – desabafo sem pensar duas vezes, desfazendo enfim o nó em minha garganta. – Com licença.
Retiro o prato e vou até a pia da cozinha. Sei que não adianta adiar essa conversa para sempre, mas pensei que em algum momento encontraria uma maneira melhor de fazer isso. Criaria uma maneira melhor de ter esse encontro. Mas, pelo visto, isso não vai mesmo acontecer.
Pego minha bolsa no sofá, a chave do carro e saio sem dizer nada. É como se precisasse aproveitar este impulso antes que ele vá embora.
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Um amor para toda vida e nada mais [COMPLETO]
RomansaNo momento mais desesperado de sua vida, Anna descobre que tudo depende de uma segunda chance. Aos 28 anos de idade, Anna acredita que sua vida já está completamente fora de controle, seja culpa do retorno de Saturno, outro motivo cósmico, cármico o...