Capítulo XXII - 2009

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O Quanto De Mim Há Em Você
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7 de Fevereiro de 2004,
Admito que não posso condená-lo por me odiar – ou qualquer outro sentimento que possa considerar prejudicial, direcionando este à minha pessoa –, porque não permiti me aproximar e nem que você fizesse parte de mim, de minha vida, por muito mais tempo além do que fora estritamente necessário. Por um período longo de 15 anos consegui acreditar que você nunca existiu. Que nada passou de um sonho ruim; um pesadelo após eu me cegar naqueles faróis imparáveis que, hoje, ainda são o meu eterno tormento. Você é a realização muito importante de alguém... Mas eu não consegui estar com você, ser o que você precisava que eu fosse. A bem da verdade é que eu não me vi capaz de cumprir a promessa por não querer isso sozinho. Hoje, entenda, não tenho a menor pretenção de recuperar o tempo perdido, reviver o passado ou qualquer uma dessas baboseiras sentimentais que viram pauta de programas de auditório todo domingo à tarde. Não, não sou a melhor pessoa para me reconciliar com aquilo que mais me dói. Com aquilo que mais me machuca. Sua presença me é agora perturbadora... e sei muito bem o que devo fazer. Por essa razão, não perguntarei sobre sua alimentação, como está nos estudos, se toma seus supressores com regularidade, se encontrou uma nova vocação que não fosse veterinária como toda criança deseja fazer quando crescer e acaba por nunca seguir tal carreira. Tudo isso, todo esse zelo teria vindo dele, com certeza. Se sua vida está melhor sem mim mesmo sem saber se seria pior estando comigo, o que provavelmente eu apostaria já que estou insuportável há anos, é o melhor que se pode ter. Sinta-se mais que sortudo por isso: sobreviveu a tragédia que é vir ao mundo e posso deduzir que você foi muito amado quando criança, teve as pessoas certas do seu lado, por isso, não tenho que me preocupar e não me importo. Imagino que vá querer saber o que não te contaram, talvez os motivos que me levaram a te deixar... sem apresentar remorso. Bem, há um dito popular que diz: 'quem sai aos seus não degenera'... temo ver apenas um reflexo que não quero mais olhar.
Você está melhor onde está.
Assinado,

     A correspondência nunca saiu de dentro da pequena gaveta de sua mesa de escritório, além de sequer carregar uma assinatura sua como prova da sua real intenção de enviá-la ao destinatário, embora já soubesse que tudo o que fizera após ingerir uma quantidade impressionante de álcool e ser capaz de manusear uma caneta com o mínimo de decência e assistir aos anos seguintes se passarem como um filme B de um roteiro ruim, fosse em vão, ainda assim, a manteve ali dentro como um lembrete de que ainda podia despachá-la como o último punhado de terra sobre um túmulo.

No entanto, a maldita determinação daquela família, da qual inquestionavelmente fizera parte por um período em sua juventude e que jurava ter se livrado dela, pois as lembranças o deixavam "aborrecido" – ainda que aborrecido não fizesse jus –, era intrínseca como uma herança genética que, de certo, não fugia aos seus.

Como uma inusitada marca de nascença replicada há gerações.

E nada disso passava de uma cruel maldição para Dio.

Ter parado ali, na sua frente, tão próximo, tão seu... tão ele... era ser desafiado a lidar com a dor da qual sempre fugiu, até hoje, sabendo que ela poderia matá-lo algum dia.

Quando pensa que os seus demônios nunca te alcançarão, por acreditar na fuga perfeita, é quando percebe que eles estiveram com você o tempo todo. Você pensa estar sufocando as angústias que tanto te perturbam de todos os jeitos; esquecendo-as em jogos, afogando-as em bebidas ou diluindo-as nas insanas noites de sexo pelo sexo, então, você cai na real e vê que, na verdade, as alimenta e esse tormento nunca acaba... a não ser que as engrenagens que fazem ser o que você é parem... ou, com sorte, sejam destruídas para sempre. Se hoje for esse o dia, o meu dia de "sorte", então, que seja rápido, porque não devolverei os honorários ganhos adiantados!

Âmbar No Azul-Celeste [✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora