DORA

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O dia de Dora estava quase no fim. Quase. Tirava o jaleco e olhava seu armário já gasto, de uma madeira que um dia fora bonita e vistosa, talvez até tivesse sido vendido em algum catálogo... Como era pequeno, pensava enquanto puxava a grande bolsa de ginástica e respirava fundo, o corpo cansado se juntava à cabeça cheia de preocupações, mas interrompida ao olhar o visor do celular e ver chamadas não atendidas, se deu conta do horário: 19h40. "Meu pai vai me matar!" pensou acelerando seus movimentos e enfim terminando de puxar a bolsa, agora inteiramente fora do pequeno armário que já não estava mais em seus dias de glória.

Enquanto colocava a bolsa preta em torno do ombro, de lado como sempre, parecia um carteiro andando nos corredores do hospital, na bolsa a roupa que deveria trocar antes de sair, mas não o fizera, os sapatos que deveria tirar e colocar, mas não o fizera. Havia uma acelerada e apressada Dora, com bolsa de lado, um jaleco passando por cima do zíper, tudo feito de modo automático e corrido.

- Dora! – chamou Grazi estranhando a colega ali, já em tom de reprimenda.

- Sim, eu sei! Estou indo embora, Grazi! Beijos! – falou a distância, se despedindo de quem nem cumprimentou direito, mas soltou um beijo no ar junto a um sorriso sapeca.

- Beijos, amiga. Descansa! – Grazi disse enquanto via a amiga andando rapidamente, já sabia que ela estava atrasada e muito, como quase sempre, devia ter ficado um "pouquinho a mais" no plantão.

Enquanto esperava o elevador, Dora lembrava dos casos do dia, nada demais, nada escabroso, um monte de quadros de gripe, uma menina que caiu, um senhor que sentia dores abdominais... A vida corria e sem grandes novidades, mas também sem tédio algum. Trabalho, casa, maternidade, gentileza aqui e ali, comprar orgânicos, menos uso de plásticos, ser uma filha presente, amizades? Praticamente só no hospital. "Sem tempo, irmão", dizia a si mesma.

"Caramba, o atraso só aumenta" pensava enquanto o elevador demorava uma eternidade no segundo andar. Olhava o celular impaciente, abriu a conversa com seu pai e ele estava questionando o óbvio: cadê você? Malu vai jantar aqui hoje?

Ela sabia que por trás dessa pergunta tinha uma carga de julgamento. "Malu vai jantar aqui hoje" repetiu mentalmente enquanto balançava a cabeça imitando a suposta reclamação paterna. Malu dormia às vezes na casa de seu pai, era uma forma dele ajudar a própria filha e continuar pertinho da neta. Dora tinha vacilado algumas vezes, havia emendado plantões e Malu estava claramente sentida, o pai estava preocupado e usava a criança para tentar fazer com que ela saísse do ritmo insano de trabalho. Respirou fundo e respondeu apenas o necessário: estou indo, ela pode jantar aí, Pai, mas já estou saindo do hospital. E entrou no elevador enquanto ainda digitava a mensagem.

Apertou o G2 com força, mas sem vontade alguma, pensou no mais novo sermão do pai que a esperava em casa, Malu cansada, sonolenta, emburrada e só lhe restou, mais uma vez, respirar fundo e seguir.

- Dora! Ainda por aqui? – perguntou Gustavo, um colega de outra área.

- Oi, Gu. Sim, dia cheio no plantão de hoje – se limitou a responder.

- Nunca mais te vi por aí...

Ele também estava reclamando? Era só o que me faltava, ela pensou.

- Pois é. Maternidade, vida... – fez uma cara de "sem tempo, irmão".

- Ah é... As coisas devem estar difíceis, né? – ele disse com aquele olhar de dó. Esse olhar que tanto feria e incomodava.

- Estão corridas, eu diria – ela tentou cortar a conversa. Não era difícil ser mãe, longe disso, era uma das grandes alegrias da sua vida.

- Imagino, imagino. Bom te ver, Dora! Se cuida e vê se arranja tempo para sair com a gente também – riu – até mais! – saiu no fatídico segundo andar e tudo parecia caos lá, agora fazia sentido toda a demora do elevador naquele andar.

"E vê se arranja tempo pra sair com a gente também", ela repetiu mentalmente. "Como se eu tivesse saindo pra algum lugar com alguém", respondeu enquanto apagava dezenas de notificações. A realidade é que o olhar de dó ainda voltava à sua mente. "As coisas devem estar difíceis, né?", a frase, o tom, o olhar, tudo mexia demais com seu orgulho, com suas feridas. Ela era uma mulher no alto dos seus 34 anos, trabalhava, salvava vidas e o difícil é ser mãe? Ou o difícil para ele é ser mãe sozinha? Sacudiu os pensamentos quando o elevador abriu sua porta de metal e apresentou a garagem mais garagem do mundo, suja, feia, escura e completamente mal iluminada, exatamente como toda e qualquer garagem que existe.

Os funcionários do hospital entravam e saíam de seus carros, alguns atrasados como Dora, outros conversavam encostados, no cantinho do hall de elevadores. Balbuciaram um "Boa noite" completamente desinteressado, o que Dora respondeu com o mesmo nível de animação. Seguiu seu rumo e achou ruim demais entrar com o mesmo sapato do hospital no carro que Malu entraria logo depois, "atrasada? Sim. Neurótica? Também, mas vamos lá", riu de si mesma enquanto abria a porta e colocava a bolsa no porta-malas, abrindo seu zíper e tirando seus tênis que um dia havia comprado sonhando com caminhadas ou idas a pé ao hospital, já que morava relativamente perto.

Ali, se equilibrando bem mais ou menos, se encostando no carro, tirou o tênis branco, guardou junto ao jaleco no cantinho destinado a isso e enfim estava pronta para ir. 20h15 e o sermão viria com toda certeza, estava pelo menos uma hora atrasada e não era a primeira vez na semana, talvez fosse a quinta, de cinco dias. "Mas hoje eu tentei!" repetia chorosamente pra si mesma, tentava convencer a si para que convencesse seu próprio pai. "Que culpa eu tenho se Seu Anaquias queria falar sobre uma pinta que surgiu nas costas... Ele nem dormiu pensando se era câncer!", justificava mentalmente seu atraso. "Com certeza ele me tomou uns bons 20 minutos", começava a contabilizar mentalmente os tempos gastos por terceiros. Tomou coragem e ligou para o seu pai:

"Pai, tô no carro. Malu já jantou?" – torcia pra que sim, era menos uma preocupação.

"Jantou, claro que jantou. Você viu que horas são?" – ele fez o tom detestável de quem já iria começar a reclamar do atraso.

"Vi, eu vi. Eu sei, mas hoje..." – quando ela ia começar... Ele a interrompeu.

"A gente conversa quando você chegar, Malu tá aqui e..." – deixou no ar que não gostaria de falar com ela presente.

"Tá bom. Chego já" – se despediu e desligou. Já pensava na pequena de pijama, pronta para dormir no carro a caminho de casa e um quentinho invadiu seu coração.

Virou a chave dando a partida no carro, agora com bem menos cansaço do que tinha há alguns minutos. Saiu da garagem e logo tomou a rua, movimentada, ambulâncias paradas próximas ao hospital, a lanchonete de frente ainda estava funcionando, como sempre, alguns funcionários que estavam a pouco com ela no plantão riam e comiam qualquer coisa.
Seguia rindo, pensando que por, pelo menos, 36 horas não iria ali, só teria umas consultas na tarde do dia seguinte, coisa pouca, encaixes de uma semana cheia. Seria um dia menos corrido, logo, sem dramas de atrasos e sermões. Abriu um largo sorriso pela primeira vez desde que havia saído do hospital e seguiu rua abaixo, com sentimento de dever cumprido e com esperança de apaziguar um pai preocupado.  

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