Os primeiros raios de Sol nem bem apareciam no horizonte e Vera já tinha se colocado dentro do pequeno e velho jipe verde, desgastado, sujo e com marcas de um cotidiano rural. Se questionou brevemente se haveria alguém para levar, uma carona que ocupasse o banco ao seu lado faria muito bem naquele momento, assuntos dispersos de uma vida que não era a sua seriam bem-vindos. Antes de girar a chave do veículo repassou mentalmente o que tinha na pequena mala, não achava que precisaria de mais do que algumas mudas de roupa, seria rápido, dizia para si mesma.
Vera tinha saído de Brasília anos antes, olhar para trás não era uma característica sua, mas das poucas vezes que o fez foi pensando na própria filha, tão nova e claramente confusa sobre as suas escolhas. Liz tinha sua fama de resolvida e cheia de certezas, mas aos olhos da própria mãe era uma menina ainda e custaria a entender a vida e seu vaivém, tinha certeza de que as constantes inconstâncias assustariam a menina de manchinhas nas bochechas e olhar determinado.
Sua decisão pela mudança não se deu do dia para noite, começou aos poucos, fins de semana prolongados, férias, licença sem remuneração, o tempo de estadia foi se alongando com os meses. A troca do veículo urbano pelo jipe, as roupas formais de uma funcionária pública deram lugar a vestidos indianos e a casa foi se transformando em um lugar mais verde, nos cantinhos se viam potes com ágatas das mais variadas cores, incensários com seus elefantes, desenhos de luas e estrelas. Quando se deu conta de que toda a transformação de ambiente era um reflexo da sua própria transformação decidiu por se mudar de modo total e completo.
O tempo na cidade havia acabado, repetia para si mesma olhando ao redor, a casa, as coisas, tudo indicava o que ela já sabia: aquilo não era mais suficiente. As manhãs corridas, o bater ponto na repartição, a conta bancária equilibrada e os boletos pagos, nada daquilo fazia qualquer sentido mais. Quando decidiu por desistir do próprio cargo público ouviu um sem-fim de discursos que ponderavam, que tentavam em vão fazer com que ela aguardasse a aposentadoria. Nada lhe seguraria mais, a sua necessidade era outra. Se pôs a caminho de sua nova casa em uma quarta-feira e nunca se sentiu tão livre, nunca se sentiu tão dona de si mesma.
Enquanto o céu se desnudava em azuis, a estrada seguia vazia, Vera tentava se recordar, mas já nem conseguia lembrar direito como era a própria casa quando decidiu se mudar, era uma coisa miúda e úmida, completamente diferente. Hoje em dia já não lembrava mesmo, talvez por não saber como eram os detalhes do apartamento que tinha morado durante mais de vinte anos, Liz tinha dado seu toque ao lugar e isso implicava em mudanças constantes de móveis, sofás, itens de decoração e novas fotografias penduradas nas paredes. Sempre se impressionara em como a própria cria tinha um olhar sensível e um senso de coletividade, sabia que tinha passado alguns desses valores para a filha, mas não esperava que fosse levar tão adiante, afinal a família paterna de Liz a tratava de modo mimado e atendia todas as suas vontades. Como única neta, Liz tinha privilégios que nem ela e nem mesmo o ex-marido conseguiam controlar.
A viagem ia acontecendo em meio às próprias lembranças, histórias quase esquecidas de uma vida que nem parecia de si mesma. Lembrou do parto da Liz, do divórcio, de como foi difícil se ver sozinha, ou praticamente sozinha, com Liz ainda pequena. O pai dela estava lá, era parceiro nas decisões que precisava ser, mas a rotina, os nãos e os sim eram todos de Vera. A relação com Liz nem sempre foi boa, mas nunca foi horrível, era uma boa garota, generosa e esperta, talvez até madura demais para sua idade, desde muito nova assumiu responsabilidades que uma outra Vera lhe colocava, uma mãe que talvez naquele momento não compreendesse as necessidades da própria filha.
Respirou fundo, já vendo o reflexo do Sol no asfalto, nem tinha se dado conta, mas faltava pouco para a chegada, as cidades no caminho já estavam acordadas, carros começavam a circular pelas estradas e seus pensamentos se misturavam entre a angústia e o medo de perder a filha, única filha, e os mantras que se repetiam no auto falante do carro. Nem toda meditação a havia preparado para um momento como esse, imaginar a dor de Liz e seus dias de recuperação lhe movimentava o estômago, aquela sensação que há muito tinha parado de existir, definitivamente era mais fácil se sentir minimamente iluminada e em paz em seu casulo, pensou.
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Caminhos Cruzados
RomansaNarrar uma história é, de certa forma, brincar com a imaginação e organizar o tempo e as palavras. Em Caminhos Cruzados, os tempos se misturam e dançam em sua própria música. Dora, Liz , Carol e Thiago dão o tom dessa jornada e descobriremos junto...