O estranho sobre acidentes e momentos de grande trauma é que a vida continua, Dora pensou enquanto se arrastava da cama em direção ao banheiro.
O dia nem tinha amanhecido e Dora já estava de pé. Junto com a preocupação de como seria sua rotina que, apesar da tentativa, ainda tinha compromissos demais, e agora, para piorar, ainda existia uma sensação irritante que insistia em não ir embora.
Ter sido completamente invadida pela presença de Liz depois daqueles meses todos não era algo que ela estava pronta e nem um pouco preparada. As últimas palavras trocadas entre as duas tanto tempo atrás ainda reapareciam como uma propaganda chata que ninguém conseguia fechar ou se livrar. Era impossível não rever o olhar de decepção dela, penetrante, intenso.
Aquele medo, ansiedade e a constatação óbvia de que Liz estava de novo ali, tão perto, tão presente, não lhe deixava silenciar a própria mente. O cansaço, as dores de um plantão dobrado, a cabeça pesada, nada era suficiente para que seu corpo só relaxasse e dormisse.
"Você sabe que não precisa ser assim..." o rosto fechado, os lábios tensos, a expressão que em nada combinava com Liz estavam ali. A memória lhe atingia em cheio e os detalhes minuciosos eram quase uma tortura.
Lembrava ainda de sua tentativa de argumentar em meio ao choro sentido que a decisão não era só por capricho, que era inevitável ter que escolher daquela forma. Suas dores, seus traumas, eram ainda maiores do que a sua vontade de só estar ali e apoiar Liz, esperando ela voltar, se voltasse.
"Eu não vou então" Liz dizia em tom seguro, claramente convencida de que a situação se resolveria ao renunciar a uma oportunidade enorme e única. Dora sorriu lembrando os inúmeros argumentos, a barganha de Liz, mas sabia antes, e ali também, o quanto achava errado aceitar ou impor isso à sua namorada, não era justo e nem certo. Como não pareceu certo também procurá-la após seu retorno.
O silêncio da madrugada era rompido pelo estalar dos móveis de madeira, pelo zunir baixo da geladeira, a escuridão da cozinha era invadida pelos leds do micro-ondas e antes que pudesse chegar lá, conferiu o quarto de Malu, estava intacto, a criança de pijama completamente descoberta. Sono agitado era um claro sinal de que Malu estava processando toda aquela mudança na própria vida, tinha certeza que rever Liz desencadeara algo ainda sem explicação na pequena. Reconhecia naquela agitação quase silenciosa o amadurecimento de algumas ideias que surgiriam depois de alguns dias. Já se preparava para explicar e responder os inúmeros por quês que a garota despejaria na mãe.
Dora se justificava dizendo que, em parte, não procurou Liz de novo por Malu, por não querer que a vida da filha fosse invadida pelas suas confusões emocionais. Por mais que soubesse que Malu e Liz tinham uma relação própria, não precisava ser como era antes e talvez fosse melhor assim. A menina a viu ir embora e a viu voltar, sabia que o contato entre elas continuava por meio da própria irmã, não iria impedir nada disso, mas se mantinha distante.
"É só uma desculpa de merda", repetiu para si mesma pensando sobre isso. Suspirou. Seu rosto carregava a dúvida, a culpa e a saudade.
Sentia saudade da vida que levava quando Liz estava ali, da bagunça organizada de coisas que ela levava e deixava em casa. Da forma que ela cantava músicas infantis toda manhã para tentar fazer com que Malu não ficasse irritada em se arrumar e ir para escola. Do jeito que ela tinha trazido manias e rotinas para a casa, como dividir maçãs e tangerinas com a criança. Sentia falta da tranquilidade de chegar em casa de madrugada e ver Malu dormindo, Liz aconchegada em um canto da cama com um livro aberto e o abajur acesso. Às vezes acordada, às vezes não.
De repente seu olhar analisou cada espaço da própria casa como se todo canto pudesse ser um pouco dela. A insistência por uma decoração adequada depois que Bruna havia ido embora, a companhia nas idas às lojas, a pasta compartilhada do Pinterest com referências e ideias, "só pra você descobrir o que quer de decoração", ela disse justificando o que achava ser uma intromissão.
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Caminhos Cruzados
RomanceNarrar uma história é, de certa forma, brincar com a imaginação e organizar o tempo e as palavras. Em Caminhos Cruzados, os tempos se misturam e dançam em sua própria música. Dora, Liz , Carol e Thiago dão o tom dessa jornada e descobriremos junto...