LIZ

10 0 0
                                    

"Liz, corre aqui, não tô conseguindo arrumar esse trecho", gritava Helena do outro lado da sala em súplica. "Helena, eu já te falei que tá ótimo, para de surtar...", Liz garantia à colega de trabalho e grande amiga que seu texto não tinha defeito algum. A calma costumeira quase dava lugar a impaciência. "Mas, Liz, tem alguma coisa, não é possível...", ela repetia com olhos fixos no parágrafo do novo artigo que escrevia e que estava previsto para ser colocado no portal de notícias em algumas horas, poucas, bem poucas horas.

"Helena, pelo amor de Deus, eu já olhei, João já olhou, até o Carlos que nunca olha nada dessas coisas se deu o trabalho... Aceita, amiga" – Liz respondia com afeto, mas uma leve impaciência na voz. "E outra, ficar mexendo no que tá bom acaba tendo que mexer no texto todo, esqueceu? Começou ontem?" riu de Helena, tentando dissipar a angústia da amiga com a lembrança de que havia um prazo em mente, porque sempre há um prazo em mente em uma movimentada redação jornalística.

"Tá.... Mas...", Helena ainda não estava contente. "Larga de mão, Helena, vai ao ar e eu preciso que esteja organizado com as imagens... Cadê as imagens? Ô Carlos!", gritava o editor chefe da redação. O tanto de gente no lugar já nem se justificava, falavam por aí, era um portal de notícias em uma era digital, diziam alguns, mas ali não, ainda existia um ar de redação de jornal impresso e era isso que encantava Liz, o corre-corre, as pessoas que iam e vinham, os mais diversos assuntos sendo discutidos em corredores e cantinhos de café. As plantinhas de alguém que algum dia tinha passado ali e agora eram de todos no escritório, os cafés aguados que eram feitos pelo João, as inseguranças e a ajuda mútua, os milhares de "lê aqui e vê se dá pra entender o que quero falar" com "você viu que...", era um ambiente vivo, intenso, com prazos apertados, desespero e tudo isso de modo coletivo. Nada de cada um na sua casa, manda pro editor e ele segue a vida. Não, ali respirava ares de caos e Liz se via completamente encaixada.

Um dia, quando ainda estava na faculdade, um colega lhe falou da oportunidade de trabalhar nesse local: "só vai ter estagiário lá escrevendo, aposto", disse em tom de desdém. E era o caso mesmo, eram estagiários, um monte deles, dois jornalistas que já se foram, Carlos, responsável por toda a parte de arte e diagramação e o Luiz, que antes era jornalista e virou o editor-chefe. Estagiário algum tinha acesso aos grandes responsáveis, nem mesmo Carlos conversava com eles, era tudo bem menos coletivo. O tempo passou, os jornalistas saíram, Liz se formou e continuou, assim como Helena e João. Os três hoje tinham os seus próprios estagiários, conheciam absolutamente toda a cadeia de ações e quebravam galho de diagramadores nas horas vagas, mesmo tendo que aguentar Carlos didaticamente ensinar o que estava errado em todas as vezes, em absolutamente todas as vezes, nada passava ao crivo de Carlos.

Hoje era mais um dia de correria, mas ao final desse dia encontraria amigos no bar. Terceira coisa que mais gostava, depois da redação e de mulheres. Liz era uma mulher completamente solta, solteira e jamais sozinha, vivia cercada de pretendentes, não se gabava, porque não era disso, mas sabia que se a carência batesse teria para quem ligar. Nunca andava só, sempre em bando. Amigos? Nem sempre, mas vários e vários conhecidos de baladas e bares. Estava sempre disposta a nunca acabar o rolê, como ela mesma dizia, a noite nunca terminava e quando terminava mais cedo, normalmente não era na sua própria cama.

"Liz, corre aqui!" falava João de modo apressado e urgente, o que a fez levantar a cabeça por cima do monitor que mostrava uma página em branco, um cursor piscando e o que seria, talvez, o início de uma nova história. "Vem logo!", chamava ele. Arrumando os óculos de armação vermelha, se levantou, sempre carregando a caneca de café com desenhos quase apagados, que um olhar desatento nem perceberia que um dia existira.

- Helena, mostra pra ela – dizia ele empolgado.

- João, deixa de ser bobo! – Helena reclamava do companheiro de trabalho.

- O que é, gente... – Liz questionava meio desligada, sem grandes curiosidades, já esperava que fosse qualquer bobagem entre eles.

- Saca só, que horas são? – riu com cara de sapeca.

- 16h30, João, por quê? – Liz respondeu ainda sem saber direito onde aquela conversa ia chegar.

- Helena, cadê o texto? – ele perguntou completamente animado.

- Já mandei, ué. – Helena respondeu como se não fosse nada demais – O que? – disse ao verificar a reação dos amigos.

- MENTIRA! – Liz respondeu já rindo e sabendo que ali existia um bullying acontecendo.

- VERDADE! – João disse, já rindo, empolgado e fazendo com que Helena revirasse os olhos.

- VOCÊ MANDOU O TEXTO COM QUASE DUAS HORAS DE ANTECEDÊNCIA? – Liz gritava e batia palmas como se fosse a maior novidade dos últimos tempos.

- Mandei... Ah, gente, para! – Helena dizia rindo também – Nem é sempre que isso acontece, mas acontece, sabe? Hoje eu tava a fim de chocar a sociedade – gargalhou de modo gostoso com os amigos.

- Parabéns, Lena, você sempre arrasa! – Liz disse enquanto amassava a amiga em um abraço e beijava suas bochechas – E falando em 16h30 eu devo sair mais cedo hoje. Vou encontrar um... – antes que terminasse a frase João e Helena completaram "pessoal no bar".

A conhecida boemia de Liz já fazia parte de sua rotina, sair mais cedo, chegar mais tarde, os horários flutuavam conforme o que a noite trouxesse, mas, independente disso, sempre cumpria seus prazos e tentava dar o melhor de si para que seu trabalho ainda fosse algo memorável.

- Ah, para, gente! Faz um tempo que eu não saio mais cedo e vou pro bar... – disse como quem se desculpava.

- É, agora você vai pro bar mais tarde – riu João.

- Sim – ela disse enquanto voltava para sua estação de trabalho – Mas hoje não consegui render nada, devia nem me animar tanto em sair mais cedo – reclamou baixinho.

A realidade é que a pauta atual sobre "vida cotidiana" estava lhe tirando as palavras, literalmente. Ela não tinha ideia do que escrever, a mensagem do editor era clara: vida cotidiana que não seja bares ou festas. E nada mais. Já estava se perguntando há dois dias qual o caminho a seguir, o que falaria, sobre que personagens ou ações, não sabia qual ângulo abordar assim de pronto. Queria falar sobre pessoas interessantes, mas não queria abordar algo comum, queria dar tons críticos, como sempre tentava fazer em seus artigos. A página em branco não era comum, sempre tinha muito a falar, sobre o que quer fosse, era uma ávida pesquisadora de fatos, furos e conversas de corredores, mas dessa vez parecia que um grande branco surgira na sua mente.

O visor do celular se acendeu, abriu o aplicativo de mensagem e, apesar de todas as milhares de conversas e grupos ativos, focou em apenas uma: "Que horas passo aí pra te buscar?", riu e lembrou que hoje iria encontrar seus dois amigos, bons amigos, em um raro momento em que os três conseguiram arrumar tempo. Se limitou a responder que iria em casa e aí sim os encontraria no bar. Bloqueou o celular, bufou em clara revolta com a tela em branco, mas sentou e se deixou vagar pela internet, em busca de textos e notícias que inspirassem qualquer coisa para colocar na tela em branco.  

Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora