O despertador tocou aquela manhã e, além dele, o segundo tocou também, mas agora batendo à porta:
- Carol, filha, você vai se atrasar... De novo
- Já vou, mãe – resmungou uma jovem cansada e sem qualquer intenção de se levantar.
- Você viu que – a mãe começou a falar qualquer notícia, ela só precisava confirmar que tinha alguém em casa para começar diálogos que mais pareciam monólogos sobre todas as notícias que ela já tinha visto entre 6h e 7h30 da manhã.
- Mãe, eu acabei de acordar... É claro que eu não vi! – disse impaciente, mas a falta de vontade de levantar não permitia qualquer reação mais evidente de desgosto.
Carol vivia com sua mãe, uma pessoa incrível, que a vida maltratou o suficiente para torná-la rígida e ao mesmo tempo forte, era daquele tipo de mulher que dava orgulho aos filhos, mas também alguns traumas leves, nada que uma terapia muito bem paga não resolvesse. Carol, como uma boa filha mais nova, era o chamego da mãe, tinha regalias, mas também assumiu ser a companhia da mãe em praticamente tudo, inclusive em acordar e aguentar todas as notícias do noticiário local e nacional.
- Mãe, você viu aquela minha blusa branca com botões pretos? Hoje vai um cliente super chato – perguntou enquanto remexia nas suas roupas no guarda-roupas.
- Eu lá sei, Carolina, procura no outro quarto – disse com completo desapego pela urgência e necessidade da filha.
- Ah não... Se tiver lá eu nem quero mais, aquele quarto virou uma zona de guerra e bagunça – disse inconformada com a possibilidade de ter que procurar qualquer coisa no terceiro quarto do apartamento – Oi pai – passou pelo corredor em busca da lavanderia da casa, era a última esperança.
- Oi filha... – respondeu sonolento e tentando entender o que estava acontecendo – Bom dia, Mônica – disse para a esposa.
- Bom dia, você viu que... – e começou o monólogo de notícias matinais enquanto o marido enchia uma xícara de café e tentava ainda chegar ao mundo, ele é desses que demora a acordar, mas ouvia pacientemente toda e qualquer notícia que já tinha visto, só para deixá-la feliz.
- Mãe, todo mundo já viu essas notícias, você tá dormindo cedo demais! – reclamou Carol enquanto voltava da área de serviço, passando por eles e aproveitando para dar um beijo em sua mãe.
- Mas eu quero comentar, oras! – Mônica disse inconformada – Seu pai não reclama nunca do meu diário de notícias! – gritou vendo a filha entrar no quarto – Que menina chata, gente! – disse enquanto se sentava à mesa e se servia de um pouco mais de café.
Em seu quarto, enquanto se arrumava ouvia pela porta fechada o murmurar de uma conversa entre os pais, pensava todos os dias em como é que eles se davam tão bem sendo tão diferentes. Era inegável a relação construída entre eles, parecia uma coisa que demandava tempo e paciência, algo que ela não encontrava em nenhuma de suas relações ultimamente. Tinha a estranha mania de se relacionar com homens imaturos ou loucos para casar, achava que era decididamente amaldiçoada no quesito relações.
"Caramba, vou me atrasar muito!" dizia enquanto tentava retocar a maquiagem, o cliente chato tinha uma fixação em sua aparência, todos os dias que aparecia para aprovar alguma campanha publicitária comentava algo e, por mais que parecessem elogios, nem sempre era. Lembrou-se que da última vez ele olhou fixamente para sua camisa estampada de bichinhos, comentou algo como "diferente" e "você é cheia de estilo", seus olhos reviraram só de lembrar.
Por pior que fosse as relações com clientes, Carol amava sua área, amava quando existia espaço criativo e podia realmente fazer algo interessante, pelo menos interessante pra si mesma. Era cansativo o dia a dia, muitas horas, nem sempre a remuneração desejada, pouca segurança, ninguém ficava por muito tempo em nenhum lugar, era algo da área, diziam, mas ela sempre sentia que estava na corda bamba, não importava o que fizesse e por isso também não queria sair da casa dos pais, não até que houvesse de fato uma estabilidade mínima para não ter mais que voltar. Não aguentaria sair e voltar, sua mãe a acolheria, mas teria um tom de pena e isso era completamente inaceitável e, pensando nisso, ia ficando até quando alguém a mandasse embora.
Riu sozinha da imagem que criou: seus pais arrumando suas coisas e deixando-a de fora, com malas e sua luminária, afinal qual casal quase idoso gostaria de uma luminária de fantasma do Pac Man? Abriu um riso ainda mais largo imaginando a cena de seu pai com seu jornal e a luminária. Impagável, pensou sozinha.A hora não parava de correr nos ponteiros do relógio, a ideia inicial era chegar cedo e sair cedo, mas não tinha começado nada bem. A tal da blusa branca com botões pretos e seu sumiço não só gastou tempos preciosos, como gerou uma dúvida enorme sobre o que vestir naquele dia. Arranjou uma camisa qualquer, se arrumou e deu-se por satisfeita, era mais que suficiente. E hoje não tinha bichinhos estampados, só florzinhas brancas em uma camisa azul marinho.
Abriu a porta de repente e uma lufada de ar invadiu o quarto. Correu pelo corredor e, ao passar pela mesa, roubou uma torrada que não era sua. Saiu mastigando, com sua bolsa no ombro, computador de lado, deu beijo em seu pai que lia o jornal, um dos poucos que ainda comprava jornal impresso, gritou beijos no ar para a mãe, que estava em algum lugar fora de sua vista, e partiu rumo ao elevador, o vento frio do hall a fez se agasalhar rapidamente com um cachecol.
- Ei! Bom dia! – falou para a irmã que chegava.
- Papai tá em casa? – ela disse com as mãos ocupadas e com claras dificuldades de abrir a porta.
- Sim, tá sim. Toca aí! Beijo, deixa eu correr! – disse enquanto beijava as bochechas quentes da irmã e entrava às pressas no elevador.
- Sábado tem... – ela disse alguma coisa que não conseguiu entender direito, mas imaginou que era jantar ou almoço em família, sua irmã sempre inventava uma coisa do tipo.
Após alguns minutos desistiu de tentar adivinhar a ocasião de sábado, mandaria mensagem depois a fim de descobrir, o foco agora precisava ser outro. O importante era não se atrasar e ela tentava manter a ansiedade em controle: uma coisa de cada vez, Carol, uma coisa de cada vez, repetia para si mesma. Ligou o carro, saiu da garagem escura e foi invadida pela luz do Sol e uma sensação de que tudo iria dar certo a invadiu no mesmo instante. Respirou fundo e encarou seu dia com bem menos indisposição.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Caminhos Cruzados
RomanceNarrar uma história é, de certa forma, brincar com a imaginação e organizar o tempo e as palavras. Em Caminhos Cruzados, os tempos se misturam e dançam em sua própria música. Dora, Liz , Carol e Thiago dão o tom dessa jornada e descobriremos junto...