CRUZAMENTO

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Vista de cima, uma cidade pode parecer um emaranhado de linhas, são pistas que ao anoitecer somem e pacientemente vão ressurgindo junto aos pontinhos amarelos dos postes, que misturados as lanternas vermelhas dos carros, mais parecem um grande organismo em pleno funcionamento, a cidade, essa senhora que assiste o ir e vir de pessoas, não se abala com pouco, continua sua rotina, independente do riso ou choro de uns e outros.

A noite corria devagar, Dora seguia rumo a casa de seu pai, buscaria Malu, a cidade e seu trânsito não tinham qualquer simpatia pela sua urgência, pelo seu atraso e castigava na lentidão. Ainda não sabia, é claro, que o rumo mudaria em questão de segundos, que o atraso não seria mais tão importante e nem sequer figuraria entre os acontecimentos da semana. Ela ainda não sabia, ali, parada, que o encadeamento dos fatos mudaria tudo por um bom tempo. Vindo de outro lugar, mas rumo ao mesmo ponto, Carol também não entendia a lentidão que não tinha qualquer compaixão com a sua pressa de chegar e tão rápido sair, prevendo o atraso ligou para avisar que não chegaria na hora combinada.

Thiago aguardava a amiga e seus doze minutos já na calçada, completamente absorvido no Twitter e nas notícias do dia, Deputado Igor era assunto proibido a partir daquele momento e isso era inegociável. Tentava convencer Diogo a encontrá-lo no bar, mas era inútil, Fernando estava chegando de viagem e não ia querer sair. Pensava em como os dois tinham se conhecido, se achava um estranho por querer um amor que não viesse por meio de aplicativos ou mesmo de uma balada, mas não conseguia visualizar uma relação como a deles, companheira e duradoura, saindo de lugares como esses, eram outros tempos, dizia pra si mesmo. Ao levantar a cabeça viu o carro de sua amiga fazendo o retorno ao longe, o pontinho vermelho em meio aos carros prata e branco se destacava quase plasticamente. O sinal fechado faria com ela demorasse mais do que os doze minutos previstos e isso seria usado com toda certeza em tom de deboche.

Como em um passe de mágica, ninguém conseguiu entender exatamente o que aconteceu, mas de repente havia um carro girando na pista, uma moto sendo atingida e deslizando por cima da calçada. Várias pessoas corriam com medo do veículo, outras gritavam em desespero, uma confusão se instalara e o trânsito que já não era bom, ficou ainda pior. Thiago estava deitado no chão, seu celular não estava mais em suas mãos. Abriu os olhos e sentiu o líquido quente escorrer entre seus dedos, transeuntes perguntavam se ele estava bem, não sabia nem o que estava acontecendo, sequer se estava bem. Achava tudo muito estranho e quando tentou se levantar, sentiu uma mão segurá-lo firmemente "fica quietinho, já ligaram pros bombeiros", uma senhorinha simpática dizia. Olhou ao redor como quem acordara de um sonho confuso e conseguiu entender apenas que algo não tão bom havia acontecido, um zumbido em seu ouvido indicava que sua adrenalina estava alta, tão alta que não sentia uma dor sequer, só o líquido quente que insistia em escorrer entre os dedos da mão esquerda. Sua bolsa, estilo carteiro, continuava presa ao seu corpo, mas afastada de si, semiaberta, uns papéis no chão, o celular não estava por ali. Tentou falar algo sobre isso, mas percebeu que só balbuciava palavras desconexas, parecia que desaprendera a formar frases. Apareceu uma jovem de cabelos em trança e lhe entregou o celular "você quer que ligue pra alguém?", perguntou tentando ser solicita. Ele não sabia, não havia ninguém em mente, pensou em sua mãe, mas ela estava a quilômetros dali, só a deixaria nervosa e ela não poderia resolver nada.

Enquanto Thiago estava deitado, o motoqueiro também era contido, mas não por transeuntes, ele não entendia direito o que a moça de branco lhe falava, Dora tentava orientá-lo a não levantar, não tirar o capacete, dizia algo sobre estabilizar a cervical e outras coisas que ele não entendia, procurava sua moto e não a enxergava no campo limitado de visão. Ouvia a moça de branco conversando com outras pessoas "ligaram pro SAMU?" ela perguntava, ninguém respondia. "192, liga pro 192 rápido!" dizia e era possível ouvir toda a aflição em sua voz. Uma vez que verificou o motoqueiro, ela correu para Thiago, ainda sem saber que o rosto seria de um velho conhecido. "Você está bem?" perguntou ainda sem prestar atenção e continuou "eu sou médica e..." se calou percebendo que era Thiago um dos melhores amigos de sua irmã. "Thi, sou eu, Dora... Vai ficar tudo bem, fica quietinho" disse tentando acalentar o rapaz que agora enchia os olhos de lágrimas, alguém conhecido, ele pensara. "Alguém conhecido, não vou morrer sozinho" e a ideia de morrer ali, em meio ao caos lhe assustava completamente, fazendo arder seus olhos, mas era Dora, a Dora estava ali. Enquanto tentava explicar da dor na mão, do sangue que escorria e percebia que Dora estava ali, com sabe Deus o que, enrolando algo com cuidado, mas com pressão, lembrou do carro de Liz. "Dora..." falou devagar "o carro..." e ela levantou os olhos do que estava fazendo e prestou atenção "a Liz".

As palavras de Thiago se somaram a chegada de paramédicos e bombeiros, eles correram para as vítimas deitadas na calçada, Dora ainda nem tinha se aproximado dos carros, não tinha conseguido, de um deles, de relance, viu sair um motorista completamente atordoado, falando que não tinha visto, que não tinha entendido o que tinha acabado de acontecer, mas claramente se explicava porque sabia, pela reação das pessoas, que a culpa era completamente sua. "Moça, moça!" alguém cutucava Dora, que agora tinha dado espaço para os profissionais estabilizarem Thiago, "a menina do carro" e Dora não conseguia parar de pensar que era Liz. Respirou fundo e foi em busca de ajudar no que pudesse, os passos eram pesados, não de cansaço, nem de medo, eram pesados porque, apesar de saber do seu compromisso médico, era a Liz.

- Liz, Liz... Tá me ouvindo? – a voz não saiu como ela gostaria, talvez faltasse potência vocal, talvez faltassem as palavras. O vidro trincado não indicava que tivesse sido algo simples.

- Você conhece? – perguntou o bombeiro que avaliava como tirar a vítima de dentro do carro.

- Sim... – ela disse pensando no que estava acontecendo – Eu sou médica, em que posso ajudar? – ofereceu ao rapaz que cuidava da situação com maestria.

Liz, estava completamente atordoada, ouvia uma conversa lá fora, a voz era familiar, mas sua cabeça pesada e dolorida não deixava que ela se concentrasse em nada disso. A sua vontade era só de fechar os olhos, uma vez que as luzes lhe doíam a alma.

- Liz, você tá me ouvindo? – Dora tentava mais uma vez algum tipo de resposta.

- Senhora? – o bombeiro tentava comunicação e não tinha grandes resultados – Vamos ter que tentar tirá-la pela porta do motorista... – definia a estratégia e comunicava a si mesmo, como quem pensava alto demais.

Enquanto ele preparava todo o aparato e orientava seus colegas, Dora assistia ao longe uma Liz se mexer bem pouco e balbuciar palavras tão baixas que ela não conseguiu ouvir.

- Quer ir com ela na ambulância? – perguntou o bombeiro.

- Sim, claro – disse de modo automático – Cadê o... – antes que pudesse completara frase, o rapaz logo respondeu.

- Já foi. As vítimas da calçada já foram para o hospital – e ela assentiu confirmando que havia ouvido.

E correu até seu carro, estacionado de qualquer jeito, para pegar sua bolsa. Lembrou de Malu e seu pai. Discou o número de casa, nem sabia que ainda lembrava de cor. "Alô?" atendeu Carol. "Carol, avisa ao papai que a Malu vai precisar dormir aí. Meu plantão acabou de recomeçar".  

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