TRAVESSIA

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Já era o fim do sexto plantão em 10 dias, algo que Dora costumava evitar, se não fosse um período tão estranho em sua vida. O sinal fechado deixava tempo para olhar ao redor, a propaganda dizia em letras garrafais: "O que a vida quer da gente é coragem" e sugeria um novo curso de graduação em uma universidade particular. Achava a ideia boa. A frase, fora de contexto e levemente alterada, lhe lembrou imediatamente do trecho de Grande Sertões Veredas e entre o sorriso, veio as lágrimas.

Se a memória não lhe traía, os anos às vezes enganavam as recordações, o trecho era sobre o correr da vida, o esquentar e esfriar e por fim Deus, esse ser supremo que Dora não duvidava existir, mas tinha suas ressalvas, queria ver a capacidade de aprender a ser alegre, inclusive ser alegre na tristeza. Sentiu pena de si mesma. Não só não conseguia achar a alegria na tristeza, exceto pelos poucos momentos que Malu lhe encantava, como decepcionava Deus diante da incapacidade de se sentir minimamente feliz.

Bruna havia ido embora e, além disso, o fizera da maneira mais complicada possível. O fim do casamento de pouco mais de um ano, sem divórcio, sem um fim propriamente dito, era como se fosse uma ferida que insistia em não cicatrizar. Um luto longo e difícil tomou os dias de Dora.

Pensava que o luto às vezes vinha em ondas, incessantes e sem grandes explicações. No meio do dia, durante uma atividade ordinária, o aperto no peito, a saudade, a solidão e o medo.

Medo de esquecer, medo de nunca mais passar. O medo e a tristeza se encontravam e se acumulavam em forma de lágrimas que caíam sem qualquer aviso. Era como se uma parte sua se desfizesse lenta e gradualmente. Era a eterna sensação de algo quebrado que não tivesse remendo possível.

Dora já não sabia exatamente quantos dias faziam, mas a sensação amarga de acordar com dor, com vazio e tristeza continuavam ali. Se sentia, além de triste, culpada, sem saber exatamente pelo quê e muito menos o que havia feito para que Bruna a abandonasse. Não sabia sequer se existia algo a ser explicado, mas ela precisava achar uma justificativa para que não fosse tão simples ou banal desistir de uma vida que foi sonhada, planejada e vivida assim de uma hora para a outra.

A ida para Viena foi comemorada, Dora sentia orgulho de Bruna, sabia que receber um convite para um doutorado era algo almejado por ela e, apesar do momento não ser tão favorável, a apoiou com entusiasmo.

No começo ainda se comunicavam minimamente, mas com o passar das semanas as trocas de mensagens e ligações foram ficando mais raras. Em uma manhã comum, com céu aberto e sem nuvens, Dora apenas recebeu o e-mail, aquele que explicava que Bruna havia decidido que aquela vida, a que ela havia escolhido viver ao lado de Dora e com Malu, não era para ela, que ela não se sentia bem vivendo como uma família e que precisava se encontrar de alguma forma.

Nos primeiros dias após ler e reler a mensagem, ainda tentou contato, procurou a sogra, ou ex-sogra, ainda era estranho pensar que seu casamento tinha acabado assim, por um e-mail seco e frio. Se questionava o motivo de Bruna precisar se distanciar quase dez mil quilômetros para tomar essa decisão. O que havia mudado? A relação nunca havia sido sequer questionada por ela. Não existiam indícios que justificassem a sua decisão, assim pensava. Dora inicialmente considerou que Bruna estivesse insegura ou mesmo perdida, que fosse uma fase de adaptação ao novo país, às novas possibilidades com o doutorado.

Dora ignorou o fato de que existia um plano traçado pelas duas em que ela faria primeiro a residência e depois Bruna iria ao doutorado. Ignorou que, mesmo rompendo o acordo e se inscrevendo na universidade de Viena com a justificativa de que gostaria de saber se teria chance algum dia, era para ser só um teste, Bruna lhe garantiu à época, aceitou o convite. E Dora reorganizou os planos, aonde Bruna iria primeiro, procuraria um apartamento e organizaria a vida para que depois Dora e Malu pudessem ir.

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