THIAGO

4 0 0
                                    

"Minha vida não tem mais jeito" digitava Thiago aos amigos que insistiam que ele saísse. Era quinta-feira, não tinha motivos para ele ficar em casa e passar horas procurando um filme ou série nas plataformas de streaming. Mesmo com o cansaço de um dia cheio, ele se levantou e começou a tomar banho.

O dia, que ainda não tinha acabado, havia começado cedo demais. Seu chefe, Deputado Igor, tinha solicitado um mar de informações, assim, à queima-roupa sobre um novo projeto apresentado por uma deputada de um partido de oposição. Esse era o trabalho, repetia para si mesmo todos as vezes que surgiam demandas do tipo. Ser assessor tinha lá seus desafios, mas em geral Igor era um cara bacana, apesar de tudo. Levantou mais cedo que o costume, tentou ler toda a proposta e fazer um resumo dos pontos que seriam mais divergentes às visões do deputado e o que ele poderia falar sobre o assunto. Pauta: proteção de dados pessoais. Enquanto a deputada defendia uma alteração na lei que trata do assunto, o Deputado Igor iria defender o setor que mais o ajudava em campanha, as empresas de telecomunicações.

Respirou fundo, enviou o resumo que conseguiu fazer, se arrumou, tomou café pacientemente. Seu celular não parava de vibrar, os outros assessores perguntavam coisas óbvias, que já estavam no documento que tinha recém encaminhado, mas ele continuava respondendo pacientemente. Era tudo para ontem, tudo devidamente mastigado e bem servido. Desconfiava que se mantinha no emprego porque era o único que se prestava ao papel de ler atentamente qualquer coisa.

Enquanto tomava café, se preparava para sair e ir ao gabinete do deputado, recebeu uma mensagem para que o encontrasse não no gabinete, mas na área onde se reuniam os repórteres, o excelentíssimo deputado que não leu sequer a proposta de sua adversária política iria fazer um longo discurso na televisão. Não acreditava que isso era uma boa ideia, mas Wagner, o assessor de comunicação do parlamentar, tinha insistido que ele precisava aparecer na mídia em cima desse tipo de pauta.

Coçou a cabeça ao ver a situação que estava posta, não tinha o que fazer e nem como abandonar esse barco furado, levantou-se calmamente da mesa, não adiantava muito correr, deixou uma salada de frutas pela metade, jogou de novo na geladeira, o apetite já tinha ido embora a essa altura e nem eram 10 horas da manhã. E com um gosto amargo de quem sabia que o dia seria longo, saiu de casa, se despedindo de Louis, seu gato preto que tomava banho de Sol na janela e não estava nem aí para o caos do mundo.

- Às vezes, Louis, eu invejo a sua capacidade de foda-se – disse e fechou a porta, trancando para que em breve, Dona Neide a abrisse novamente para arrumar a casa quase inabitada.

Tal como papagaio de pirata, Wagner aparecia atrás do Deputado Igor, se punha ali para ajudar em alguma coisa. Na mente de Thiago corriam todas as possíveis manchetes e a trabalheira que daria, tudo isso porque o Deputado queria se aproveitar de um assunto que nunca sequer propôs para ser visto.

Do pronunciamento para a televisão, o Deputado emendou em conversa com parlamentares da sua mesma base, não ia a lugar algum sem Wagner e Thiago, a quem tinha profundo apreço, mas não se deixava superar a hierarquia existente nas relações de trabalho. Wagner era o assessor que dava mídia, o fazia ser visto, nem sempre da melhor forma, mas ele aceitava porque "quem não é lembrado não é eleito", frase do Wagner repetida tantas vezes que já parecia do próprio político. Já Thiago pensava que há formas e formas de ser lembrado, fazer papel de defensor de empresa em plena televisão talvez não seja o melhor para ser eleito novamente, mas guardou para si suas críticas e perspectivas.

Do café da manhã para o meio da tarde foi um pulo. A correria das redes sociais, junto às inúmeras respostas aos jornalistas consumiram praticamente todo o tempo do dia, o que restou era destinado a telefonemas, levantamento de dados, respostas prontas à imprensa, a realidade é que o Deputado Igor saiu da calmaria para o caos, simples assim, em segundos.

"Tudo certo pra hoje a noite, né?" – perguntava Diogo, melhor amigo de Thiago, sobre a programação que fariam, uma baladinha simples, era o que ele jurava toda vez, mas sempre acabavam saindo de manhã cedo.

"Sei não, Di, a coisa tá insana aqui" – respondeu Thiago pensando que não teria energia para sair em plena quinta-feira.

"Thiago, deixa de chatice. É quinta! Amanhã Papi Igor nem trabalha!" – respondeu Diogo, se referindo carinhosamente ao chefe de Thiago.

"Vou ver, Diogo, vou ver. Não inventa nada demais, nem tenho energia pra isso" – se limitou a dizer, já aceitando o convite do amigo – "E para com essa porra de Papi Igor, pelo amor de Deus!" escreveu rindo do amigo.

"Ninguém tem culpa se ele é um ursão gostoso, Thi" – ao ler Thiago riu imaginando Diogo, com suas caras e bocas, falando isso, quase com ar de sacana, mas mais para menino aprontando mesmo.

A tarde seguiu e quando tudo parecia não acabar mais, o deputado encerrou os trabalhos pelo dia, disse que o objetivo era deixar a imprensa querendo saber mais, gerar curiosidade sobre o assunto e aí sim apareceriam novamente. O partido estranhava o posicionamento do parlamentar, mas não seria Thiago que lidaria com as divergências dessa vez, Wagner tratou de tomar a frente, mesmo sem qualquer noção de como apaziguar os egos e ânimos de políticos graúdos.

Ao chegar em casa, Thiago se deparou com Louis sentado em frente à porta, quase como se soubesse que ele estava para chegar. Logo que entrou tratou de tirar os sapatos e jogou o corpo cansado no sofá, a casa, arrumada e limpa, trazia quase uma paz de como se a vida tivesse algum tipo de controle, algum tipo de ordem. Seu celular continuava a vibrar, sabia que era Diogo e tinha preguiça de pensar em sair, mas talvez lhe fizesse bem, sua casa silenciosa e escurecida trazia à tona uma solidão que ele não queria sentir.

"Minha vida não tem mais jeito", digitou e se levantou de modo quase moribundo rumo ao banheiro. Sairia, quase como para que não tivesse que encarar a si mesmo sentado ali, numa vida que parecia desconhecer. "Nada de voltar de manhã, Diogo, pelo amor de Deus!" digitou já sabendo que era inútil pedir, nunca acontecia como ele planejava. Uma coisa sempre emendava em outra e acabava que o dia raiava de mansinho.

"Meu amooooor, a noite é muito curta às vezes!", Diogo respondeu e Thiago sabia que o pique do amigo era inabalável.

"Eu não tenho mais pique, nem idade e nem forças, Diogo" respondeu enquanto passava pela casa escura, apenas iluminada pelos postes do lado de fora e a luz de seu celular.

"Thiago, entenda, o pique da bicha brasileira é o que ainda sustenta esse país!", Thiago gargalhou com a conclusão e se conhecia bem o amigo sabia que nesse momento ele puxou o Thi, carregou o sotaque nordestino, e com a calma colocou o entenda na frase.

A noite correu como sempre, bebidas, conversas e um Diogo com a difícil missão de animar seu amigo.

- Diogo, você tem o Fernando, você tem algo melhor que ir para festa. Eu venho porque é melhor que ficar em casa – Thiago disse enquanto olhava todos ao redor bebendo, flertando e, obviamente, se pegando.

- Fernando nem na cidade está, Thiago. Ele mais vive fora do que aqui – o tom era de brincadeira, mas no fundo existia uma clara reclamação.

- Eu queria um alguém, nem que ficasse indo e vindo – desabafou Thiago – Ou queria ser que nem o Mateus, olha ali – apontou com a cabeça levemente para o lado direito, mostrando o amigo dos dois em um tórrido beijo cinematográfico.

- Mateus não tá errado, né? Olha esse boy! E outra, você acha que eu encontrei o Fernando onde? No supermercado? Sentado em casa? – disse enquanto tomava mais um gole da sua caipifruta predileta.

- Mas... – Thiago tentou emendar algum argumento e foi brutamente interrompido por Diogo.

- Thiago, a vida tá passando, meu querido, se você não aproveitar as bocas pra beijar e a vida pra viver só vai sobrar Papi Igor, Dona Neide, eu e Louis na sua vida – disse em tom de brincadeira, mas a frase acertou em cheio Thiago. Era o seu medo, terminar sozinho. Revirou os olhos pelo Papi Igor, tomou um gole do energético, respirou fundo e olhou para o amigo e em um balançar de cabeça e um levantar de ombros, acabou lhe dando uma certa razão. Saíram em silêncio rumo à pista de dança, ali ele gastaria toda a angústia e o sentimento de vazio que insistia em invadi-lo nos últimos tempos.  

Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora