INTIMIDADE

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O cigarro queimava no meio dos dedos, a fumaça subia caprichosamente. A Lua era um fio só, algo como uma casquinha de luz, iluminava pouco, quase nada, dava espaço para que estrelas mais distantes brilhassem. Três e quarenta da manhã, Liz viu no relógio. O tic-tac invadia a madrugada. O quarto que antes era seu hoje ocupava uma cama simples e a porta fechada era o indício de que Vera estava na cidade e dormia ali. A madrugada fria escondia suas belezas, a névoa com gotículas, as luzes em tom pastel. Tudo tinha um novo tom para Liz, em parte pensava que podia ser a experiência de quase morte. Ria sozinha contemplando o que acreditava ser um sentimentalismo barato, um livro do Augusto Cury sobre como experiências modificam o olhar. Se achou piegas.

Procurava ver se havia algum planeta cintilando no céu enevoado, nada lhe havia chamado atenção. Observava a fumaça se misturar com o ar seco e gélido. Não sabia o futuro e nem queria afinal, pensava que um dia tinha saído do trabalho e ia ao bar, a vida capotou em alguns movimentos e lhe trouxe band-aid de desenho animado. O sorriso envergonhado de Malu lhe inundava a mente, os dedos miúdos com as pequenas unhas entregando a caixinha

Não era nova a sensação de ter algo novo surgindo, reconhecia no horizonte quando algo velho-novo surgia. Dessa vez sabia o nome e o sobrenome. Não que fosse difícil adivinhar, os anos de terapia lhe tinham dado algum rumo afinal, nem tudo estava perdido, ou escondido.

- Porra, Dora – disse baixinho, mais para o destino indecifrável do que para si.

Olhava fixamente a caixa de band-aid que Malu havia lhe dado deixada no móvel da sala há alguns dias atrás, era quase criminoso que algo tão inocente e fofo estivesse assim, deixado de lado, praticamente esquecido em um canto qualquer.

Passava os dedos pelas sobrancelhas em claro sinal de quem se dava tempo e tomava ar para situações difíceis. Era um desses de dias. Preferiria mil vezes um texto horrível, desconexo ou triste para revisar. Preferiria duzentas vezes uma história sem fontes e sem pé ou cabeça. Daria tudo de si para que fosse só mais um tempo estranho na redação, ou em sala de aula, ou em qualquer lugar, mas não ali. Não daquele jeito.

Ela não tem esse direito, repetia para si mesma. Ela não pode fazer assim, tentava se convencer.

E por mais que soubesse de todos os "ela não", sabia que nada disso lhe impediria de fazer o que queria, mas evitava encarar os próprios desejos.

Quais são as chances? Quais-são-as-chances? Repetia vagarosamente para si mesma. Por quê? Se perguntava e tragava rapidamente, como se para nebular as ideias que viriam da pergunta retórica.

Não faz sentido, tentava de convencer. Será?

Liz passou tempo demais no parapeito da janela. Tempo suficiente para acompanhar o dia amanhecer vagarosamente, praguejava silenciosamente a beleza de um novo dia. Não que não gostasse do que via, mas odiava o quanto ainda se surpreendia com a beleza improvável e inevitável de um dia qualquer. Se sentia traída pelos próprios sentidos ao perceber que todos os dias haveria algo diferente e fora de previsão. Seus sentimentos lhe traíam quando se deliciava com nuvens ganhando cores ou quando Dora lhe aparecia do nada. E depois desaparecia.

Do absoluto nada. Repetia para si mesma. Não se conformava. Como? Questionava a um pássaro parado na copa de uma árvore.

Quando ele alçou voo, sorriu pela não resposta.

Ouviu a porta do quarto se abrir, sua mãe caminhava arrastando os chinelos. Lentamente ouvia o arrastar ritmado dos passos se aproximarem.

- Achei que você tinha parado com isso – apontou a carteira de cigarro em cima do parapeito.

- Parei por um tempo, mas voltei esses dias – deu de ombros.

- Quer conversar? – a pergunta direta surpreendeu Liz.

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