Capítulo 19

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Como eu deveria me sentir?
 
Eu deveria sentir algo?
 
Eu estava ali há um tempo, mas creio que minha consciência me trairá se eu disser o tempo exato. Na verdade, me sinto traída pelo meu corpo inteiro. Estive esse tempo tão errada assim? Você olhou para os meus olhos como se eu fosse a sua salvação e depois me expulsa – ao que parece não só de seu quarto –, como se eu tivesse algum tipo de veneno contagioso. Minhas expectativas sucumbiram tanto a realidade assim?
 
Percebi que estava muito pior do que imaginei quando procurei dentro de mim resquícios de cansaço e não encontrei. Apenas vi a esperança morrendo sufocada em meio a toda minha lucidez. Mas, tive dúvida quem a matava. É bom dar nomes aos seus demônios, me parece uma forma de se domesticar. Talvez eu devesse jogar a culpa na bebida por toda minha ingenuidade, mas eu deveria saber que, se boa parte de mim morria tão impiedosamente, era você que estava a matar ela.
 
Toda essa melancolia tem a ver com o álcool, ou estou superestimando a situação? Ser eu requer um esforço que não faço ideia de onde tirar.
 
Ali, escorada no balcão, com um copo pela metade do que ainda não sei o que é, notei o quão vulnerável fico toda vez que me encontro com seus olhos verdes. Estou com raiva, mas não posso deixar de dizer que não me importei em ser transparente. Não é o caso de seu vazio ter ultrapassado a transparência; nossos vazios se encontraram como um amante da vida encontra o mar, mas se recusa a molhar os pés. Por que se recusou, Benjamin?
 
Caralho, eu estou muito bêbada.
 
No terrível tédio de se sentir inferior a todos os sentimentos confusos, virei o copo à boca na esperança de que eu pudesse me livrar de tudo. Quem sabe Deus os extinguisse pela minha inocência?
 
Fui até a pia, carregando o peso da esperança soterrada, e lá estava o que me fez salivar como um buldogue; a garrafa d'água fez com que meu corpo todo a desejasse com veemência. Logo estava sua frieza descendo pela minha garganta, enquanto solto um suspiro por matar a sede. Esperava que o líquido incolor pudesse me livrar do hálito alcoólico, mas nem sequer lavei o copo antes de enchê-lo novamente, agora com a pureza, portanto, ainda podia sentir ligeiramente o gosto da bebida.
 
Tentei respirar fundo para me reorientar e sair logo dali, daquela casa. Ouvi ruídos, e não sei dizer de onde vinham. Então, na súbita tentativa de me acalmar, embora estivesse em total falência de percepções, tombei o pescoço para o lado.
 
Ei, relaxa. Você está aqui e agora. Não, não pensa que está aqui. Você só está aqui. Ah, qual é, você sabe o que eu estou falando.
 
Até que meu corpo entrou em total desmoronamento. Eu estava alucinando ou estou sentindo o seu perfume amadeirado nesse momento? Um arrepio me percorreu dos pés a cabeça, e procurei por janelas, já que me parecia melhor acreditar que era o vento que soprava minha nuca do que acreditar que ele estava bafejando na minha pele. Ai, que merda.
Senti seus dedos tocarem na mecha que ocupava meu pescoço e a levar para junto do resto do cabelo que se recusava a ser preso. Um toque delicado de dedos quentes, e admirei esse fato. Então seu hálito ardente percorreu minha nuca, fazendo meu corpo passar por uma plena levitação. Quis dizer algo em protesto, apenas para não parecer que eu estava com tanta vontade daquilo, mas assim que seus lábios tocaram o lóbulo da minha orelha, suspirei tão intensamente que, se meus sentidos estivessem bons, poderia dizer que acabei gemendo baixinho. Ele riu. Seus dentes expostos pelo sorriso, tocam minha pele e tenho quase certeza que estou rindo também.
Ei, você pode se sentir aqui de novo. Deve.
Olhei para ele por cima dos ombros e me imaginei em outra ocasião, acabei sorrindo numa espécie de desculpas a mim mesma por pensar algo tão malicioso. Notei seu semblante mudar, estava me olhando daquele jeito que faz meu estômago esfriar.
 
 – Porra. Você fica ainda mais bonita nesse ângulo. – sorriu. Ah, Benjamin, não faz isso comigo. Afastei uma excitação quando ele mordiscou seu lábio inferior; talvez estivesse pensando o mesmo que eu. É claro que estava.
 
 – O que você está fazendo? – tomei cuidado para meu tom não soar incisivo. Ele estava me consumindo pelos olhos e tudo que pude fazer a respeito foi sussurrar uma pergunta tosca.
 
Ele me leu por um instante.
 
 – Fez essa pergunta para quem, aliás? – fui obrigada a desviar meu olhar. Ele é bom. Se esse é o preço que devo pagar por julgar as garotas que caíram na dele, que assim seja. – O que você está fazendo?
 
 – Hum, estava bebendo água. E você? – aderi ao tom cético; seus olhos sorriram junto de suas bochechas magras, e depois de admirar suas covinhas, vi uma beleza que ia além do esverdeado de suas íris.
Eu me sentia suada, como se tivesse corrido por cinco dias sem parar.
Ele agarrou minha cintura, me deixando tão perto de seu rosto que poderia contar seus cílios.
 
 – É um pecado te ver só com os olhos, Megan.
 
Seus lábios tocaram os meus, enquanto ele me puxava para cada vez para mais perto. Ainda que algo aqui dentro insistia para que eu agisse como se não quisesse aquilo, não conseguia afastar suas mãos percorrendo minhas costas, e se de algum modo o inferno me aguarde por isso, pelo menos estive no paraíso sem ao menos ter pisado lá de fato.
Sua pele estava tão quente que eu podia sentir todos os seus dedos por cima do tecido da camiseta.
Sua respiração estava pesada e fazia cócegas enquanto sua boca me devorava.
Benjamin agarrava o meu cabelo com uma iminência fervorosa, embora ele mantivesse o ritmo lento de nossas línguas. Levei minha mão ao seu pescoço e ninguém pareceu ligar para o quanto estavam frias.
Eu sentia urgência. Ele havia atiçado aquela garota. Não sabia que precisava tanto de alguém, alguém que agarre meu corpo assim, como se ele fosse inteiramente valioso. Algo em você me faz sentir uma mulher perigosa. Oh, Deus, estou tentando apagar fogo com gasolina? No caso, fogo com fogo?
Não sei que nome dar ao que me invade, ou ao que com tanto desespero estou invadindo. Estivemos prendendo uma fera perigosa, e ao sentir o gosto da liberdade, jamais voltará a ser a mesma fera domesticada. Existe um mundo lá fora esperando por ela, e aqui dentro há dois mundos que estiveram esperando um pelo outro. Ah, oi, romantismo, você fez falta por aqui.
Assim como numa guerra a bala se apaixona por seu inimigo, sei que só posso me interessar pelo que não conheço.
Assim que me senti totalmente desperta, notei que suas mãos estavam seguindo para minhas coxas, ainda que ele lutava para mantê-las apertando meu quadril.
 
Seu nome se repetia. Poderia ser o quanto estava entorpecida, mas não conseguia saber de onde vinha.
De fora, agora sei.
Interrompi o fervor de nossas feras recém libertadas.
 – Anna. – alertei. Desejei que ele abrisse um sorriso e dissesse que eu estava maluca. Seu semblante e enrijeceu. A voz o chamou novamente.
 
 – Mas que caralho.
 
Tirou suas mãos de mim e caminhou até a porta, murmurando palavrões enquanto bufava. Dava para sentir a raiva dele por ser interrompido, e mesmo que eu também estivesse um pouco chateada por ter acabado assim, fiquei excitada em saber que ele queria mais.
Meus pés descalços tocavam o chão frio, e admirei o contraste de temperaturas, enquanto eu o seguia até a sala.
 
 – Anna? – chamou-a, como se seu nome fosse um insulto, assim que a garota tomou conta de seu campo de visão. Ele não se importava em esconder seja lá o quê.
 
 – Ah, oi, Ben. – logo pude vê-la também; parecia cansada. Em uma nota mental, decidi que perguntaria depois se algo tinha acontecido. Depois que não fosse o momento em que você acaba de interromper sua amiga e seu meio irmão que estavam se pegando. – Esqueci minhas chaves.
Ela me encarou. Talvez tivesse sacado o que estava acontecendo.
 
 – Megan! Oi! Onde você estava?
 
Como eu poderia lhe dizer, se nem eu mesma sei?
 
                                           * * *
 
Eu imaginava que seria difícil se concentrar na reconciliação entre mim e mamãe com a cabeça no acontecimento de poucos minutos atrás. O motorista de Anna havia me deixado em casa, e agora que eu estava na frente da porta, com a mão na maçaneta, me perguntei se eu tinha sido tão má assim. Eu precisava mesmo pedir desculpas por ser eu?
Antes que uma resignação me invadisse, deixei me levar pelo incrível pensamento sobre aquela porta de madeira; o quanto parecia penetrável só porque tinha porta. O quanto humanos parecem compreensíveis só porque têm boca.
Então, a abri, porque já estava acostumada a me desculpar por isso.
Logo um latido ecoou pelo silêncio da casa. Miles veio correndo, e arranhou minha calça. É bom saber que alguém está te esperando voltar para casa.
 
Depois de ajoelhar e tentar acalmar o cachorro que parecia estar tendo uma convulsão – talvez pelo trauma de ser abandonado – mamãe apareceu. Desconfio que ela sempre estivera ali, observando.
A olhei, na esperança que ela visse em meus olhos toda dor que vem a tona quando a gente briga. Mas algo me diz que ela não viu.
 
 – Pensei que tinha dito para você não voltar. – sua voz estava embargada, talvez por segurar um choro há um tempo. Ela se sentou no sofá perto de mim.
 
Engoli a seco, tentando manter meu corpo nos pés, como se estivesse carregando um peso que não era meu. Mas era.
 
 – Mãe... – comecei, arrumando fôlego para não desabar em lágrimas. – Olha, eu sei que talvez eu não seja o que você esperava, e... sei lá, talvez por... ahn... as coisas que andam acontecendo por aqui estejam afetando nossa relação, mas...
Não conseguia me lembrar o que eu vim ensaiando a viagem inteira de volta para cá.
 
 – Eu não consigo entender porquê você está tão brava. Quer dizer, uma hora ou outra eu ia começar a sair e tal, não era isso que você queria? – me sentei, pois o peso que minhas pernas carregavam pareceu demais para mim.
E então, ela desmoronou ao meu lado.
 
 – Eu estou cansada, Megan. É difícil ver você crescer, entende? Eu não sei se posso te acompanhar, e isso me assusta. Me assusta você não precisar mais de mim como antes. Acho que a gente não tem mais aquilo.

No primeiro momento, aquilo me pareceu um drama tremendo. Ei, você não está na pele dela. Não chame de drama.
 
 – Sinto muito, mãe. – foi tudo o que consegui dizer. O nó na minha garganta estava ficando cada vez mais longe de se afrouxar, talvez porque eu concorde com ela.
 
O celular dela tocou, e eu até agradeci por isso. Precisava me recuperar logo, porque pior do que ver lágrimas nos olhos da minha mãe, é ela ver nos meus.
Mas ela não atendeu, e sua tensão aumentou.
 
 – Eu... Eu vou tentar melhorar, ok? Só... por favor, não vamos brigar mais.
 
Ela apenas balançou a cabeça, talvez porque sabia que a gente ainda brigaria bastante. Fugi para o quarto antes que uma nova discussão começasse. Toquei na porta e notei o tremor de minhas mãos. Estavam tão úmidas que tive dificuldade para girar a maçaneta. Depois de tentar as enxugar passando na calça, consegui entrar. Esperava encontrar a velha pilha de roupas há semanas entulhadas no canto, ou as meias sujas jogadas pelo chão, mas não. Tia Dora estava ali, dobrando uma pilha de camisetas em cima da cama.
 
 – Tia? – deixei a mochila na cadeira de escrivaninha. Ela se virou passivamente, como se estivesse me esperando.
 
 – Oi, Meg. – me analisou por um instante. – Conversou com a sua mãe? – desconfiei de todo aquele carisma. Teria ela esquecido tudo, de repente? Estava com medo, confesso. Estaria ela pensando em me matar com a manga longa da minha própria blusa?
 
 – Ahn... É, acho que estamos de boa. – balancei a cabeça, tentando parecer neutra. – O que está fazendo aqui? – tentei ser gentil, ao mesmo tempo que buscava por pontos fracos que poderia usar para me defender.
 
Voltou-se para as roupas.
 
 – Achei que esse quarto precisava de uma arrumação. – parou, admitindo para si mesma que deveria dizer mais alguma coisa. – E também queria pedir desculpa por tudo que eu disse. Imaginei que já seria demais para você estar brigada com a Lissie, e não queria que você carregasse mais um peso por minha causa.
 
Ok, hoje é o dia internacional do perdão e da paz, e só eu não sabia? E agora, a ONU deveria lhe dar um prêmio pela benevolência ou algo assim?
Ei, chega desse orgulho, Megan. Já chega.
 
 – Ah, obrigada, tia Dora. Fico feliz que a gente tenha se acertado. – me acanhei por ter soado tão falsa. Vamos lá, só um pouquinho mais de carisma. – Você é importante para mim.
Ela sorriu. Quase acreditei que ela estava erguendo uma bandeira branca.
 
 – Então, pelo menos valeu a pena ter brigado com a sua mãe? – Se sentou na cama, e eu a acompanhei. Me sentia pesada, e me incomoda estar tão desanimada quando até tenho motivos para me alegrar.
 
 – Ah... o quê?
 
 – Oh, Megan, pareço conservada mas já vivi muita coisa. – segurei uma risada que parecia crescer a cada segundo que tentava segurá-la. – Você não sairia de casa aquela hora só para ajudar uma amiga.
 
O que ela estava a insinuar com tanta convicção até tinha um bom fundamento, mas me perguntei se ela não acreditava na minha capacidade de ajudar uma amiga. É assim que as pessoas me veem?
 
 – Me diga, Megan, é o mesmo que te deu... isso? – tirou com cuidado o papel do bolso. Era o desenho que Benjamin havia me dado no primeiro dia que o vi. Agarrei a folha de seda de sua mão, só depois pensando no risco de tê-la rasgado.
 
 – Onde achou isso? – não me importei com o tom que a fala carregara. Estava sentindo uma espécie de raiva por ter meu espaço invadido, e ter algo especial nas mãos... dela.
 
 – Aqui, nessa bagunça.
 
Que caralho ela estava planejando com essa conversa?
 
 – Sim, é o mesmo cara.
 
 – Vocês estão namorando?
 
Ui, acho que você atingiu um ponto sensível. Nunca tinha pensado nisso, nele como meu namorado. Na verdade, estive pensando esse tempo todo no contrario disso.
 
 – Hum, não. Só... – pensei se deveria mesmo falar para ela. É claro que não devia, mas minha carência falou mais alto que minha sensatez. – Ele me beijou. Hoje.
 
 – Ele é bonito?
 
Pensei no melhor jeito de responder. Eu, logo eu que sempre critiquei homens, sempre repugnei qualquer exaltação à esse bicho, como poderia dizer, como poderia expressar tudo o que aqueles olhos verdes fazem por aqui?
 
 – Hum, consideravelmente.
 
Titia estava estranha. Sentia que ela queria me dizer algo mas não conseguia concretar esse sexto sentido. Talvez nem seja ela o maior problema. Talvez eu esteja tão confusa, com sentimentos tão desorganizados, que não consigo extrair uma imagem nítida de suas reticências. Tenho matado o que compreendo com o peso de ser eu.

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