Capítulo 18

36 13 12
                                    

E então, todos os momentos de tortura mental que passei aqui, se tornaram irrelevantes quando me deparei com a real situação: ela estava sentada ao meu lado, admirando a paisagem de figueiras e eucaliptos, com um brilho no olhar, enquanto flashbacks de várias crises me invadiam de repente. Estávamos paralelos. E é claro que eu me questionei se era a coisa certa, já que a grama rala estava começando a pinicar meu tornozelo, na única parte descoberta de minha perna, coisa que não costuma me incomodar. Mas a olhei, e captei toda paz do mundo em seus olhos, então anulei todas as dúvidas.
 
 – Posso fazer uma pergunta? – o vento balançava seu cabelo, sem piedade alguma, dando a ela um aspecto selvagem.
Eu ri.
 
 – Com "uma" você sempre quer dizer "quinze", então vá em frente. – seu olhar desceu, e gostaria de ter dito que ela ficava linda quando envergonhada, com as bochechas vermelhas.
 
 – Por que me trouxe aqui?
 
Engoli a seco.
 
 – Não gostou de ter vindo? – não me incomodei com o tom hostil que a fala carregara. Comecei a brincar com a grama, na intenção de não ter que olhar para a garota. Era difícil manter a armadura olhando naqueles olhos cor de mel esbugalhados, com milhões de dúvidas que não se importavam em ser vistas.
 
 – É claro que gostei. Gostei muito.
 
 – Mas?
 
 – Mas... eu não sei. Me sinto uma intrusa. – ela pareceu perceber que seu cabelo começara a ficar fora de controle, o que eu estava adorando, mas mesmo assim, se apressou para prendê-lo. Me perguntei se algum cara prendeu ela, em algum momento. Embora não seja garota de se prender, parecia muito fácil fazer isso. Talvez eu nunca saiba o por quê.
 
 – Intrusa. – repeti, da maneira mais casual que consegui. Me soava ridícula.
 
 – É. Quer dizer, ainda não sei se confio em você. – brincou com os dedos. – Ouço coisas terríveis sobre você, todos os dias.
 
 – Hum, me diga. – pedi. Ela me olhou, amaldiçoando meu pedido, na melhor das hipóteses, masoquista.
 
 – Que você faz mal as pessoas. Mal de verdade. Como bater em mulheres – ela deu uma pausa, e eu me perguntei se era uma boa hora para dizer que eu realmente batia em mulheres, mas não desse jeito. – Que você estupra elas.
 
 – Ah, uau. Que criativo.
 
Pensei sobre isso. Na hipocrisia de alguém em pensar te ver em uma casa de vidro, quando na verdade você vive no castelo mais alto, da torre mais alta, tão, tão distante do que as pessoas imaginam, com um dragão te vigiando, e ainda que seja uma comparação besta, Fiona e eu, sempre me acabo pensando nisso; e é verdade que o fato de seu lado ogro, que só aparece a noite, não a definir totalmente, não ter muito a ver comigo. Porque a gente sempre sabe onde estão os monstros, e não era o caso de eu ter folga disso pela manhã, ou virar isso pela noite, porque eu mesmo era o monstro em tempo integral; como se pode fugir de si mesmo? De algo que te define inteiramente?
 
Eu a olhei, desejando que ela acabasse com aquele assunto. Ela pareceu entender. Deve ser por isso que a trouxe aqui, na verdade. Loucos reconhecem loucos. É como voltar para casa, uma casa de verdade, depois de muito, muito tempo.
 
 – O que aconteceu entre você e a Kathy? – pareceu notar minha expressão confusa. Se apressou para reformular a pergunta. – Katherine. Katherine Wilderfield. Ela e Anna são amigas.
Reparei no trêmulo de sua voz ao dizer a última frase. Algo a incomodava nisso, e fiquei irritado por não saber o quê.
 
 – Sobre o que aconteceu: nada. A gente saiu uma vez, para conversar, e ela tinha dito que se aproximou da Anna por minha causa, porque me achava... hum... gostoso. E não vou dizer que não acho ela bonita, ela é, só que você sempre sabe quando aquilo não vai rolar. E não rolou. Eu disse para ela que não queria nada sério e ela disse que estava de boa, que ela também não queria. – Fiquei em dúvida se deveria me atentar aos detalhes de sua fala, tais como: Ei, gostoso, não me incomodo com isso, só quero sentar em você. – E disse que a Anna tinha chamado ela para posar em casa, que dava para "esquemar" algo – Fiz o gesto das aspas com os dedos.
 
 – E...?
 
 – E... ela me mandou uma mensagem falando que ela merecia mais do que só uma transa e eu disse que eu nunca tinha prometido mais que isso, que foi uma escolha dela.
 
 – E por que você me chamou de Katherine aquele dia?
 
 – Eu não sabia quem era você, e ela e eu conversamos aquele dia... não me lembro direito, foi antes de eu ter bebido. Não. Não, espera. Eu bebi. Te vi na festa. Isso. Você tinha... ah... beijado o John. Isso. E eu vi a Katherine. Com o... não lembro o nome dele. E conversamos. Me lembro de chegar em casa, não faço ideia como. E aí vi você de novo, certo? Fiquei em dúvida se era a mesma pessoa. Estava escuro e você falava diferente. Quer dizer, você não falou sobre paus, e soube que não era ela.
 
Era estranho falar tanto. Não sei se me sinto uma fraude ou apenas esqueci como é ser o que sou.
 
 – Vamos embora.
 
Me apressei para levantar, enquanto ela ainda tentava entender o que eu tinha dito. Talvez não o que, mas sim, por que. Olhava para mim, tentando arrancar de mim o que tinha esperanças de conseguir.
 
 – Sei que sou lindo, Megan, não preciso que fique... Hã... babando em cima de mim.
 
Fui em direção ao carro, ainda batendo a mão contra a calça na tentativa de limpá-la.
 
 – Posso babar por baixo também, você pode escolher. – parei, tentando descobrir se meus ouvidos não estavam me pregando uma peça. Ela riu.
 
Há algo que deixei passar sobre você, garota?
 
Quando percebi, ela estava rente à porta, esperando que eu destravasse o carro com as chaves.
 
Nem ao menos me lembro em que momento partimos, mas estávamos na estrada novamente, e eu fazia um esforço enorme para me concentrar no volante. Na verdade, para me concentrar em qualquer coisa.
 
 – No que está pensando, Benjamin? – sua voz soou suave, mas falsa em relação à sua verdadeira dúvida. Olhei para aqueles olhos, agora hipnotizantes.
 
No que está pensando, Benjamin?
 
No que está pensando, Benjamin?
 
Me diga o que está pensando, Benjamin.
 
 – Você tava linda. Aquele dia. Na festa. – pigarreei, tentando dividir atenção com as memórias e o agora. O agora que vinha carregado de uma rodovia bem asfaltada que o Audi seria capaz de agradecer, se pudesse; o agora carregado de seu cheiro pairando no carro todo, e seu cabelo lutando para se soltar das garras de algum amarrador.
Seus olhos brilharam de repente.
 
 – Ah. Bem, obrigada. – brincou com os dedos. Agora o Sol batia em seu rosto, a deixando com uma aura leve e, de alguma forma, superior a qualquer coisa que eu tenha visto nessa vida.
 
 – Hã... e foi mal por ter sujado seu vestido.
 
Ela me olhou, surpresa.
 
 – Sujado meu vestido?
 
 – É. Eu empurrei a Anna para você derrubar o seu copo. Aliás, o copo que o John tinha te dado. – a olhei de relance, agora que tinha recuperado o foco das ações, ela estava olhando pela janela, como uma criança que olha o quintal cheio de neve e sabe que não vai dar para brincar. – Ele ia te drogar.
 
Virou-se à mim. Parecia furiosa e confusa.
 
 – Ele ia o quê!?
 
 – Te drogar. LSD, provavelmente. Viciado de merda. – passei a mão no cabelo, antes de olhar para ela de novo. Ela estava pensando sobre isso, admirando a janela.
Abaixei o vidro dela, e uma onda de vento a desgovernou de um jeito sensacional. Uma pena que ela veio num momento que eu não acredito em mais nada, porque eu poderia facilmente me apaixonar por ela, se eu permitisse. Adicionei esse pensamento ao meu arquivo mental.
 
 – Por que não me beijou aquele dia? – me odiei assim que percebi que falei isso em voz alta. Desejei que ela não me ouvisse, mas quando ela me olhou, não me incomodei de ela ter escutado.
 
 – Não sei. Medo, acho. – ela gritou, competindo com o vento. Ergui o vidro. – Mesmo que eu ouça muitas coisas duvidosas sobre você, não acho que você seja o cara que se importe com um simples beijo. Pelo menos não o meu.
O que seria verdade, em teoria, mas estou bem interessado em um beijo, especialmente o dela. Pelo menos nesse exato momento.
 
 – Por que acha isso? – mordi o canto da boca. Pare com isso, Benjamin. Pare de pensar nisso, cara.
 
 – Oh, olha só quem está fazendo as perguntas agora. – ela riu torto. Eu poderia mesmo beijar ela agora. Não, ei, cara, não. Relaxa. Olhos. Pista. Volante.
 
 
O carro estava em completo silêncio, o que não me deixava entediado, porque eu tentava entender todos os sinais que eu achei estar recebendo, enquanto nossas palavras não ditas gritavam entre nós. Me esforço para adivinhar qual música estava a tocar, já que o som estava muito baixo. Até que, na maior delicadeza e como se esse fosse seu ato mais feito na maioria do tempo, ela aumentou o som. Me perguntei se ela podia ler meus pensamentos e só então me dei conta o quão fodido eu estaria se ela de fato pudesse. Eu ri.
 
Megan murmurava a letra de Freakin' Out On The Interstate, e eu me segurando para não dizer que as músicas ficavam melhor em sua voz.
Enquanto via a rodovia para algum outro canto desse mundo, apreciei a melancolia, a hóspede novata que pareceu gostar da alma necessitada de um pouco de si. E, embora quisesse muito em algum outro momento seguir aquele caminho que me levaria para fora, percebi que algo me puxava para dentro. Alguns fios estavam soltos mas não desprendidos completamente, só desorganizados. Restavam raízes. Porque agora eu tinha um bom motivo para voltar para casa: ela estava no banco do meu carro. Ela também tinha um motivo para voltar para casa.
E, pela primeira vez, não me importei com isso, o que significava muito.
 
And you got a lot on your mind
And your heart, it looks just like mine
 
Percebi que minha língua estava dormente, cansada, sensação semelhante a quando se passa horas beijando ou... enfim, foco, Benjamin. A questão é que minha língua estava cansada por não estar acostumado a falar tanto com alguém. A perguntar e responder tanta coisa. E nas últimas horas, devo ter conseguido expelir um nível considerável de palavras, o que tampouco corresponde a minha média de uma semana inteira, e por mais que eu ache errado alguma coisa significante virar números, como o que acontece com vidas, aqueles números me mostraram algo que nenhuma palavra poderia mostrar.

O Preço do AlvorecerOnde histórias criam vida. Descubra agora