1x12 - Montes Calmos (Parte I)

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A buzina da carreta continuava a ressoar grave, muito depois do ocorrido.

Carroça e cavalo estavam agora na beira da estrada. Barnabé sangrava. Mesmo as mãos calejadas do peão não resistiram à força lacerante do cabresto de cânhamo, tamanha a violência com a qual o cavalo os atirara para o meio do tráfego.

Os olhos arregalados de Pedrinho não viam nada. Tampouco seus ouvidos escutavam os apelos insistentes do peão ao seu lado. O mundo ao seu redor silenciara-se, abafado pelos estampidos de seu coração desesperado.

- Pedrinho! Pedrinho, você está bem?! - berrava Barnabé, sacudindo-o pelos ombros. - Pedrinho!

Pedrinho custou a percebê-lo. Mesmo quando o fez, não conseguiu falar. Apenas acenou um sim com a cabeça, incapaz de articular sequer uma palavra. Tudo acontecera mais rápido que um piscar de olhos, ainda assim, pareceu durar uma eternidade. Um breve e interminável momento de horror, no qual Pedrinho tivera a absoluta certeza de que iria morrer.

A reação dele, embora assustada, trouxe alívio ao alarmado peão. Foi só aí que Barnabé notou que manchara as mangas da camiseta clara de Pedrinho com seu sangue.

- Ah, só me faltava essa mesmo... Deixa eu ver se ajeito isso, pra ninguém na cidade achar que você tá machucado. - Barnabé dobrou as mangas da camiseta para dentro, disfarçando como pôde as manchas escuras. - Pronto, melhorou um pouco. Mas minha nossa, como é que me apronta uma dessas, pangaré?! - esbravejou ele por fim, estapeando o lombo do cavalo.

Pedrinho não percebeu o exato momento em que retomaram a viagem. Quando deu por si, Barnabé conduzia a carroça ao longo de uma ponte de madeira de cerca de cem metros de extensão, abaixo da qual um rio corria vagarosamente, indo desaparecer nas entranhas do mesmo vale que Pedrinho observara antes. Agora que se aproximavam era possível ver, despontando na baixada, os telhados de algumas edificações baixas.

Pedrinho já tinha condições de falar, mas decidira não fazê-lo. Estava claro para ele que o que acontecia no Sítio do Picapau Amarelo, fosse o que fosse, afetava também os animais. Se tentasse retomar a conversa, não duvidava que pudessem acabar todos no rio lá embaixo. Tinha muito ainda o que perguntar para Barnabé, mas decidiu que só o faria quando estivessem decididamente longe de qualquer perigo.

- Estamos quase chegando. - dessa vez era Barnabé que, percebendo o preocupante silêncio de Pedrinho, decidira romper o silêncio de quase duas horas que pairava sobre eles. - Montes Calmos fica logo ali, descendo a estrada pro vale.

- O que a gente vai fazer lá mesmo? - perguntou Pedrinho, mais para distrair seus pensamentos do que por curiosidade genuína.

- Primeiro temos que ir em três vendas no centro da cidade, pra recolher uns pagamentos pra Dona Benta. - disse Barnabé, enquanto deixavam a estrada principal. - Sabe, só uma parte de tudo o que a gente planta no sítio, e do leite, dos ovos, das carnes, só uma parte a gente come lá. O resto a Dona Benta vende.

- E você vem aqui vender pra ela?

- Não, não, rapaz... tem gente aqui na cidade com caminhonetes pra fazer isso. - esclareceu o peão. - Eles pegam a mercadoria lá e trazem pra cá pra distribuir entre as vendas, mas nem sempre os comerciantes têm dinheiro pra pagar na hora., sabe? Então Dona Benta acerta com os entregadores e assume a dívida pra ela, dando mais tempo pros comerciantes pagarem.

- Isso não atrapalha ela? As pessoas ficarem devendo?

- O sítio é muito rico. Não faz tanta falta assim. - disse Barnabé, respirando fundo. - Graças a Deus...

- Depois que a gente fizer a cobrança eu posso ir nos correios? - o tom de Pedrinho era de ansiedade.

- Pode sim. Eu também tenho que passar no mercado pra comprar algumas coisinhas lá pro sítio, que a Dona Benta pediu. Aí deixo você no posto antes, combinado?

Pedrinho assentiu. Passado o tremendo susto de antes, a perspectiva de mandar a carta que escrevera com tanto carinho para sua mãe tornava a animá-lo. Ele tornou a tatear o bolso, assegurando-se de que a folha dobrada continuava ali.

- Chegamos. - anunciou Barnabé, vinte minutos depois.

Não que precisasse. “BEM-VINDO A MONTES CALMOS”, dizia, em letras desgastadas pelo tempo, a enorme placa afixada à beira da estrada. O caminho fazia um declive por entre dois montes arborizados, e por ele Barnabé conduziu a carroça até o ponto em que o terreno novamente se aplainava e surgiam os primeiros indícios de que adentravam a periferia da pequena cidade.

A primeira coisa que chamou a atenção de Pedrinho foram os esqueletos de duas canoas, abandonadas às margens da estrada empoeirada.

- Aquele rio por onde a gente passou, é o mesmo que tem no sítio? - perguntou ele.

- É sim. - respondeu Barnabé. - É o mesmo rio que abastece a gente daqui. Não teria cidade se não fosse ele. E se não tivesse cidade, não teria sítio, nem o Barnabé aqui teria emprego.

Pedrinho riu da brincadeira.

- Montes Calmos começou assim. - continuou o peão, apontando para a cidade que começava a se precipitar á volta deles. - Antigamente, há muito tempo mesmo, os avós da Dona Benta eram donos disso tudo. O sítio era muito maior. Mas como não se tinha asfalto, quando chovia forte as estradas viravam uma lamaceira só. Às vezes as caravanas que vinham buscar a colheita não tinham como seguir viagem, então começaram a montar uns acampamentos por aqui mesmo, perto do curso d'água. Aí a cidade foi crescendo, crescendo, hoje é a única dessa região toda. Se não fosse por Montes Calmos, ia ficar difícil pra gente conseguir certas coisas lá pro sítio.

À direita da carroça, bem do lado em que estava Pedrinho, ele avistou uma parada de ônibus. Cinco pessoas já formavam uma fila para embarcar no único veículo estacionado, ainda de portas fechadas. Sentado ao volante, o motorista bebericava demoradamente seu café, alheio ao olhar fulminante que lhe dirigiam os passageiros ansiosos do lado de fora.

- Pra onde vai esse ônibus? - perguntou Pedrinho.

- Vai pra rodoviária lá da capital. - respondeu Barnabé. - É longe, mas é o único jeito de se ir pra algum lugar daqui sem ser de carro.

- Ou de carroça, né?

Barnabé sorriu. - Rapaz esperto!

Em seguida, os dois chegaram em uma rua de terra batida, margeada por casas de ambos os lados. Eram construções baixas, de aparência humilde, mas em melhores condições e em número muito maior do que aquelas da vila da senzala. O dia por ali também já havia começado. Uma senhora varria seu quintal, enquanto outra, duas casas adiante, subia na ponta dos pés para conversar por cima do muro com o vizinho. Um homem, usando um chapéu de palha ainda maior que o de Barnabé, acabava de parar sua bicicleta diante de um portão de ferro. O apetitoso aroma da sacola de pães que trazia na cesta espalhava-se pelo ar.

- Por que esse nome? - perguntou Pedrinho, passeando com seu olhar curioso por sobre as demais casas. - Montes Calmos?

- Olha, não sei se é verdade, mas pelo que me contaram era assim que os índios que moravam aqui antes chamavam essa terra. Na língua deles, né...

A rua terminava em uma curva, que se abria para uma avenida poucos metros mais larga. Diferentemente da rua de acesso, algumas construções dali apresentavam dois andares, conferindo uma aparência mais urbana ao local, muito embora ainda estivesse distante do tipo de vizinhança com a qual Pedrinho estava acostumado em sua cidade.

O mais parecido eram as pessoas. Após tantos dias vivendo em meio ao povo de pele predominantemente escura do sítio, Pedrinho chegou a estranhar como, em Montes Calmos, as pessoas tinham cores que variavam do seu branco ao negro de Tia'Nastácia, passando por todos os tons de bege e marrom que havia entre um e outro.

Barnabé estacionou a carroça em frente a uma mercearia.

- Aqui é nossa primeira parada, rapaz. Enquanto eu falo com o Seu Tiago, aproveita pra esticar um pouco as pernas. Já volto.

Assim Pedrinho o fez. Escorregou para fora da carroça, provocando estalos dolorosos por todo seu corpo, endurecido como estava pela longa viagem. À cada passo, um pequeno choque irradiava da planta do pé até seu traseiro, que doía como se tivesse levado cem surras de cinta da sua mãe. Pedrinho nem quis imaginar como seriam as horas da viagem de volta. Ainda assim, não se arrependeu. Era bom estar fora do sítio, para variar. Estava feliz por estar ali.

Especialmente pela carta que trazia no bolso.

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