O caminho era mais simples do que Pedrinho poderia imaginar. Uma vez que estava no milharal, bastava seguir reto onde eles normalmente faziam a curva que os levava a vila da senzala. Poderia ter ganho algum tempo simplesmente atravessando o cafezal (já que era vizinho à Casa Grande) e descendo o rio à partir daquele ponto da mata que rodeava o sítio. O único problema é que teria que retornar o cafezal.
O mero pensamento já lhe causava arrepios.
No fim das contas, chegou tão depressa ao rio que não teve dúvidas de que tinha feito a escolha certa. Se continuasse caminhando rápido daquele jeito, poderia entrar e sair da vila ribeirinha com o Sol ainda bem alto no céu.
Embora nunca tivesse estado naquele ponto do sítio, Pedrinho sentia-se familiarizado com a vegetação densa e as árvores de copas altas. Claro que a visão dos raios de sol incidindo diáfanos por entre as folhas e enchendo as águas com fagulhas douradas, acompanhada pela sinfonia de pássaros que ecoava pela mata, tornava a experiência infinitamente melhor do que sua primeira vez. Ainda assim, ao que caminhava pela margem coberta de cascalho, Pedrinho se mantinha atento ao menor sinal da presença de mais alguém.
Os mascarados da procissão negra não o pegariam desprevenido.
O rio em si era mais estreito ali do que era sob a ponte que ele e Barnabé haviam atravessado a caminho de Montes Calmos. Suas águas corriam aceleradas, mesmo assim Pedrinho achou que não teria dificuldade em nadar até o outro lado, se ao menos soubesse o quanto era fundo. Mas onde o Sol não tocava o rio se mostrava turvo e escuro, tornando arriscada demais a necessária travessia para a margem oposta.
Assim, Pedrinho esperou até alcançar o tronco caído, conforme havia lhe dito Narizinho. Pelo tamanho, ele pensou, devia ser uma árvore muito velha. Brotara no sopé do morro que se erguia do outro lado do rio, até que um deslizamento a derrubou, transformando-a em uma ponte natural. Pedrinho observou que, embora sua casca se mostrasse acizentada e áspera sobre a faixa de cascalho, uma vez que a árvore morta atingia as águas sua cor mudava para um verde escorregadio. Com isso, achou melhor atravessá-la engatinhando, dividindo sua atenção entre manter o equilíbrio e evitar as farpas afiadas que se projetavam ao longo de toda sua extensão.
Pedrinho não saberia dizer quanto tempo demorou para fazer a travessia, mas chegou exausto ao outro lado. Precisou tomar alguns instantes para respirar fundo e recobrar as forças, antes de continuar. Foi só aí que percebeu que, graças ao deslizamento que pusera a árvore-ponte no chão, a margem ali era praticamente inexistente, forçando-o a subir pela encosta do morro para seguir adiante.
Embora seus pés de garoto da cidade não estivessem acostumados à caminhos íngremes e pedregosos como o que ladeava a pequena colina, a passagem não causou maiores problemas a Pedrinho. Ao menos, não até que iniciou sua descida de volta para a mata e avistou a entrada da caverna.
A sensação lhe arrebatou brutalmente súbita. Uma agonia repentina e inexplicável, um calafrio que escorreu de sua nuca espinha abaixo, deixando mãos e pés dormentes pelo caminho. Era como se a colina possuísse um olho, e esse olho estivesse observando-o. Pedrinho sentia a caverna convidando-lhe a conhecer sua escuridão oca, como um lugar alto convida alguém a precipitar-se em sua beirada para confrontar a queda.
Pedrinho escorregou em uma pedra solta, ralando seu joelho. Só aí se deu conta de que tentava subir o aclive, em direção a caverna. Procurando libertar-se daquele fascínio vertiginoso, Pedrinho lançou seu olhar para o lado oposto, avistando, lá longe, a silhueta esquelética do Visconde de Sabugosa erguendo-se acima do milharal.
Então, desceu o que faltava do morro, sem olhar para trás.
Ao que Pedrinho retomava sua caminhada por entre as passagens estreitas da mata e a aflição em seu peito abrandava-se, o menino percebeu que ela não lhe era de todo estranha. Poucos dias antes havia experimentado sensação parecida, ainda que em grau muito menor, ao conversar com Narizinho no estábulo... e na presença de Emília.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...