1x22 - A Semente (Parte III)

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Narizinho não ficou para ver a investida fatal. Aproveitou a oportunidade e correu para a mata, desaparecendo em sua escuridão, enquanto lá em cima o trovão trazido pelo Pai da Senzala continuava a ribombar, ecoando pela tempestade que cobria os céus sobre a Casa Grande, tão alto e estrondoso que abafou os sons da batalha que ocorria abaixo.

Os peões que ainda trocavam socos com o agente do delegado correram ao ouvirem o trovão se aproximando, mas o outro não teve a mesma perspicácia. Avançou ávido para recuperar a arma que perdera entre as flores, sem se dar conta do monstro até que o urro animalesco se fez ouvir sobre ele, quando então já era tarde demais. O rasgão explodiu no centro de sua mão direita, arrancando-lhe um grito agudo de dor.

O pânico alastrava-se pelos jardins da Casa Grande. Os ventos do Pai da Senzala dispersavam o conflito, isolando os cultistas para que seu chicote lhes açoitasse sem piedade. Os gritos de ódio e fúria, abafados pela macabra mordaça, soavam como o rugido de algum animal ensandecido.

Apenas duas pessoas pareciam não se abalar por sua presença. Anastácia até abandonou as sombras nas quais se protegia das balas do Delegado Marques para contemplar, após tantos e tantos anos, a face que, apesar de toda a ira, de toda a deformidade, ainda reconhecia como a de seu pai. Já Dona Benta armou-se do objeto trazido de dentro da casa por seu seguidor e, demonstrando o mais completo destemor, desceu as escadas na direção da criatura.

- Minha senhora, não! - alertou, em vão, o delegado.

Dona Benta não respondeu. Apenas fechou os olhos e começou a murmurar palavras inaudíveis ao nada. Sua presença atraiu o olhar vítreo do Pai da Senzala. A ira do monstro inflamou-se ainda mais, manifestando-se como um violento vórtice de terra que girava ao seu redor, acompanhando seus saltos, ao que as chicotadas explodiam ao redor de Dona Benta, uma após a outra, sem, de fato, atingi-la. A senhorinha não arredou-se um passo sequer, mesmo quando a coisa de uma perna só aterrissou bem na sua frente, pondo-a ao alcance de suas mãos putrefatas.

O monstro atacou. No último instante possível, Dona Benta abriu os olhos e meneou suas mãos em um gesto rápido, tampando a garrafa que trazia com uma rolha de cortiça e aprisionando lá dentro o Pai da Senzala. O vendaval cessou imediatamente. Restaram apenas o semblante estarrecido de Anastácia, e o sorriso triunfante nos lábios enrugados da senhorinha.

Tudo transcorreu diante do olhar estupefato de Pedrinho, que aproveitara a audácia de Dona Benta para discretamente seguir os passos dela escada abaixo. Em seguida, colou o corpo junto à parede da casa, esgueirando-se o mais silenciosamente que pôde para os fundos. Ganhara certo tempo graças ao pavor generalizado provocado pelo ataque da criatura, mas agora que Dona Benta a tinha subjugado, Pedrinho sabia que a atenção de sua anfitriã e seus convidados macabros logo se voltaria para ele.

Precisava ir ao encontro de Narizinho!

Pedrinho deslizou por baixo da janela da sala de jantar, dobrando a curva para o que deveria ser a parede externa da ala dos empregados. Ao fazê-lo, porém, mergulhou em um vazio impossível, caindo de costas no chão. A parede não estava onde deveria estar. De fato, o próprio Pedrinho já não se encontrava mais nos fundos da Casa Grande, mas diante dela novamente. Como se preso em um sonho, daqueles em que por mais que se corra nunca se sai do mesmo lugar, sua tentativa de escapar só fizera o levar de volta para o outro lado da fronteira negra.

E o que via lhe dizia que, dessa vez, descera ainda mais fundo.

A Casa Grande era um arremedo grotesco de si própria. Não havia telhado. Das paredes só restara a imensa fachada frontal, erigindo-se como a face deteriorada de um monstro cujos ossos, visíveis onde sua carne feita de reboco se despedaçava, tinham cor de ferro enferrujado. As janelas eram as órbitas vazias de seus muitos olhos, pelas quais decaíam os raios de um luar vermelho como sangue. Pedrinho não conseguia ver o povo de Anastácia na terra arruinada onde ficava o jardim, mas ainda ouvia suas vozes, algumas tão próximas como se estivessem ao seu lado. Já de Dona Benta, Delegado Marques e os demais cultistas restavam apenas colunas imóveis de névoa negra, pairando diante da casa.

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