1x21 - Benta (Parte I)

1.1K 106 33
                                    

++++++++++ 1887 ++++++++++

– Dorme neném, que a Cuca vem pegar.. Papai foi na roça, mamãe foi passear..

A menina entoava a canção de ninar para a boneca em seus braços, com a mesma doçura com a qual embalara as três que já dormiam seu sono imaginário, aconchegadas sobre os lençóis de seda azul–celeste.

Não eram suas favoritas, porque ela não tinha favoritas. Cada vez que ia brincar escolhia três ou quatro, mas sempre tomava o cuidado de não deixar nenhuma de lado por muito tempo. Afinal, não havia espaço em sua cama para que brincasse com todas ao mesmo tempo, mesmo se quisesse. Possuía mais de trinta além daquelas, de todas as partes do mundo, mas amava a todas igualmente, como uma mãe ama seus filhos (ao menos, como uma boa mãe deveria).

Colocou Lili na cama ao lado das outras, ajeitando–lhe as dobras do perfumado vestidinho parisiense. Por um instante, a menina apenas contemplou suas bonecas, imaginando com o que estavam sonhando. Mary, a inglesa, devia sonhar que estava brincando na neve. Laura, a gorducha portuguesa, provavelmente sonhava com algum dos gostosos doces de Lisboa. Já Indiana, a indiana, devia sonhar com... a Índia, talvez?

O beliscão a pegou desprevenida.

– Ai!

– Mamãe chamou você, não ouviu? – perguntou–lhe a irmã, atirando–se sobre a cama.

– Isso machucou!

– Deixa de ser chorona. – sem cerimônia, ela pegou Laura pelos braços e a sacudiu.

– Não faz isso! Vai acordar ela!

– Não vou não!

As duas se atracaram pela boneca, acabando por derrubar as outras três no chão acarpetado. Nada com o que a menina já não estivesse acostumada. As páginas de seu diário eram um testemunho do tanto que brigava com sua irmã. Fazia parte de sua rotina, tanto quanto se olhar no espelho todas as manhãs.

A diferença era que aquele seu reflexo nunca fazia o que ela queria.

Terminado o breve embate, a menina agarrou–se com força a Laura e escorregou para o canto da cama, arfante, porém vitoriosa. A outra levantou–se como se nada tivesse acontecido, aprumou as madeixas do longo cabelo castanho e disse:

– Eles estão esperando. Não demora!

E saiu do quarto, deixando a menina a se perguntar se um dia seria capaz de fazer a mesma cara de deboche de sua irmã gêmea.

Manhãs como aquela só não eram piores do que quando o fotógrafo vinha. Já era entendiante o bastante ter que ficar sentada na sala, sem dar um pio, enquanto seu pai concedia mais uma entrevista ao jornal da cidade. Porém, quando o jornalista vinha acompanhado pelo fotógrafo, ela sabia que teria que ficar ali até a hora do almoço (no mínimo), posando para o que parecia ser um milhão de fotografias junto de sua família.

No fim do dia suas bochechas doíam pelo tanto de sorrisos forçados, cada um deles um feito tornado quase impossível pela irmã que insistia em ficar empurrando–a no intervalo entre uma foto e outra. Tinha vontade de esganá–la! Mas isso, pelo par de sorrisos idênticos que exibia a foto revelada, ninguém conseguiria dizer.

– Pois bem, ilustre doutor José Manoel... – dizia o jornalista.

– Por favor, me chame de Zé. – interrompeu–lhe, sorrindo, o senhor da casa. – Estamos na minha sala de estar, em uma linda e ensolarada manhã de outono, conversando como amigos. Deixemos essas formalidades enterradas no bolor do escritórios da cidade.

– Com toda certeza, dout... digo, Zé.

Os dois homens riram como camaradas de longa data, bebericando o chá que a criada acabava de servir.

O SítioOnde histórias criam vida. Descubra agora