1x10 - A Marca de Carvão

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As palavras se embolaram na garganta do menino. Para sua sorte, logo veio Narizinho, saltitando ao encontro de Anastácia.

- Tia! - gritou ela, dando um abraço apertado na cintura da velha senhora.

- Meu amor! Está tudo bem com você?

- Achei que não viria. - disse Narizinho, seus olhos ávidos atentos ao pequeno embrulho de papel que Anastácia trazia nas mãos.

- Desculpe pelo atraso. Tive que resolver um probleminha lá na vila. - justificou-se Anastácia, dirigindo a Pedrinho um olhar duradouro e penetrante. O garoto encolheu-se onde estava e desviou o rosto. - Mas vamos, vamos entrar.

Muito à contragosto, Pedrinho seguiu os passos de Narizinho e Anastácia até o humilde cômodo da senzala. Atrás de si, o desenho de carvão era uma janela angustiante para todo o pesadelo que vivera ao lado de Narizinho. Alguém ali sabia do monstro do cafezal. Talvez todos soubessem.

Como uma imagem adornando uma espécie de altar macabro, lá estava sua marca.

Subitamente, Pedrinho se viu tomado pela sensação de que um perigo iminente esgueirava-se pela quietude do vilarejo, cada vez mais próximo. De alguma forma, a ar absolutamente parado lhe parecia ainda mais ameaçador do que a violenta ventania da noite anterior. Se ao menos Narizinho olhasse para trás, poderia tentar apontar-lhe a marca do monstro. Mas ela já estava ao lado da porta com Anastácia, abraçada a Emília e batendo o pezinho, ansiosa.

Sua anfitriã abriu a porta e Narizinho correu para dentro. Em seguida, mantendo a porta aberta para Pedrinho, Anastácia lhe exibiu um sorriso repleto de dentes muito brancos e fez um gracioso gesto para que entrasse. Sem escolha, Pedrinho avançou com passos hesitantes, indo sentar-se com Narizinho (e Emília) à velha mesa de madeira.

- Pega... - disse Narizinho, com a boca já toda lambuzada de cocada. Estendeu a Pedrinho o embrulho agora aberto, mas ele rejeitou a oferta com um rápido movimento de cabeça. Sua recente descoberta lhe embrulhara por completo o estômago.

- Soube que deram um baita susto no povo lá da Casa Grande, ontem à noite. - disse Anastácia em um tom leve, embora sua voz possuísse um timbre naturalmente forte e vigoroso.

- Já te contaram? - perguntou Narizinho, surpresa.

Anastácia riu. - Você acha que as fofoqueiras daquela casa iam se aguentar sem espalhar pra todo mundo?

Narizinho riu com ela, espirrando farelo de açúcar e migalhas de coco ralado por toda a mesa. Já Pedrinho continuou sério. Não era difícil imaginar Néia correndo de manhã cedo até o vilarejo para contar as novidades para suas irmãs, mesmo assim, e ao contrário de Narizinho, Pedrinho não conseguia achar qualquer graça naquele assunto.

- O que aconteceu, afinal? - perguntou-lhes Anastácia.

Pedrinho e Narizinho se entreolharam. Por pouco ele não enfiou um pedaço de cocada na boca, só para mantê-la ocupada e não precisar falar.

- Se é segredo, não precisam me contar. - disse Anastácia. Contornava a mesa para sentar-se na última das quatro cadeiras. - Um segredo confiado é um dos presentes mais raros, e caros, que alguém pode dar.

- Não é segredo, tia. - esclareceu Narizinho, terminando de mastigar. - A Emília pediu que eu fosse até a mata pra ver a procissão. Aquela do sonho que te contei.

Pedrinho arregalou os olhos. Não contava com Narizinho sendo tão direta, mas já que se mostrava o caso, decidiu voltar-se para Anastácia, atento à reação dela.

- E conseguiu ver? - perguntou Anastácia, apoiando o queixo sobre as mãos entrelaçadas.

- Só um pouco. Eles ainda iam começar, mas aí o Pedrinho chegou e estragou tudo.

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