Três meses se passaram, antes que o último prego fosse afixado, concluindo assim o trabalho de reconstrução da Casa Grande. Teria levado mais tempo, sem dúvida, não fosse pelo esforço combinado de todos os trabalhadores livres do sítio, fruto do amor e da dedicação que tinham para com sua velha dona.
Anastácia retirou do cesto o último porta-retrato, o mais importante de todos, ajeitando-o cuidadosamente sobre a prateleira da sala de estar. Estava tudo pronto, e bem à tempo de sua visita chegar. A Mãe da Senzala podia não mais fazer uso desse título, mas continuava a mesma anfitriã exigente de outrora. Comes, bebes, acomodações, tudo deveria estar perfeito para os convidados de seu sítio.
O seu sítio. Seu, e de quem mais compartilhava com ela daquelas terras. E havia cada vez mais gente, agora que a vila do riacho estava sendo reformada e ampliada. A próxima etapa, se as boas colheitas assim permitissem, seria demolir a antiga senzala, abrindo assim mais espaço para a construção de mais casas para os trabalhadores e suas famílias.
Não era fácil, não havia como ser fácil, mas Anastácia estava feliz com o que tinham alcançado até ali. Talvez o sítio tivesse vivido momentos mais prósperos no passado, mas, apesar disso, não se lembrava de já ter visto sua gente tão feliz. Afinal, apenas três meses os separavam da noite em que tudo ameaçou se acabar, três meses desde que se tornara a senhora do Sítio do Picapau Amarelo.
"Do'Nastácia".
Isso era, contudo, do conhecimento de poucos. Até onde se sabia, Anastácia era a única senhora que o sítio tivera em oitenta anos, desde que o herdara pela vontade direta de sua proprietária anterior, a senhorinha Emília de Oliveira. Isso era tudo em que o mundo lá fora acreditava. Acreditava, porque era verdade, sempre fora. Nada mais era lembrado. Nada mais precisava ser lembrado.
– Essa menina... varreu a sala que nem a cara dela! – resmungou Néia, batendo com a vassoura no chão. Ela estava entre os que nada lembravam. – Olha isso, cheio de poeira ainda. Ah, mas eu esgano...
– Onde Narizinho está?
– Vi ela ali na frente, e sem um pingo de suor na testa! Por quê? Porque não pegou no trabalho hoje, certeza! Com o calor que tá fazendo, a se não...
– Ela está um pouco triste, Néia. E com razão. – disse Anastácia. – Podemos dar uma colher de chá, por hoje. Aliás, isso me lembra. Pode ver se as cocadas já estão no ponto, por favor?
Narizinho estava sentada nas escadas, brincando com uma das flores de jasmim que decaíam de um arranjo sobre o corrimão. Sentindo as costas reclamarem da manhã agitada de trabalho, Anastácia sentou-se ao lado dela.
– Néia veio reclamar de você. Para variar.
– Ah, você devia mandar ela embora! – respondeu Narizinho, espevitada.
– É isso mesmo que quer? Tem certeza?
Narizinho deteve-se por um momento, antes de fazer um sinal negativo com a cabeça.
– Diz pra ela que depois eu ajeito o que tiver que ajeitar. – disse ela, por fim.
– Eu sei que fará isso. No fundo, a Néia também sabe. Mas não seria a Néia se não vivesse reclamando, não é?
Anastácia abriu um sorriso largo, mas não foi correspondida. Narizinho apenas desviou o olhar e abaixou a cabeça.
– Está assim por causa do Pedrinho, não é? – perguntou Anastácia, esperando um momento pela resposta que, conhecendo Narizinho como conhecia, sabia que não viria tão fácil. – É normal sentir saudades.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...