Acordar.
Talvez essa fosse a maneira mais adequada de descrever a sensação de Emília ao escapar para o corredor manchado pelo entardecer.
Mãos tateando a parede, para além da curva impossível.
Retorno à realidade, após a passagem por algum reino sombrio, erigido sobre seus maiores medos.
Uma porta trancada. Chamas ardendo na escuridão do cômodo secreto.
Emília despertava, não abrindo seus olhos, mas fechando-os. Porém, a sensação do pesadelo persistia, aprisionando-a na cortina ligeira e pegajosa entre os mundos.
Uma mesa. Um selo. Dois anjos.
O inverso da lógica do inverso de um sonho. Aquilo não podia ser, não devia ser, mas, ainda assim, a realidade o contemplava, contínua e aterradora.
Era tudo verdade.
Emília correu de volta para seu quarto, o mais silenciosamente que pôde, e trancou a porta. Pensou ter ficado quase meia hora na sala dos anjos, estupefata por seus horrores, mas ao sair, percebeu que o tempo do lado de fora parecia ter se esquecido dela. Ainda era final de tarde, exatamente como antes de entrar, o que significava que, felizmente, era pouco provável que alguém tivesse sentido sua falta.
Tivera o cuidado de ouvir os passos de Benta descendo as escadas, antes de se arriscar no corredor. Antes de tentar descobrir o segredo cujas pistas a própria irmã lhe dera, sem querer, no breve instante em que suas mentes se tornaram uma só. Emília não fazia ideia do que tinha acontecido, só torcia para que Benta não tivesse, da mesma forma, visto algo dentro de si que não devesse.
O mais importante, agora, era avisar sua amiga. Já estava tarde para que pudesse deixar a Casa Grande despercebida, mas quem sabe conseguisse mandar um recado por Luzia ou por outra das empregadas, antes do final do dia. Assim, Emília arrancou uma das folhas em branco ao final de seu diário, armou-se de um lápis e começou:
"Querida Anastácia.
Eu sei que não vai conseguir ler esta carta, mas espero que sua mãe consiga."
Emília tentou descrever o que vivenciara da forma mais fiel que sua mente abalada permitia. Porém suas palavras, apressadas, perplexas e inacreditáveis, mais se aproximavam de manchas floreadas do que de frases sobre a brancura do papel.
"Eles chamam de sala dos anjos."
Sim, era assim que a chamavam, embora Emília ainda não soubesse exatamente quem "eles" eram. As lembranças de Benta lhe mostraram figuras de preto, em meio a uma névoa que cheirava a fumaça e sangue. Emília não conseguia ver seus rostos, pois estavam ocultos nas sombras de seus capuzes.
"Vou te ensinar como sair de lá, caso te peguem."
Descobrira a chave pelo reflexo metálico das chamas que ardiam nos castiçais sobre a mesa. Emília sabia que era arriscado, pois alguém poderia dar falta assim que entrasse na sala, mas não tinha escolha. Talvez aquele fosse o único meio de tentar ajudar Anastácia.
Assim, esticou-se como pôde na ponta dos pés e depositou a chave entre as asas do anjo curvado.
"Benta contou sobre a Emília para meus pais. Querem que eu a jogue fora. Minha mãe diz que ela é muito feia, e que minhas outras bonecas são bonitas. Mas eu não acho. Emília é a mais linda de todas, porque foi um presente da minha melhor amiga.
Ela faz eu me sentir em paz. Mesmo agora, quando estou com tanto medo."
Um medo aterrador, não só pelo que acabava de descobrir, mas por tudo aquilo que ainda desconhecia. Até ali, enxergara o mundo através de uma venda cor-de-rosa que a cegava para a decadência ao seu redor. Agora, a venda se rompia, frágil como uma teia de aranha.
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O Sítio
HorrorSérie literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um garoto da cidade que, como tantos outros, não entende bem o complicado momento que vive seu país. Apenas quando seu pai, um ativista políti...