1x22 - A Semente (Parte II)

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Pedrinho também conseguia ouvir as vozes na vila da senzala.

Como, ele não saberia dizer, já que toda sua atenção estava voltada para as figuras em seu encalço. Pedrinho escutava os passos apressados dos dois cultistas e era por muito pouco que conseguia, até ali, se manter incógnito.

As horas que havia passado brincando pela casa com Narizinho mostravam-se cruciais para que Pedrinho resistisse àquele pique-esconde mortal. Muito embora, aquele fosse apenas um retrato distorcido da Casa Grande que conhecera um dia. A passagem para o escritório agora mais se assemelhava a um longo túnel subterrâneo, escuro e decadente. Por toda parte, as pústulas que assolavam as paredes estouravam, maculando o ar com guinchos de dor e o odor de carniça.

O interior da Casa Grande se convertera nas entranhas de algum animal moribundo.

De repente, um sobressalto, e Pedrinho percebeu a escuridão atrás de si agitar-se em meio a sussurros grotescos. Eram eles.

Sua reação foi atirar-se para dentro do escritório do pai de Dona Benta. O lugar, assim como a sala de estar, havia se transformado. Uma única vela o iluminava, ardendo em um castiçal afixado na parede sólida onde antes existira uma janela.

A intenção de Pedrinho era se esconder atrás da larga escrivaninha de madeira negra, mas o móvel desaparecera. Do assoalho sobre o qual um dia estivera irrompera uma árvore retorcida, cujos frutos mais pareciam bolotas de carne crua, cobertas de veias e ínguas que se combinavam para lhes conferir traços peculiarmente... assustadoramente... humanos.

O menino estremeceu. Seu olhar aflito percorreu o aposento à procura de outro esconderijo, mas só o que havia era uma pilha estreita e alta de gaiolas enferrujadas no lugar da estante de livros. Pedrinho não conseguia, tampouco queria, ver o que continham, mas estavam cobertas de penas e sangue. Uma das gaiolas convulsionava-se, fazendo ranger o ferro das grades.

Os passos se aproximavam. Pedrinho precisava agir depressa ou seria uma presa fácil. Por um instante chegou a cogitar continuar ali e se encolher atrás daquela árvore sinistra, na esperança de que algum milagre o fizesse passar despercebido por seus perseguidores. Até que, de súbito, um vulto furtivo passou-lhe ligeiro pelo canto do olho, cruzando o corredor.

Pedrinho não viu nada além de uma sombra, pequena e breve. Ainda assim, a distante melodia da senzala lhe revelava uma menina de rosto belo e longa cabeleireira castanha, agitando as barras do vestidinho sujo enquanto corria para esconder a página do diário que ninguém poderia ler. O cântico a acompanhou até o esconderijo, e Pedrinho entendeu o que ele quis dizer.

O piano.

Pedrinho saiu correndo de volta pelo corredor. A sala do piano, que antes era praticamente vizinha ao escritório, agora separava-se dele por uma extensão interminável de podridão e trevas. Um arrepio percorreu a espinha de Pedrinho de cima a baixo. Podia sentir os olhares maldosos penetrando as sombras e pairando sobre si.

Pedrinho adentrou a sala a tempo de ver a menina desaparecendo atrás do piano, do qual era possível ver apenas a silhueta encoberta por um empoeirado lençol branco. Para um esconderijo improvisado, até que não era tão ruim, contanto que não o tivessem visto entrando na sala. O cenário ao redor era ao menos mais familiar do que o resto daquela Casa Grande. As paredes, apesar do aspecto de abandono, não traziam sinais da degradação pestilente que até ali seguira seus passos.

Deixando que aquela impressão avivasse a fagulha de esperança em seu peito, Pedrinho foi de encontro ao piano e puxou o lençol, o qual desmanchou-se sobre o chão como se não estivesse cobrindo nada além de ar. Pedrinho não teve tempo de entrar em pânico. No instante seguinte, o cultista precipitou-se para dentro da sala, impondo-se entre Pedrinho e a porta. Fora pego.

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